domingo, 30 de junho de 2013

LIVROS E DEDICATÓRIAS QUE NÃO ACABAM MAIS

Foto da Ana Paula dos seus robôs com meu livrinho

Agora que junho chega ao fim, posso fazer um balanço. A segunda edição do meu livrinho, ou melhor, a reimpressão, saiu no final de abril, com tiragem de 500 exemplares. Comprei 200 da Com-Arte, editora-laboratório da Edusp, pra revender
Eu pago a metade do preço de capa. E esta semana chegaram os 50 livros referentes a minha cota, de 10% da tiragem. Acho que, se eu for pra SP em agosto, comprarei outros cem. Assim terei livrinhos pra vender até o final do ano. E em 2014 espero lançar um outro livro (sem relação com cinema). É meu único jeito de ganhar algum dinheirinho com o blog. 
Então, entre maio e junho, vendi 159 exemplares, um lucro de R$ 1,330. Não está tão mal. O mais bacana é que isso significa 159 dedicatórias bastante pessoais. Quem comprou sabe que eu procuro saber um pouquinho da pessoa, pra ter capacidade de não escrever o de sempre ("Espero que vc goste! Com carinho, autora"). E é um ótimo modo de descobrir mais sobre quem me lê. São tantas histórias, tantas vivências, tantas perspectivas diferentes... 
Se eu juntar as 159 dedicatórias escritas este ano com as, sei lá, 250 do ano passado, dá uns três livros, sem exagero. E, mesmo que às vezes dê preguiça, a verdade é que eu gosto muito de fazer as dedicatórias. 
Só que às vezes eu me confundo um pouco. Por exemplo, recebi esta foto, e, na hora de guardar no arquivo, não anotei direito. Desculpa! Procurei um tempão nos emails, mas não sei quem é você.
Compartilho algumas palavras de quem comprou o livrinho. Comprem, por favor! Tenho 90 exemplares no armário, esperando por vocês.

Ana Paula, de BH: "Recebi seu livro há algumas semanas, fiquei super feliz quando o correio chegou, mas estou te enviando uma foto só agora porque estive ultra ocupada com meu trabalho, sem tempo nem pra ir ao cinema hehe. Trabalho como analista técnica na UFMG e, como você também trabalha em universidade, deve sabe como é a confusão de fim de semestre, né? Então, estou super ansiosa pra começar a ler e te dar um feedback, mas já adianto que adorei a dedicatória! Sou fã de desenhos, cinema e de alguns outros aspectos da cultura japonesa. Coloquei dois dos meus queridos robôs (japoneses) posando pra foto com o seu livro: o Rick Dias (o azul) e o Getter Robo (o vermelho). Pois é, coleciono e monto robot kits (model kits de robôs), esse é um dos meu hobbies favoritos."

Patty, aluna de mestrado em Estudos Culturais na USP, leitora antiga, já com guest post publicado, e outro, fantástico, que planejo publicar esta semana (suspense...): "O seu livro é muito gostoso de ler. Eu fico um pouco desanimada em alguns momentos, porque eu vi algo em torno de 15% dos filmes que você cita... Mas, fora isso, é uma delícia adquirir tanto conhecimento sobre cinema. Eu estou até lendo para o Caquinho (foto), e ele adora. Também adorei a dedicatória personalizada, achei muito atenciosa e sensível. Recomendo totalmente!"  
O Fábio, que eu não conheço (certamente não pode ser este Fábio), não sei se ele comprou o livro através de mim, não lembro se escrevi dedicatória pra ele, redigiu uma resenha muito legal do livrinho. Claro que a resenha é elogiosa. F. diz, entre outras coisas: "Sem dúvida, essa feminista de carteirinha  tem um jeito diferente e cativante de falar de cinema". Leia o restante aqui.
E sem muito a ver com o livro: o Feminismo sem Demagogia me fez uma linda homenagem, colocando a minha foto no meio de feministas super importantes (imagem acima). Óbvio que não mereço estar lá, mas agradeço. Ah, tem alguma coisa a ver com o livro sim, porque a Verinha, uma das lindas por trás do FsD, tá na maior enrolação pra comprá-lo. 
Ontem eu incluí alguns links de blogs que recomendo (é só ver a coluna ao lado -- blogroll? Ainda se fala assim?), e removi outros. Tinha uns que não eram atualizados desde o ano passado, aí eu tive que remover, sorry.
E acho que vou ter que entrar no Facebook, gente. Contra a minha vontade, mas vou. Tem uma página no FB do bloguinho, só que é de uma fã, não é minha. Meu medo é gastar tempo demais (que já não tenho) no FB, e que os comentários migrem pra lá. E aqui nos posts os comentários ficam todos bonitinhos, dá pra lê-los como se fosse um fórum de debate. Os comentários de posts de cinco anos atrás continuam aqui. E no FB ficam perdidos. Ou não? 

