Querida Karina,
Você não me conhece, e até ontem eu nunca tinha ouvido falar de você. Algumas pessoas me contaram meio atrapalhadamente como você caiu na boca do povo da internet: você, com 16 anos, transou com seu namorado da mesma idade. Ele disse que você o traiu (que palavra forte, né? Trair! Sendo dita por jovens!), e, para se vingar, colocou fotos e vídeos de vocês dois fazendo sexo no seu perfil no Facebook. Foi isso que eu entendi.
Aí o pessoal das redes sociais, que pelo jeito não anda fazendo muito sexo (porque, se fizesse, não estaria tão obcecado pela vida sexual alheia), e aparentemente não imaginava que meninas de 16 anos transavam, e nunca tinha visto qualquer imagem de sexo anal, pos o seu nome nos Trending Topics do Twitter. E ficou fazendo piadinha o dia todo. E apostas sobre quando você vai se matar. Quer dizer, não me parece ser gente com muita empatia no coração.
Não sei bem por que estão falando em suicídio. Deve ser pelo caso da Amanda Todd, uma canadense de 15 anos que, quando tinha 13, cometeu o pecado mortal de mostrar os seios durante milésimos de segundo pruma câmera. Por causa disso, foi perseguida e bullied, teve depressão, implorou por ajuda, e acabou se matando. Eu falei sobre o caso no meu blog, e, sabe, enquanto escrevia, eu pensava: este post não vai ter discussão, todo mundo vai achar horrível uma sociedade que condena uma menina à morte, todo mundo vai chorar por Amanda e usá-la como exemplo para que uma atrocidade dessas –- julgar e negar apoio a uma garota que não cometeu crime nenhum -- não se repita.
Eu sou muito ingênua, porque não acreditei quando os comentários começaram a chegar. Era um montão de gente cretina dizendo que Amanda era uma vagabunda, que tinha mesmo que morrer, ou que foi fraca em se matar. Pena de morte pruma menina de 15 anos! Não pude acreditar no que vi.
Eu já tive quinze anos -– três décadas atrás, na década de 80. E foi com essa idade que descobri o sexo e gostei muito e experimentei bastante com vários carinhas. Eu era descompromissada e queria transar; eles também, uma situação win-win. Não pensei que estivesse fazendo algo de errado. Mas logo vi que o que valia pros meus amantes não valia pra mim. Vi que eles eram valorizados por terem experiência sexual, enquanto eu era desvalorizada por exatamente o mesmo! Ué, por que, se estávamos fazendo a mesma coisa (sexo)?
Eu já me considerava feminista naquela época, e nunca entendi aquele padrão duplo. Naqueles tempos não existia internet, mas esse detalhe não impedia que várias pessoas falassem mal de mim. E por quê? Porque eu fazia sexo (com camisinha)! Com rapazes que também faziam sexo! Óóó. Mas não abaixei a cabeça, não me envergonhei, porque eu sabia que não havia nada pra me envergonhar. Eu discutia e exigia respeito. Eu queria ter a mesma liberdade sexual que os meninos que eu pegava! Nem mais, nem menos, só a mesma liberdade. Por que seria pedir demais?
Não sei se as pessoas pararam de falar mal de mim, só sei que parei de ligar. E continuei tendo uma vida sexual bastante movimentada, até que, com 23 anos, me apaixonei, virei monogâmica (é uma escolha, não a única), e estamos juntos até hoje, 22 anos depois. Felizes.
Mas eu sempre tenho esperança que as coisas mudem. No meu tempo de adolescente, virgindade ainda era avaliada como importante pras meninas. Hoje não é mais, então eu pensava que o julgamento de garotas que fazem sexo tivesse, talvez, também caído por terra. Ledo engano. A patrulha da moralidade continua firme e forte, como o seu caso prova.
