Houve um dia desta semana que foi incrível. Fui ao cinema ver a sessão pros críticos de uma comédia independente chamada The Foot Fist Way, sobre um instrutor de Tae Kwan Do que diz a um possível aluno: “Se você estivesse na prisão, você seria estuprado porque exala qualidades femininas”. Interessante - basta alguém ter qualidades femininas pra ser estuprado (se for mulher, então, nem se fala). Mais adiante, uma aluna quer se matricular na academia para manter a forma e também para ajudar a meditar, já que antes fazia ioga. E ele: “Ioga não te ajudaria numa situação de estupro em grupo. Medite sobre isso”. No final ele simplesmente urina nos pés da mulher adúltera, não sem antes dizer-lhe que deseja que ela seja violentada, pegue Aids e morra. Os críticos homens morriam de rir, incapazes de notar que esse tipo de discurso pode ser meio ofensivo às mulheres. Pra eles não é, porque misoginia é algo tão frequente, tão presente no dia a dia, que parece natural. Confesso que saí da sessão um pouco chateada, não tanto pela comédia mas pela insensibilidade dos críticos. Andei até o ponto de ônibus mais próximo, que fica perto de uma locadora, e o primeiro pôster que vi era de um DVD com o título de The Cattle Call (Chamado do Gado?). A foto era de uma bunda de calcinha. Se no mesmo dia eu tivesse visto alguém vestindo uma camiseta de “Bros Before Hos” (algo como “Prefiro Irmãos a Putas”), suspeitaria de uma conspiração.
Essa camiseta, campeã de vendas na internet, traz uma foto do Barack Obama, o “bro”, e uma da Hillary Clinton, a “ho”. É o que conta uma jornalista do Washington Post num ótimo artigo, “Misogyny I Won't Miss” (“Misoginia da qual não Sentirei Falta”). Ela diz que, agora que as primárias se aproximam do fim (Obama será o candidato democrata pra concorrer com o republicano McCain), não ficará com saudades de quebra-nozes com o corpo da Hillary, de todas as piadinhas chamando a candidata de prostituta e vadia, ou das comparações entre a senadora e a personagem da Glenn Close em Atração Fatal, entre inúmeros exemplos de misoginia. Acima de tudo, a jornalista não sentirá falta do silêncio em torno disso. Como eu já disse antes, parece que os EUA estão mais preparados pra ter um candidato negro (embora os negros representem apenas 13% da população americana) que uma mulher. E é só nos EUA? Bom, pra saber a resposta basta ouvir como as pessoas se referem à Marta Suplicy em São Paulo, que é parecido com o que falavam da Erundina, e que não será muito diferente do que falarão da Dilma Roussef, caso seja nossa primeira candidata a presidente. Ah, mas as críticas que se fazem a elas são diferentes, têm conotação ideológica. Claro, porque quando falamos nos candidatos homens, só nos concentramos na sua aparência física, na sua sexualidade e na sua parceira (ou falta de parceira). Igualzinho!
O mesmo Washington Post que publica um artigo reclamando da misoginia acaba de lançar um caderno feminino, que trata de assuntos femininos como moda, maternidade e dietas. Até aí, já estamos cansadas de saber que qualquer discussão mais cabeça realmente é muito pra nossa cabecinha fútil. O que chama a atenção é que, no artigo “Putting an End to Mindless Munching” (“Pondo um Fim a Comer sem Pensar”), que trata de comedoras compulsivas, a foto pra ilustrar é da... Hillary comendo! Não é uma graça? Não há nenhuma menção à Hillary no artigo, nem há notícias de que ela seja uma comedora compulsiva, mas isso não importa. Vamos colocar logo o rosto da americana mais conhecida atualmente num artigo condenando mulheres que comem! Sem dúvida, uma ótima mensagem a todas as leitoras.
Nada disso é novidade. Em 1992, quando Bill Clinton concorria à presidência, Hillary era destaque por ser uma possível primeira-dama bem-sucedida em sua própria profissão, ao invés de ser dona de casa. Os repórteres não a deixavam em paz sobre como ela ousara ter uma carreira, e numa ocasião ela respondeu: “Bom, eu poderia ter ficado em casa cozinhando biscoitos...”. Pronto. A frase inacabada da Hillary gerou um carnaval. Ela estaria ofendendo as mulheres que optam por ficar em casa cuidando dos filhos, entende? Viu como ela é uma feminista nojenta? A gente não falou? Taí a prova! Então lá foi a pobre Hillary tentar provar sua verdadeira feminilidade. Para tanto, divulgou sua receita favorita de biscoitos. Barbara Bush, mãe do estrupício, não gostou de ver sua seara invadida por uma feminista, e também relatou sua receita de biscoitos. A mídia decidiu organizar uma competição: publicou lado a lado as duas receitas e pediu às leitoras testarem ambas e apontarem qual a melhor. Nem lembro quem ganhou, mas preciso dizer quem saiu perdendo, mais uma vez? Ué, nós, mulherzinhas, que precisamos mostrar credenciais do quanto somos femininas até pra ser primeira-dama. Ser presidente tá fora de cogitação, óbvio.
Lembro daquela piada feminista do Clinton conversando com a Hillary sobre um frentista (estranho, nem existe mais frentista aqui), em que Bill dizia que a Hillary poderia ter se casado com o frentista, e não com o presidente do país mais poderoso do mundo. E a Hillary respondia que, se tivesse se casado com o frentista, ele seria o presidente americano. Pois é, essa piada parece mais atual do que nunca, agora que vemos que a misoginia é tamanha e que falta muito pros EUA elegerem uma mulher. Mas hoje já não tem a menor graça.