Mais um caso para provar como está insuportável ser mulher neste país.
Vocês devem lembrar de um crime hediondo que aconteceu em junho de 2019 em Praia Grande, litoral de SP: uma jovem de 19 anos queria ir de Campinas a uma festa em São Vicente, mas dormiu no ônibus e foi parar na cidade vizinha. Ao desembarcar do ônibus às 23h40, pediu orientações a dois PMs, Danilo de Freitas Silva e Anderson Silva da Conceição, que estavam em frente a um shopping, sobre como chegar no terminal rodoviário.
Um dos policiais deu a direção do ponto de ônibus para ir ao terminal, mas o outro puxou conversa. Perguntou seu nome, de onde ela vinha, se era menor de idade, se era casada. Os dois PMs se falaram rapidamente e então ofereceram carona até o terminal. Ela aceitou: "Eu pensei que estaria mais segura indo com eles do que ficar no ponto sozinha de noite, esperando o ônibus passar".
A viatura fez o percurso usando giroflex (com a sirene visual e o sonoro de emergência) ligado. Os PMs desviaram o caminho. Um deles se sentou no banco traseiro, com a vítima, e a estuprou vaginalmente. Também a obrigou a fazer sexo oral e engolir o sêmen. A perícia encontrou esperma na calça, sapatos, e no chão do carro. Após o estupro, a jovem foi deixada no terminal. Ela estava tão abalada que esqueceu seu celular na viatura.
Foi o sogro de uma amiga em São Vicente que insistiu para que ela denunciasse, para que isso não acontecesse com outras mulheres. Ela tinha medo. Afinal, estaria acusando a polícia militar, conhecida por desrespeitar direitos humanos. Mas denunciou, fez exames, corpo de delito, tomou coquetel, prestou depoimento.
O ouvidor das Polícias que colheu seu depoimento disse: “É um absurdo, um crime inaceitável para quem é responsável por garantir a segurança das pessoas. Estou convencido de que houve violência sexual, que ela foi violentada dentro da viatura". Uma das mentiras dos PMs foi que os dois policiais se sentaram nos bancos da frente da viatura, mas câmeras captaram um deles no banco de trás, como relatou a vítima.
Na época, a vítima deu uma entrevista à Ponte. A reportagem perguntou como ela se sentia. Ela respondeu: "Eu praticamente perdi a minha vida. Eu não posso fazer mais nada, eu não posso mais andar sozinha, não posso mais ir até a padaria sozinha. Eu só fico em casa deitada”. Ela emagreceu mais de oito quilos. Só vomitava. Tinha medo. Amigos recomendaram que ela saísse do país, já que os policiais poderiam se vingar. Ela ficou mais aliviada quando eles foram presos. Por pouco tempo.
Esses dias saiu a sentença e ela foi lida aos réus. Ela está em segredo de Justiça mas felizmente foi divulgada pela imprensa, ou não saberíamos deste absurdo (cada vez mais vemos como o tal segredo de Justiça serve para proteger os criminosos, não a vítima): o juiz militar Ronaldo Roth concluiu que, como a vítima não reagiu, "nada fez para se ver livre da situação", então o sexo foi consensual.
Para o juiz, não houve violência (estupro sem a vítima ser espancada ou morta pelo jeito não é violência) nem ameaça (dois homens armados num carro fechado não é nada ameaçador): "a vítima poderia sim resistir à prática do fato libidinoso, mas não o fez". A culpa, portanto, é da jovem. Ela que não resistiu.
Segundo os advogados do PM que dirigia a viatura (que tentaram provar que a jovem participou de uma festa após o estupro), ele foi surpreendido com o que aconteceu no banco de trás e não sabia da intenção do colega. Já o colega, o outro PM, alegou que a vítima é que tomou a iniciativa. Ele foi "condenado" a 7 meses de detenção em regime aberto por libidinagem ou pederastia no ambiente militar. Não foi nem será preso. O juiz suspendeu o cumprimento da pena. O colega cúmplice foi absolvido.
Isso é muito sério. Em grande parte dos estupros, a vítima não reage, pois sabe que pode ser morta se resistir. Aliás, essas são algumas das orientações da polícia em caso de assalto: não reagir, manter a calma, não discutir, fazer o que o criminoso mandar, não tentar fugir, pois outros criminosos podem estar dando cobertura, ligar para a polícia assim que possível, transmitindo o trajeto e todos os detalhes, registrar um BO.
Pelo jeito, a vítima do estupro na viatura em movimento fez exatamente isso. Seguiu todas as orientações. Mas se a não reação ao estupro faz um juiz decidir que não houve estupro, bom, haverá cada vez menos estupradores condenados. Ou isso só vale quando o estuprador é um policial? Ou um militar? Ou ambos, um policial militar?
Infelizmente, estupro é um crime tão pouco punido que mesmo nos casos mais óbvios e estereotipados -- o estuprador não ser conhecido da vítima, a vítima reagir e ser espancada --, ainda assim muitas vezes o estuprador é absolvido, principalmente se a defesa consegue culpar a vítima por beber ou usar roupas curtas.
Espero que a promotoria entre com recurso e que os PMs sejam condenados. É vergonhoso como todo o sistema trabalha junto para estuprar, negar, culpar a vítima.