Duas coincidências aconteceram esta semana. Na segunda-feira, fui participar de um seminário sobre mídias machistas numa universidade particular, e uma professora comentou, espantada, sobre o que tinha visto num fórum com alunos daquela universidade. Parece que uma jovem aluna saiu com outro cara enquanto estava namorando um aluno, e foi um auê. A professora não entendia como tantas moças estavam chamando a menina de vadia, piranha, vaca e sei lá mais o quê. De fato, se já não faz nenhum sentido os homens se intrometerem, faz ainda menos sentido as mulheres condenarem o comportamento sexual de uma mulher. Porque o insulto que elas usam contra a colega foi ou será usado contra elas. Pruma mulher ser chamada de vadia, só precisa ser mulher. Mais nada.
A outra coincidência é que logo ontem, numa disciplina que ofereço de Poesia e Ensaios, estávamos discutindo um ensaio do escritor americano Gore Vidal. Em “Sex and the Law” (Sexo e a Lei), Vidal pergunta se o que é imoral deveria ser considerado ilegal. Ele cita vários exemplos: masturbação é vista como imoral por um monte de gente. Baseando-se nos valores dessas pessoas, masturbação deveria ser punida por lei?
Vidal aponta para o passado dos EUA para explicar essas anomalias moralistas. No século 17, puritanos deixaram a Inglaterra porque sentiam que não tinham muita liberdade religiosa por lá. Eles não eram perseguidos pelas convicções religiosas que tinham, mas eram proibidos de perseguir outros pelas convicções religiosas que tinham. Sonhavam com uma teocracia. Tentaram ir pra Holanda, que os expulsou. E aí lhes restou a América. Foram pra lá, montaram vilarejos, e passaram a perseguir uns aos outros por heresias, bruxarias, e mau comportamento sexual. Os americanos de hoje são descendentes desses puritanos. Qual a nossa desculpa aqui na América do Sul?
Vidal diz mais. Ele conta que adultério, tido como imoral, também era visto como criminoso. Em 1948, 242 pessoas em Boston foram presas por adultério. Acredita? Mais da metade dos estados americanos tinha leis contra casamento interracial. Um negro podia ser preso se transasse com uma branca, porque isso, além de imoral, era também considerado ilegal. Sexo anal e oral também eram proibidos por lei. Não só para pessoas do mesmo sexo, mas também para pessoas do sexo oposto. Ou seja, se marido e mulher cometessem sodomia, essa prática imoral que você e seu namorado fizeram, poderiam ir pra cadeia!
Claro que aquilo era letra morta e poucos eram presos por conta disso. Mas Vidal alerta do perigo que é ter leis contra crimes morais, mesmo que essas leis raramente sejam usadas. Porque elas podem ser usadas contra inimigos de vez em quando.
O chocante mesmo é que esse ensaio do Vidal, que pareceu tão atual ontem, quando todo mundo estava vasculhando a sua vida sexual, Karina, é de 1965. É mais velho que eu! Já já o ensaio completa meio século. Naqueles tempos pré-revolução sexual e pré-feminismo, homossexualidade era considerada doença, e casamento interracial, sodomia, felação e adultério eram considerados crimes.
Ainda bem que a gente evoluiu! Ainda bem que a gente soube separar igreja e estado, e impediu que uma moralidade religiosa tacanha continuasse sendo lei no nosso dia a dia. Ainda bem que hoje somos sexualmente livres, e que moças e rapazes, de qualquer orientação sexual, podem fazer sexo consensual sem serem julgados e condenados por um júri popular!
Ainda bem, porque já pensou se você tivesse nascido cinquenta anos atrás? Suas fotos, seu nome, seu endereço, estariam sendo espalhados por aí. E você seria condenada por ter feito sexo anal e oral com seu namorado. Ah, e teve o lance do adultério também! Provavelmente seu namorado sairia livre, porque ele é homem, mas pra você, Karina, sobraria a pena de morte. Você seria executada em praça pública!
Mas felizmente estamos no século 21, e hoje todo esse obscurantismo sexual e religioso parece coisa da Idade Média.
Karina querida, não se desespere. Tudo isso vai passar. Cabeça erguida, que você não fez nada de errado, e ninguém tem nada que te julgar. Que se danem os moralistas. Você é muito melhor do que eles.