sábado, 29 de junho de 2013

GUEST POST: O ANO MAIS LONGO DA MINHA VIDA

N, que hoje tem 22 anos, me enviou este relato de um relacionamento fadado ao fracasso desde o começo. 

Comparando o meu caso aos outros, o meu parece bem besta, mas não deixa de ser algo que me afetou, que machucou, e eu imagino que só não foi pior porque eu saí na hora certa.
Quando eu tinha 18 anos, conheci um rapaz de 23 numa balada. Não lembro exatamente como foi que o conheci, como começamos a conversar... Eu estava muito bêbada.
Trocamos telefones e no outro dia ele me ligou. Ele ia ter que se ausentar por uma semana e depois que voltasse iriamos fazer alguma coisa. Durante essa semana, ele me ligava todo dia e falava que não parava de pensar em mim e que mal via a hora de voltar pra me encontrar de novo. Eu ria porque nunca gostei de sentimentalismo, mas gostava porque nunca tinha namorado de verdade e pensava nessa possibilidade.
Quando ele voltou, marcamos de nos encontrar em um lugar da minha cidade onde tem vários bares. Eu fui com meus amigos e ele apareceu depois; foi tudo normal.
No outro dia, um sábado, marcamos de nos encontrar à tarde na praia. Ele me pediu em namoro e me deu uma aliança. Achei aquilo bizarro, tínhamos acabado de nos conhecer e ele já queria algo sério. Eu não queria aceitar, mas da forma que ele falou não me restava escolha. Aceitei: eu tinha um namorado, uau.
Nessa noite fomos a mesma balada em que nos conhecemos. Meus amigos e amigas estavam todos lá, mas ele não queria que eu conversasse com ninguém, ficava toda hora me chamando, me puxando pelo braço. Meus amigos deixaram claro que não foram com a cara dele e eu disse que era só um namorinho bobo, que logo ia passar. Mesmo assim, Lola, eu percebi que estava me metendo em coisa ruim e que muita coisa ruim viria pela frente. [Nota da Lola: Meninas, quando perceberem algo assim, sigam sua intuição e terminem o relacionamento. Sério! Faça o teste].
Meus amigos são todos homossexuais e ele não gostava disso. Achava estranho, não aceitava. Não aceitava eu ter amigas lésbicas e nem amigos gays.
O relacionamento foi seguindo. Muitas brigas, muito controle. Ele viajava a trabalho, então ficava duas semanas aqui e duas semanas fora. Quando ele estava fora, me ligava toda hora querendo saber o que eu ia fazer, para onde eu ia, com quem eu ia. Quando ele estava aqui era uma tortura, eu só podia ficar na casa dele, não podia ver minha mãe direito, minha família, sair com meus amigos.
No começo eu achava normal, mas com o tempo percebi que era sufocante. 
Ele me reprimia por minha condição social ser melhor que a dele, pela minha mãe ganhar bem, por eu morar num bairro bom, por ter estudado numa escola cara. Ele achava que eu não era digna por ser de classe média alta e que ele era melhor do que eu por ter vindo de um berço mais humilde. Falava que os amigos riam dele por namorar uma "patricinha metida a alternativa, underground".
Lembro de um dia que ele chamou minha mãe de dondoca. Fiquei com muita raiva. Logo  minha mãe que sempre trabalhou para ter as coisas, que me criou sozinha sem a ajuda do meu pai, que alcançou tudo que tem sozinha, que nunca precisou de homem nenhum e que ainda trabalha -- e muito.
Aliás, minha mãe nunca apoiou o relacionamento, ela achava humilhante e tinha medo que coisas ruins acontecessem. Ela não queria isso pra filha dela. Meus amigos pensavam o mesmo, eles viam como eu estava mal, isolada, triste.
Era muito complicado, eu ficava mais tempo na casa dele no que na minha casa. E eu ficava lá, querendo ir embora. Ele tinha umas ideias exageradas, queria ter um filho, queria morar comigo. Eu falava que isso podia acontecer, mas não agora, que ainda era cedo. Ele falava que tinha ser agora, fazia drama para eu morar com ele, falava que era ele ou minha mãe. A gente brigava muito. Ele falava que eu era gorda, reclamava das roupas que eu usava, da cor do meu cabelo, de tudo. Minha autoestima vivia no pé.
