Várias pessoas me pediram para falar de Democracia em Vertigem, um documentário que foi aclamado em vários festivais internacionais,
como Sundance, que agora chegou a Netflix, e que fala de um tema muito importante pra gente, que é a política brasileira e como a gente chegou neste fundo do poço em que estamos. Gosto muito desses documentários com um tom pessoal, em que o documentarista aparece, narra, é um personagem, tipo o pai dos blockbusters dos documentários, Michael Moore.
É isso que Petra Costa faz, ela narra em primeira pessoa e começa dizendo que tem quase a mesma idade da democracia brasileira, pois nasceu em 1983. Aí ela põe uma imagem dela bebê nos ombros do pai, apreciando a multidão pedindo Diretas Já.
Petra é uma jovem cineasta de 35 anos, neta de uma família riquíssima, de empreiteiros da Andrade Gutierrez, e filha de pais de esquerda que tiveram que lutar na clandestinidade durante a ditadura militar. Ela conta que seu nome é uma homenagem a Pedro Pomar, fundador do PCdoB, assassinado pelos militares.
Seu filme, Democracia em Vertigem, está cheio de contrastes, de oposições, de lados opostos, de dicotomias. Há muitas cenas filmadas por drones para mostrar a imensidão de Brasília, uma cidade planejada, e planejada também, como lembra Petra, para manter o povo afastado.
Há um contraste muito grande dos espaços. Vemos enormes espaços vazios, como o Palácio da Alvorada, que aparece em várias cenas, e espaços lotados com multidões. Temos o próprio espaço, uma espécie de fosso, que separa o Palácio da Alvorada dos gigantescos gramados usados para manifestações. Temos os espaços cheios no sindicato.
O senado lotado, e o senado vazio, com um funcionário reconstruindo a bandeira azul e as palavras “ordem e progresso”. A festa da democracia que são as eleições e a comemoração da vitória. É bom pra gente ver a diferença do que foi no dia 1o de janeiro de 2003 e o que foi agora em 2019. Em 2003 tínhamos policiais molhados, quase que comemorando junto com o povo.
Há os espaços vazios, representados pelas empreiteiras, pela elite, pelos donos do poder. E o povo. Num ponto do filme, Petra narra um diálogo entre um político e um empresário: "Vc por aqui?", pergunta o politico. O empresário responde: "Nós sempre estivemos aqui. Vcs é que ficam mudando".
Além dos voos dos drones, há várias caminhadas. A primeira é com Lula demorando pra atravessar o Congresso após sua primeira vitória. É como se ele estivesse moldando argila, moldando seus aliados. A narração enfatiza como demora pra ele atravessar aquele pedaço em meio a tantos braços (incomparavelmente menores que aqueles que o tocam no Sindicato dos Metalúrgicos quando ele sai para ser levado à prisão). Mais pro final do documentário, vemos Bolsonaro passando sem interrupções no Congresso, mostrando quão insignificante ele era, quão baixo clero, e como ele não era representante de nada a não ser de si mesmo e da sua monumental estupidez.
O documentário está cheio de imagens exclusivas e ótimas sacadas, como a análise da postura de Michel Temer na posse de Dilma, em 2011. A volta que ele dá pra sair na foto. O abismo que os separa. Como ele segura as mãos. Uma figura nefasta, sem dúvida.
Outra figura nefasta que é Aécio Neves. Que a história nunca os absolva. Quando aparece o pulha Eduardo Cunha, a gente já tinha quase se esquecido dele. Foram tantos personagens sórdidos, mas claro que Cunha foi um dos gangsteres com papel principal.