Você não me conhece, e até ontem eu nunca tinha ouvido falar de você. Algumas pessoas me contaram meio atrapalhadamente como você caiu na boca do povo da internet: você, com 16 anos, transou com seu namorado da mesma idade. Ele disse que você o traiu (que palavra forte, né? Trair! Sendo dita por jovens!), e, para se vingar, colocou fotos e vídeos de vocês dois fazendo sexo no seu perfil no Facebook. Foi isso que eu entendi.
Aí o pessoal das redes sociais, que pelo jeito não anda fazendo muito sexo (porque, se fizesse, não estaria tão obcecado pela vida sexual alheia), e aparentemente não imaginava que meninas de 16 anos transavam, e nunca tinha visto qualquer imagem de sexo anal, pos o seu nome nos Trending Topics do Twitter. E ficou fazendo piadinha o dia todo. E apostas sobre quando você vai se matar. Quer dizer, não me parece ser gente com muita empatia no coração.
Não sei bem por que estão falando em suicídio. Deve ser pelo caso da Amanda Todd, uma canadense de 15 anos que, quando tinha 13, cometeu o pecado mortal de mostrar os seios durante milésimos de segundo pruma câmera. Por causa disso, foi perseguida e bullied, teve depressão, implorou por ajuda, e acabou se matando. Eu falei sobre o caso no meu blog, e, sabe, enquanto escrevia, eu pensava: este post não vai ter discussão, todo mundo vai achar horrível uma sociedade que condena uma menina à morte, todo mundo vai chorar por Amanda e usá-la como exemplo para que uma atrocidade dessas –- julgar e negar apoio a uma garota que não cometeu crime nenhum -- não se repita.
Eu sou muito ingênua, porque não acreditei quando os comentários começaram a chegar. Era um montão de gente cretina dizendo que Amanda era uma vagabunda, que tinha mesmo que morrer, ou que foi fraca em se matar. Pena de morte pruma menina de 15 anos! Não pude acreditar no que vi.
Eu já tive quinze anos -– três décadas atrás, na década de 80. E foi com essa idade que descobri o sexo e gostei muito e experimentei bastante com vários carinhas. Eu era descompromissada e queria transar; eles também, uma situação win-win. Não pensei que estivesse fazendo algo de errado. Mas logo vi que o que valia pros meus amantes não valia pra mim. Vi que eles eram valorizados por terem experiência sexual, enquanto eu era desvalorizada por exatamente o mesmo! Ué, por que, se estávamos fazendo a mesma coisa (sexo)?
Eu já me considerava feminista naquela época, e nunca entendi aquele padrão duplo. Naqueles tempos não existia internet, mas esse detalhe não impedia que várias pessoas falassem mal de mim. E por quê? Porque eu fazia sexo (com camisinha)! Com rapazes que também faziam sexo! Óóó. Mas não abaixei a cabeça, não me envergonhei, porque eu sabia que não havia nada pra me envergonhar. Eu discutia e exigia respeito. Eu queria ter a mesma liberdade sexual que os meninos que eu pegava! Nem mais, nem menos, só a mesma liberdade. Por que seria pedir demais?
Não sei se as pessoas pararam de falar mal de mim, só sei que parei de ligar. E continuei tendo uma vida sexual bastante movimentada, até que, com 23 anos, me apaixonei, virei monogâmica (é uma escolha, não a única), e estamos juntos até hoje, 22 anos depois. Felizes.
Mas eu sempre tenho esperança que as coisas mudem. No meu tempo de adolescente, virgindade ainda era avaliada como importante pras meninas. Hoje não é mais, então eu pensava que o julgamento de garotas que fazem sexo tivesse, talvez, também caído por terra. Ledo engano. A patrulha da moralidade continua firme e forte, como o seu caso prova.