Com o tempo, minha personalidade foi se modificando e eu comecei a ser controlada por ele. Eu não respirava mais. Eu queria ser livre, mas não conseguia. Minha maior felicidade era quando ele viajava: eu podia passar os sábados com minha família, sair e rir com meus amigos. Eu podia ser feliz. É claro que ele ligava toda hora, mas eu mentia e conseguia aproveitar um pouco.
Um dia eu ia pra casa dele, mas quando eu estava no caminho ele ligou e disse que não era para eu ir. Ele estava pintando a parede e eu tenho alergia à tinta.
No outro dia ele me liga e diz que tinha uma coisa pra contar. Ele disse que tinha ficado com uma menina que viu na rua. Minha reação foi de espanto, fiz um draminha, mas no fundo não liguei, achei ótimo porque podia usar como pretexto para uma separação.
Ele chorou, disse que estava arrependido. Apesar de tudo, o relacionamento continuou, mal, mas continuou. Tudo que eu queria era terminar, mas eu tinha medo, e ele era dramático e manipulador. 
Um dia eu disse que não aguentava mais e decidi terminar, e o chão dele caiu. Eu já tinha falado outras vezes que queria terminar, mas essa foi séria.
Ok, terminamos, mas fizemos a besteira de continuar a nos ver. Um dia decidi acabar tudo de vez. No outro dia ele me ligou com raiva, falou um monte de coisa, disse que me amava, que nunca ia esquecer de mim, que eu era a mulher da vida dele. Falou que fomos feitos um para o outro, que ia me seguir... Fiquei com medo, Lola, muito medo. Já ouvi histórias parecidas com essas, de homens obcecados que acabam matando a ex. Eu comecei a me isolar, não queria mais fazer nada. Ele me ligava todos os dias e falava que iria onde eu fosse, que faria tudo para voltar, que era capaz de tudo.
Saí com meus amigos e o encontrei no local. Ele toda hora puxava meu braço, queria falar comigo, ficar comigo, queria que eu fosse pra casa dele. Eu fui forte e não caí, mais uma vez, na conversa dele. Eu estava cansada, e um amigo meu me levou até o táxi. Eu tinha que atravessar uma rua perigosa que costuma ter assaltos e atropelamentos.
Um dia ele me viu com um amigo e mandou uma mensagem pro meu celular: "E aí p*ta, deu muito para aquele cara?" Eu não respondi, mas ele mandou outras e eu respondi algo do tipo "O que eu faço não é da sua conta".
Decidi, junto com minha mãe, que o melhor a fazer era deletá-lo das minhas redes sociais. Mudei também o número do celular. Deletei ele da minha vida. Mas fiquei muito tempo com medo.
Um dia eu o vi com uma moça, fiquei feliz. Soube depois que ele ia ter um filho, isso me fez muito bem. Meu medo já havia passado e eu estava vivendo minha vida de novo. Eu só espero que essa moça esteja feliz e não esteja passando pelo que eu passei. [Ela provavelmente está passando pela mesma coisa, N.]
Foi só um ano, foi pouco, mas foi horrível. Foi o ano mais longo da minha vida, nunca mais namorei depois disso, tenho medo de encontrar alguém igual. Estou bem, mas temo ser controlada dessa forma de novo. Lembrar disso só me faz perceber como fui boba e idiota.
Ainda bem que eu acabei cedo, se eu continuasse sabe lá o que ia acontecer.

sexta-feira, 28 de junho de 2013

GUEST POST: NÃO EXISTE CURA PARA O QUE NÃO É DOENÇA

Semana passada publiquei um ótimo guest post do Guilherme, que é psicólogo e gay, mas alguns leitorxs sentiram falta de um texto menos pessoal e mais técnico sobre o projeto de lei apelidado de "cura gay".
Pedi então à linda e maravilhosa Amana Mattos, professora de Psicologia da UERJ, pós-doutora em Psicologia, e autora do livro Liberdade, Um Problema do Nosso Tempo, para escrever sobre o tema. 
Amana já contribuiu com dois guest posts fenomenais aqui pro blog (leia e/ou releia). Mesmo com a agenda totalmente ocupada de uma pesquisadora, ela topou. Deleite-se!