Algo que não está no documentário, mas numa entrevista que Petra deu à revista Marie Claire, foi que ela não recebeu resposta para entrevistar Sérgio Moro, e só pôde entrevistá-lo por um minuto. Aí ela lhe perguntou se ele temia que a Lava Jato, copiada da Operação Mãos Limpas da Itália, trouxesse para o Brasil uma figura como Berlusconi. Segundo Petra, Moro riu e disse que esperava que não. E eis que temos agora uma figura que faz Berlusconi parecer um santinho competente.
|
O único que não sorri:
Lula entre Covas e Brizola, em
comício no 2o turno em 1989
(isso não está no documentário) |
Petra fala na entrevista que, depois de filmar 40 horas a votação do impeachment no Senado, ela tinha mudado de cara, tinha dificuldade para sorrir. Ela não fala isso no documentário, mas, ao colocar imagens sobrepostas de Lula em suas trajetórias, é possível ver como o semblante dele mudou. Eu lembro do Lula de São Bernardo do Campo, e ainda mais do Lula da campanha de 1989. Ele nunca sorria. Sua mudança foi gigantesca. Não sei até que ponto ele mudou de discurso, já que, ao contrário do que juram os reaças, Lula nunca foi comunista.
É bom que Petra pontua que foi removida a primeira mulher eleita do país e substituída por um ministério sem mulheres, só com homens brancos. E inteligente também que Petra não gasta tempo nem imagens com figuras coadjuvantes, ou figurantes mesmo, como Marcela Temer.
|
99% das pessoas que dizem não ser
de esquerda ou direita são
de direita (estatística minha) |
O documentário vai e volta, fala da construção de Brasília, do golpe de 1964, de como nunca prestamos contas com a ditadura militar, do golpe de 2016. Tudo é pertinente. Ela dedica um pouco de tempo às Jornadas de junho de 2013, que começou contra o aumento da passagem de ônibus em SP. Dilma tinha 65% de aprovação quando esses protestos começaram, protestos que ainda precisam ser melhor estudados, porque foi nesse momento que a direita começou a crescer.
|
Cartaz presente nos protestos de 2013:
"Vc acordou agora. A periferia
nunca dormiu" |
Olhando pra trás, eu me orgulho de não ter participado dessas passeatas. Me lembro que as bandeiras eram muito difusas, muito mal especificadas, e de eu me recusar a marchar lado a lado com fascistas. Me lembro quando gente que estava saindo pra protestar pela primeira vez dizia que “o gigante acordou”, e eu e várias feministas e ativistas dizendo que a gente não estava dormindo, que a gente sempre estava nas ruas, protestando. Creio que o documentário erra um pouco ao não mencionar nem a Copa de 2014 nem as Olimpíadas. Muitos dos protestos eram por hospitais e escolas padrão Fifa.
Há cenas magníficas, como o enterro de Marisa, o discurso de Lula e as pessoas chorando antes de ser preso, o Palácio da Alvorado retirando as coisas da Dilma. Na entrevista que li, Petra diz que deu sorte e pôde filmar no vácuo. Então tem os colchões sendo removidos. E pôde entrevistar funcionários. Por exemplo, a mulher da equipe de limpeza dizendo que não existe democracia, que não foi o povo que tirou Dilma. A cena mais bonita, mais poética e pessoal, é a de Petra dançando e girando na avenida, comemorando a vitória de Dilma em 2010.
Aliás, o que me marcou no documentário foi a dignidade de Dilma. Poucos aguentariam o que ela aguentou, de cabeça erguida, sem desistir, sem renunciar. Aí você vê a força dessa mulher. Eu posso não ter gostado do segundo governo de Dilma, mas tenho que tirar o chapéu pra ela. Nenhum desses homens honrados, desses machões “cidadãos de bem”, suportariam o que ela suportou.
O documentário dedica algum tempo a um dos capítulos mais vergonhosos da nossa história: a votação do impeachment na Câmara dos Deputados, com todos aqueles políticos corruptos agradecendo à família e a Deus.
Aí a gente vê como foi importante o discurso do Jean Wyllys, em que ele se diz “constrangido de participar desta farsa, desta eleição indireta, conduzida por um ladrão, urdida por um traidor conspirador, e apoiada por torturadores, covardes, analfabetos políticos e vendidos".