Duas coincidências aconteceram esta semana. Na segunda-feira, fui participar de um seminário sobre mídias machistas numa universidade particular, e uma professora comentou, espantada, sobre o que tinha visto num fórum com alunos daquela universidade. Parece que uma jovem aluna saiu com outro cara enquanto estava namorando um aluno, e foi um auê. A professora não entendia como tantas moças estavam chamando a menina de vadia, piranha, vaca e sei lá mais o quê. De fato, se já não faz nenhum sentido os homens se intrometerem, faz ainda menos sentido as mulheres condenarem o comportamento sexual de uma mulher. Porque o insulto que elas usam contra a colega foi ou será usado contra elas. Pruma mulher ser chamada de vadia, só precisa ser mulher. Mais nada.
A outra coincidência é que logo ontem, numa disciplina que ofereço de Poesia e Ensaios, estávamos discutindo um ensaio do escritor americano Gore Vidal. Em “Sex and the Law” (Sexo e a Lei), Vidal pergunta se o que é imoral deveria ser considerado ilegal. Ele cita vários exemplos: masturbação é vista como imoral por um monte de gente. Baseando-se nos valores dessas pessoas, masturbação deveria ser punida por lei?
Vidal aponta para o passado dos EUA para explicar essas anomalias moralistas. No século 17, puritanos deixaram a Inglaterra porque sentiam que não tinham muita liberdade religiosa por lá. Eles não eram perseguidos pelas convicções religiosas que tinham, mas eram proibidos de perseguir outros pelas convicções religiosas que tinham. Sonhavam com uma teocracia. Tentaram ir pra Holanda, que os expulsou. E aí lhes restou a América. Foram pra lá, montaram vilarejos, e passaram a perseguir uns aos outros por heresias, bruxarias, e mau comportamento sexual. Os americanos de hoje são descendentes desses puritanos. Qual a nossa desculpa aqui na América do Sul?
Vidal diz mais. Ele conta que adultério, tido como imoral, também era visto como criminoso. Em 1948, 242 pessoas em Boston foram presas por adultério. Acredita? Mais da metade dos estados americanos tinha leis contra casamento interracial. Um negro podia ser preso se transasse com uma branca, porque isso, além de imoral, era também considerado ilegal. Sexo anal e oral também eram proibidos por lei. Não só para pessoas do mesmo sexo, mas também para pessoas do sexo oposto. Ou seja, se marido e mulher cometessem sodomia, essa prática imoral que você e seu namorado fizeram, poderiam ir pra cadeia!
Claro que aquilo era letra morta e poucos eram presos por conta disso. Mas Vidal alerta do perigo que é ter leis contra crimes morais, mesmo que essas leis raramente sejam usadas. Porque elas podem ser usadas contra inimigos de vez em quando.
O chocante mesmo é que esse ensaio do Vidal, que pareceu tão atual ontem, quando todo mundo estava vasculhando a sua vida sexual, Karina, é de 1965. É mais velho que eu! Já já o ensaio completa meio século. Naqueles tempos pré-revolução sexual e pré-feminismo, homossexualidade era considerada doença, e casamento interracial, sodomia, felação e adultério eram considerados crimes.
Ainda bem que a gente evoluiu! Ainda bem que a gente soube separar igreja e estado, e impediu que uma moralidade religiosa tacanha continuasse sendo lei no nosso dia a dia. Ainda bem que hoje somos sexualmente livres, e que moças e rapazes, de qualquer orientação sexual, podem fazer sexo consensual sem serem julgados e condenados por um júri popular!
Ainda bem, porque já pensou se você tivesse nascido cinquenta anos atrás? Suas fotos, seu nome, seu endereço, estariam sendo espalhados por aí. E você seria condenada por ter feito sexo anal e oral com seu namorado. Ah, e teve o lance do adultério também! Provavelmente seu namorado sairia livre, porque ele é homem, mas pra você, Karina, sobraria a pena de morte. Você seria executada em praça pública!
Mas felizmente estamos no século 21, e hoje todo esse obscurantismo sexual e religioso parece coisa da Idade Média.
Karina querida, não se desespere. Tudo isso vai passar. Cabeça erguida, que você não fez nada de errado, e ninguém tem nada que te julgar. Que se danem os moralistas. Você é muito melhor do que eles.