Na semana passada, num momento em que todxs nós estávamos mobilizadxs pelas passeatas, manifestações e discussões que tomaram o país, recebemos a notícia revoltante de que a Comissão de Direitos Humanos e Minorias, presidida pelo Pastor Marcos Feliciano, aprovou, numa sessão obscura, o Projeto de Decreto Legislativo (PDC) nº 234/2011, de autoria do deputado João Campos (PSDB-GO).
O projeto, que vem sendo apelidado de “cura gay”, foi aprovado por “votação simbólica”, isto é, sem contar com o quorum mínimo de parlamentares necessário para esse tipo de votação. Ele ainda vai percorrer outras instâncias até chegar a ser votado no plenário. Entretanto, o assunto já repercute no país, e tem sido alvo de diversas críticas e manifestações, como a que aconteceu em São Paulo na última sexta-feira, que teve como pauta única essa questão e reuniu mais de 4 mil pessoas, assim como várias outras que ocorreram em todo o país na quarta.
Para nós, psicólogxs, e para todos aquelxs que conhecem o Código de Ética que rege a atuação dxs profissionais registrado nos Conselhos Regionais de Psicologia (para atuar profissionalmente é preciso ter o registro), esse projeto é, além de uma afronta à autonomia do Conselho Federal de Psicologia (CFP), uma piada de mau gosto, porque torna legítimos “tratamentos” psicoterápicos para uma condição que não é reconhecida como doença  pela Psicologia.
Um projeto absurdo que vem mobilizando a sociedade, mas também estimulando setores conservadores e extremistas religiosos a vociferarem todo o seu preconceito contra homossexuais. Se considerarmos que no Brasil a violência contra homossexuais atinge níveis alarmantes e que a homofobia ainda não é considerada crime (ao contrário do racismo e da violência contra a mulher), vemos que um encaminhamento desse tipo pode provocar muito mais estragos do que poderíamos supor num primeiro momento.
Mas sobre o que, de fato, trata o projeto? (quem quiser, pode ler o documento na íntegra aqui). Resumidamente, ele propõe que sejam suspensos dois artigos de uma resolução do CFP, em vigor desde 1999: o parágrafo único do artigo 3º, que estabelece que “os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades."
E o artigo 4º, que estabelece que “os psicólogos não se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica.”
Acho importante trazer aqui o texto dos dois artigos em questão porque são muito claros: o CFP, respeitando a decisão da Organização Mundial de Saúde de 1990, não considera homossexualidade uma doença. Se não é doença, não pode ser tratada. E qualquer psicólogo que ofereça tratamento psicoterápico que prometa “reversão” da orientação sexual de alguém pode vir a ter seu registro cassado. O CFP divulgou uma nota precisa e esclarecedora sobre a questão, e recomendo fortemente a leitura.
Mas... que ideia é essa de que é possível “tratar” homossexuais e oferecer uma “cura” a uma suposta “doença”? Até a década de 1970, os manuais de psiquiatria norte-americanos classificavam a homossexualidade como “distúrbio de personalidade sociopática”. Com a luta dos movimentos LGBT, essa classificação caiu, pois ficou evidente de que se tratava de um julgamento moral, não “científico”. O grande argumento por parte dos movimentos para a despatologização da homossexualidade, desde então, tem sido o de que o que gera sofrimento para os homossexuais não é a sua condição, ou sua orientação sexual em si, mas todas as experiências de preconceito e discriminação. Em outras palavras: se a sociedade aceita os homossexuais, não faz sentido afirmar que estes sejam “doentes”.