O discurso de Bolsonaro homenageando o Coronel torturador Brilhante Ustra é outro ponto marcante, porque a gente vê que ninguém aplaude. Naquele momento, num país sério, Bolso seria cassado politicamente e considerado inelegível. Bom, num país sério, um tipo como esse seria naturalmente inelegível, no sentido de que jamais seria eleito.
Eu discordo da análise de Petra que a elite rapidamente embarcou no barco de Bolsonaro. Bolso não era a primeira nem a segunda opção da elite (e nem da mídia que a representa) nem a pau. A elite queria o PSDB. Vendo que Alckmin e outros candidatos de direita não conseguiam crescer, aí sim a elite apoiou Bolso, porque, pra ela, qualquer coisa menos o PT. Mais vale acabar com a democracia e com o país do que a esquerda voltar ao poder. Aí vale tudo, até apoiar um sujeito que tinha fotos emolduradas no seu gabinete dos presidentes militares como seus heróis.
Ah, praqueles que vivem cobrando autocrítica do PT, o ex-ministro Gilberto Carvalho diz no documentário: "Achamos que poderíamos ser amigo dos grandes. Esquecemos do que nos propúnhamos na luta política com o que chamávamos ‘pé-dentro, pé-fora’. Ou seja, um pé na luta institucional; o outro na mobilização social. Ficamos concentrados no pé-dentro. [...] Começamos a fazer como os outros naquilo que condenávamos em financiamento de campanhas. É dali que vem a corrupção”. Na fala mais sensata, Carvalho lamenta não ter feito a reforma política. Já Lula lamenta não ter votado a regulamentação da mídia.
Pra mim um dos maiores erros do PT nesse xadrez político foi ter querido colocar Lula como ministro da Casa Civil para blindá-lo da prisão. Aquilo foi uma provocação que serviu como gás pro pedido de impeachment. Talvez o impeachment teria acontecido de qualquer jeito, com ou sem nomeação de Lula. Certamente demoraria mais, mas isso é análise pra outro momento, e um documentário de duas horas não tem como abranger tudo. Teria que ser uma minissérie.
Eu amei Democracia em Vertigem, uma análise tão triste, quase fúnebre da nossa história recente, que faz chorar. Falta talvez uma contextualização mais internacional. A subida da direita não é exclusividade brasileira.
E uma imagem que eu certamente incluiria foi a comemoração no puteiro da prisão de Lula. Aquilo diz tudo sobre o Brasil e sobre a misoginia que derrubou Dilma. Vocês lembram? Tem uma outra figura nefasta: o cafetão e gigolô Oscar Maroni, que vive de explorar mulheres sexualmente, que já esteve preso por sonegação de impostos e outros crimes, e que se candidatou a presidente em 2017 com o slogan "O Brasil está uma zona, e de putaria eu entendo". Vários reaças, incluindo os moleques patrocinados do MBL, estiveram no seu puteiro para comemorar a prisão de Lula em abril de 2018.
Maroni ofereceu cerveja de graça e exibiu uma de suas prostitutas nuas a um público de virjões que gritava "Mito! Mito!" Atrás dele, havia faixas saudando a ministra do STF Carmen Lúcia e o juiz Sérgio Moro. Ele prometeu mais cerveja se Lula fosse morto na cadeia. No discurso celebrando a prisão de Lula, Maroni disse ao seu ídolo, Moro, que ele teria um vale vitalício para frequentar o puteiro, “enquanto seu pau funcionasse”, e pediu para a Polícia Federal e o Ministério Público sortearem cinco agentes para frequentar o prostíbulo.
Esta imagem é emblemática por mostrar como os juízes andavam próximos e eram tão cúmplices da bandidagem que fingiam combater, e por provar que os coxinhas, além de terem muitos bandidos de estimação, também tem cafetão de estimação.
Petra termina perguntando, "De onde tirar forças para caminhar entre as ruínas e começar de novo?" É o que nós que ainda amamos no Brasil, apesar de tudo, temos que descobrir.