Além disso, surpresa!, o sofrimento psíquico não é exclusividade de gays, lésbicas, bissexuais e pessoas trans*. Heterossexuais sofrem -- e sofrem muito -- com questões relacionadas a sua sexualidade. E nós, psicólogxs, como profissionais formadxs para lidar com questões subjetivas -- seja na clínica, na escola, nos hospitais, nas organizações -- devemos acolher todo e qualquer sujeito que nos procure precisando de ajuda. Como classe profissional, temos que oferecer o que estiver ao alcance da psicologia enquanto campo diverso para ajudar e apoiar as pessoas a lidarem com suas dificuldades, crises, angústias. 
Entretanto, aquilo que não podemos fazer é oferecer um tratamento que prometa “reverter” a orientação sexual de alguém. Primeiro, porque isto é antiético,  e segundo, porque a validade desse tipo de “tratamento reversivo”, ou “terapia reparadora”, é altamente questionada entre pesquisadores da área. 
Em 2012, o renomado psiquiatra Robert Spitzer veio a público dizer que os resultados de uma pesquisa realizada por ele anos atrás sobre a eficiência dessas “terapias reparadoras” eram falsos -- ou, academicamente falando, “continham erros metodológicos graves que invalidavam a pesquisa”. O psiquiatra pediu “desculpas à comunidade gay” por ter divulgado sua pesquisa, uma vez que os resultados não eram concludentes.  
Cabe a pergunta: por que esse furor em regular e “corrigir” a sexualidade alheia? Com tantas coisas importantes acontecendo no país, por que alguns políticos insistem em discutir o sexo e as práticas das pessoas? Infelizmente, não apenas no Brasil mas em todo o mundo, o discurso conservador e de direita, no que diz respeito às questões sexuais e reprodutivas, vem de braços dados com a religião -- mesmo nos países em que o estado é (ou deveria ser) laico. É o que temos visto em relação ao Estatuto do Nascituro, ao tratamento oferecido em “comunidades religiosas" (com recursos públicos!) para usuários de drogas internados compulsoriamente e, claro, para o projeto apelidado de “cura gay”. 
Nos EUA, “tratamentos" que se valem de preceitos religiosos para a reversão da homossexualidade são bastante difundidos, mas vêm perdendo força a cada dia. Recentemente, causou comoção a notícia de que a maior comunidade do mundo dedicada à “cura gay” fechou suas portas, e seu líder, Alan Chambers, assumiu ser homossexual. Chambers denunciou explicitamente a “terapia reparadora” praticada nessas comunidades, reconhecendo que, de fato, não conheceu ninguém que tivesse efetivamente mudado sua orientação sexual após passar pelo “tratamento”.
A direita religiosa norte-americana, por sua vez, vem causando danos não apenas aos americanos, mas também a povos de outros países, reproduzindo o que há de pior e mais deletério em termos de colonialismo e opressão. Para terem uma ideia do que vem sendo promovido pelos missionários americanos em países africanos, sugiro dar uma olhada nesse vídeo indigesto.
Então, recapitulando: o projeto que o senhor Marco Feliciano está se esforçando para aprovar se resume a propor a suspensão de artigos de uma resolução do CFP que proíbem que psicólogxs ofereçam tratamento para algo que não é uma doença. Um recente editorial da Folha de S.Paulo resumiu muito bem o absurdo desta proposta: “Um médico não pode propagandear terapias para doenças incuráveis. Um advogado não pode prometer vitória líquida e certa. Cabe aos conselhos profissionais, e não ao Legislativo, determinar o que é charlatanice em cada campo.” 
Quero acreditar, mais do que nunca, que esse projeto não passará. Que neste momento de grandes mobilizações a sociedade brasileira dirá um sonoro NÃO aos interesses escusos e obscurantistas de políticos religiosos que querem empurrar goela abaixo seus valores para todxs os cidadãos diversxs desse país. 
Vamos dizer NÃO nas ruas, nas redes sociais, em cada lugar em que estivermos. A psicologia vem lutando muito para despatologizar a sexualidade, e um projeto como este ameaça seriamente o modo como cada um de nós vive o seu desejo. Se agora a questão em xeque é a homossexualidade, o que pode vir amanhã?

quinta-feira, 27 de junho de 2013

WENDY DAVIS, HEROÍNA

O sorriso da senadora

Este ano Roe vs. Wade, a decisão do Suprema Corte, um caso judicial histórico e clássico por reconhecer o direito ao aborto nos EUA, comemora 40 anos. Prometo que vou falar mais disso, porque é bom saber o que feministas de outros países tiveram que fazer para vencer todo um sistema. 
Mas a guerra que os reaças travam contra o aborto nos EUA desde que Roe vs. Wade foi aprovada está longe de acabar. Aliá, muito pelo contrário. Nos últimos dois anos, um número recorde de 135 exigências anti-aborto foram passadas em vários estados (por exemplo, consentimento dos pais para realizar o aborto, aconselhamento de gente que quer que a mulher mude de ideia, tempo de espera, forçar a mulher a fazer ultrassons etc). Apesar do aborto ser legal nos EUA, 87% de todos os condados americanos não têm clínicas que realizam abortos. E 35% das mulheres americanas vivem nesses condados. Calcule então como é difícil para uma americana fazer uma aborto seguro -- mesmo com a autorização da lei.
O número de abortos nos EUA está em declínio: de 1,6 milhões de interrupções de gravidez em 1990 para 1,2 milhão em 2005. Seria uma notícia a se comemorar, se esse declínio fosse causado por maior educação sexual da população e acesso a métodos anticoncepcionais. Mas não, o número de abortos não caiu porque o número de gravidezes indesejadas diminuiu. 
Foi porque muitas clínicas foram fechadas, devido a exigências cada vez mais descabidas, e a ataques terroristas. Pois é, não são poucos os "pró-vida" que matam médicos e bombardeiam clínicas que realizam abortos. Nos últimos dois anos, seis clínicas foram bombardeadas nos EUA por essa gente que vê um embrião como um ser muito mais valioso que uma pessoa que já nasceu.
Ano passado, durante as eleições americanas, vimos os republicanos travarem uma verdadeira guerra contra os direitos reprodutivos das mulheres. Felizmente, as mulheres deram o troco nas urnas e derrotaram o candidato Mitt Romney, reelegendo Obama. Os conservadores estão atordoados até agora: como farão para recuperar o poder, agora que mulheres e outros grupos historicamente oprimidos têm quórum suficiente para decidir uma eleição? Como acabar com os direitos desses grupos sem que eles percebam? Tem gente que tem a solução: retirar o direito das mulheres votarem, ué, conquistado a duras penas mais de 90 anos atrás.
Agora você já conhece o contexto. É neste cenário que entra uma personagem que você e eu nunca tínhamos ouvido falar antes de anteontem: Wendy Davis, uma americana de 50 anos, que teve uma infância pobre, que trabalha desde os 14. Filha de mãe solteira, ela mesma foi mãe solteira com 19 anos. Mais tarde, foi a primeira em sua família a fazer faculdade. Depois se graduou em Direito em Harvard. 
Foi eleita senadora pelo partido democrata em 2008, derrotando um republicano de longa data. Em seguida, republicanos tentaram fazer um novo arranjo eleitoral no Texas, para que candidatos democratas fossem mandados para distritos mais conservadores, onde não teriam chance. Ano passado, alguém jogou duas bombas no escritório de Davis. Ninguém ficou ferido (atentados são bem comuns nos EUA -- lembra de Gabrielle Giffords?).
A senadora Davis é entusiasta de corrida e ciclismo. Pra sua maratona de onze horas, ela calçou os tênis de ginástica que usa sempre. Esses aqui:
Um pouquinho mais de contexto, antes de continuar. 
Em Austin (a cidade mais progressista do Texas, segundo uma amiga minha que fez doutorado-sanduíche por lá; o slogan da cidade é "Keep Austin weird"), os senadores tinham até a meia noite de terça para votar um projeto de lei que aumentaria as restrições ao aborto (que, só pra lembrar, lá é legalizado). A proposta baniria qualquer aborto depois de 20 semanas e dificultaria as clínicas de conseguirem licença pra funcionar.
Se o projeto fosse aprovado, sobrariam talvez cinco clínicas em todo o estado do Texas (que, depois do Alasca, é o maior estado americano em território). O estado já tem poucas clínicas -- só 42 em toda sua extensão territorial. As mulheres de Oklahoma já tem que ir pro Texas pra poder abortar. Se a lei passasse, as do Texas iriam pra onde? Voltariam pro quintal pra realizar abortos do jeito que abortos clandestinos foram feitos durante décadas -- com cabides? Provocando hemorragia e a morte de milhares de mulheres?
Para barrar essa aberração, o único meio era impedir que o projeto fosse votado dentro do prazo. Portanto, Wendy Davis usou um procedimento legal pra lá de estranho, o filibuster, e uma multidão de feministas foi lá acompanhar. Um filibuster é um treco hiper esquisito. A pessoa pode falar por quanto tempo quiser, mas há regras. Ela não pode parar pra tomar água ou ir ao banheiro. Ela não pode se sentar nem se apoiar em algum lugar. Se ela se desviar do assunto mais de três vezes, seu direito de falar é encerrado. Imagina o suspense, a tensão. 
Davis começou a falar às 11 da manhã de terça. Ela tinha que ocupar a plenária até a meia noite, sem fugir do tema. Para tanto, ela discursou sobre o que essa lei representaria, e leu um punhado de depoimentos de mulheres que costumam ser ignoradas pelos homens que fazem as leis. Num certo momento, ela disse, para mostrar o quanto os senadores desconhecem o assunto: "Legisladores homens, larguem o negócio da vagina ou vão estudar medicina". 
De repente, as pessoas de todo o país passaram a prestar atenção naquele drama. 180 mil pessoas nos EUA acompanharam os acontecimentos online, incluindo o presidente Obama, que tuitou: "algo muito especial está acontecendo em Austin esta noite". Em poucas horas, o número de seguidores no Twitter de Davis foi de 1,200 para 57 mil (agora já passou dos cem mil).
Minutos antes da meia noite, um dos republicanos exigiu que o discurso de Davis fosse interrompido. Foi a hora de outra senadora tentar falar. Leticia Van de Putte, que estava voltando do funeral de seu pai, perguntou aos senadores, "Quando uma senadora precisa erguer sua voz para ser ouvida pelos seus colegas homens na sala?" Ouviam-se gritos e palmas de centenas de manifestantes, muitas das quais foram presas pela polícia texana. Os republicanos finalmente conseguiram aprovar a emenda, mas só à meia noite e dois minutos.
Três horas depois, os republicanos tiveram que aceitar que a votação não foi válida, porque tinha sido feita depois do prazo. Eles ficaram furiosos com a derrota. Afinal, os "pró-vida" tinham certeza que não haveria tanta resistência num estado como o Texas. De onde surgiram todas aquelxs feministas?!
Porque é o Texas, né? O estado de onde veio o Bush. Um estado ultraconservador. Aquele estado que a personagem de Susan Sarandon se recusa a pisar em Thelma e Louise
Alguns especialistas notam que o Texas está pouco a pouco se tornando mais liberal, e que talvez acompanhe a tendência do que ocorreu com a Califórnia nos anos 80, que de estado que sempre elegia republicanos passou a ser um estado que vota em candidatos democratas -- e define eleições presidenciais. 
A garra de Wendy Davis compõe o tipo de roteiro que os americanos adoram (e a gente também). É a tal história do herói solitário, individualista, derrotando os gigantes sozinho (que dizer, às vezes somos condicionadxs a torcer pelos gigantes). A diferença é que esse herói quase sempre é homem e caladão, com cara de poucos amigos. E Wendy é tudo menos silenciosa: ela falou durante onze horas. E teve o apoio de um monte de manifestantes, tão aguerridas quanto ela.
Guarde esse nome. Wendy é jovem e pode ser candidata a governadora do Texas nas próximas eleições. Dependendo do que acontecer, ela pode se tornar a primeira presidenta americana. Você leu essa previsão mirabolante aqui primeiro, tá? Wendy tem potencial pra isso. O único porém é que ela ficará sempre ligada a um tema tão polêmico quanto aborto. Mas sua trajetória de vida pode falar mais alto e atrair o voto de quem define eleições.
Referente ao projeto de fechar clínicas no Texas e em tantos outros estados, é óbvio ululante que os conservadores não desistirão. Mas, adivinhe? Davis e sua legião de apoiadoras feministas também não. 

Aqui no Brasil, a luta continua. 
Já temos uma das leis mais restritivas do mundo, e querem tirar mais direitos da gente. Amanhã às 18 h, na UFC, eu e um time de mulheres super competentes falaremos sobre o Estatuto do Nascituro. No sábado tem ato contra o Estatuto em Fortaleza.