Publico hoje o guest post interessante de uma leitora que prefere não se identificar. Ela escreveu isso antes do corona se tornar pandemia e chegar ao Brasil.
Queria aqui falar sobre um assunto que me incomoda. Ou melhor, este assunto me fascina. O que me incomoda é a forma como a sociedade lida com este tópico.
Falo da velhice. Tenho 36 anos, mas gosto de observar a velhice, pensar nela, tentar me colocar neste lugar. Obviamente ainda me sinto jovem, e muito, mas quero viver para ser uma mulher velha, em algum momento, se tudo der certo. E espero ser respeitada nesta condição.
Tenho observado que há um desrespeito não muito evidente acontecendo por aí. Refiro-me às avós: nós realmente as respeitamos? Diria que não muito. Achamos as “vovós” e os “vovôs” umas gracinhas, mas não estamos muito a fim de entendermos estas pessoas como o que são: pessoas, seres autônomos que não obrigatoriamente estão a fim de cuidar dos filhos dos filhos. Pessoas que têm vida sexual e afetiva, em diversos casos. Pessoas que também gostam de momentos de solidão. Momentos de festa. Momentos de entretenimento. Momentos de NÃO CUIDAR de nada, nem de ninguém. Momentos de puro livre-arbítrio.
Acho importante chamarmos a atenção para isso: nem sempre os avós acham uma tarde com os netinhos um prazer imenso. Nem sempre eles estão disponíveis (e acabam cancelando compromissos pessoais -– seja encontros com amigos, seja questões da vida cotidiana, idas a bancos etc, só para que possam acatar os pedidos dos filhos). Mas não estamos nem aí, achamos que o que é nosso é deles também, e lá se vai a pessoa que já teve que cuidar dos próprios filhos, cuidar dos filhos de terceiros. Sim, filhos são terceiros. E idosos são indivíduos e têm o direito de dizer não quantas vezes quiserem. (E não deveriam nem ser solicitados como são, incessantemente, tendo que decidir entre o não ou o sim. Deveríamos poupá-los deste tipo de berlinda. Deixemos que eles peçam para ver os netos.)
Penso que a questão dos netos é delicada porque envolve algo muito emocionante. Deve ser divino ser avó/avô. Já ouvi isso de amigas mais velhas, de minha própria mãe: “é algo transcendente”. Daí penso que esta questão emocional acabe incutindo certa culpa nos avós. Se eles gostam tanto assim dos netos, como dizem, por que não cuidariam deles? E os filhos diversas vezes usam essa carta na manga: “Ué, você vai negar cuidar do seu neto lindo? Que tipo de avó desalmada é você?”. Funciona que é uma beleza.
Então isso pode ser um trunfo para o resto da vida. O neto pode ter 18 anos, 20. Não importa. Os pais deste neto podem usar para sempre desta eficaz chantagem emocional. Não cuidar do neto seria coisa de “vô desnaturado”. Não pagar a faculdade particular dele seria um absurdo. O tipo de pedido varia, de acordo com a idade (mas quando se trata de dinheiro, aí eu vejo com total clareza: idoso não tem direito de ter a grana dele para ele mesmo usar como quiser. Tudo tem que ser para os filhos já criados e os netos).
Então isso pode ser um trunfo para o resto da vida. O neto pode ter 18 anos, 20. Não importa. Os pais deste neto podem usar para sempre desta eficaz chantagem emocional. Não cuidar do neto seria coisa de “vô desnaturado”. Não pagar a faculdade particular dele seria um absurdo. O tipo de pedido varia, de acordo com a idade (mas quando se trata de dinheiro, aí eu vejo com total clareza: idoso não tem direito de ter a grana dele para ele mesmo usar como quiser. Tudo tem que ser para os filhos já criados e os netos).
Não seria justo que neste momento, depois de tanta vida vivida, os avós pudessem ter o merecido descanso, curtindo os netos sem grandes abusos, sem terem que ser os responsáveis diretos (ou quase isso) pela prole da prole?
E há uma questão ainda mais interessante aí, que andei notando. Costumamos relacionar este tipo de coisa da qual estou falando às dinâmicas das famílias pobres.
Penso de forma totalmente diferente, neste caso: não consigo pensar em razão melhor para se contar com a ajuda da família do que a falta de grana. Outras boas razões são a pouca idade (gravidez na adolescência é mais comum nos bairros pobres), a falta de perspectivas, a falta de instrução sobre como cuidar de um bebê. Quando falamos de pessoas pobres, penso que esta talvez seja a melhor solução, mesmo: contar com a família para que aquela criança cresça da melhor forma possível dentro de uma realidade de escassez.
Mas o que venho observando, ultimamente, é que a classe média já planeja seus filhos contando com a babá gratuita, digo, a avó. Falo de pessoas que pagam escolas particulares para crianças de sete anos, mas se negam a pagar uma babá e livrar a barra de uma pessoa de 66/70 anos, às vezes de até mais idade (visto que na classe média as mães são mães mais tarde). Não falta grana. “Só confio na minha mãe para cuidar de meu filho”.
Sua mãe teve poder de decisão quando você planejou gerar seu filho? Creio que não, na maioria dos casos. Então, por que ela deveria ser responsabilizada por algo que não compete a ela? Por que esta situação foi criada, onde só se confia em um ser humano específico para cuidar de alguém, sendo que este ser humano específico não escolheu ser avó/avô? Não me parece justo.
Penso de forma totalmente diferente, neste caso: não consigo pensar em razão melhor para se contar com a ajuda da família do que a falta de grana. Outras boas razões são a pouca idade (gravidez na adolescência é mais comum nos bairros pobres), a falta de perspectivas, a falta de instrução sobre como cuidar de um bebê. Quando falamos de pessoas pobres, penso que esta talvez seja a melhor solução, mesmo: contar com a família para que aquela criança cresça da melhor forma possível dentro de uma realidade de escassez.
Mas o que venho observando, ultimamente, é que a classe média já planeja seus filhos contando com a babá gratuita, digo, a avó. Falo de pessoas que pagam escolas particulares para crianças de sete anos, mas se negam a pagar uma babá e livrar a barra de uma pessoa de 66/70 anos, às vezes de até mais idade (visto que na classe média as mães são mães mais tarde). Não falta grana. “Só confio na minha mãe para cuidar de meu filho”.
Sua mãe teve poder de decisão quando você planejou gerar seu filho? Creio que não, na maioria dos casos. Então, por que ela deveria ser responsabilizada por algo que não compete a ela? Por que esta situação foi criada, onde só se confia em um ser humano específico para cuidar de alguém, sendo que este ser humano específico não escolheu ser avó/avô? Não me parece justo.
Sei que há casos onde a avó insistiu, “quero um neto” etc. Ok, que bom para esta avó, se ela estiver feliz cuidando do neto. Mas duvido que haja muita gente por aí não querendo ser mãe e só sendo porque a futura vovó insistiu. No fim das contas, a decisão de ter filhos é mesmo dos pais, e não dos avós.
Queria apenas abordar este assunto porque percebi nele bastante racismo estrutural, também. O pobre é que leva a fama de “ter filho adoidado”; o pobre é que merece o nojinho da sociedade por ter filho muito cedo. Mas a classe média também tem seus filhinhos sem ter condição de criá-los, se endividando, matriculando em escola que não pode pagar, morando em bairro que não pode morar, jogando essas responsabilidades nas costas de seus pais.
Pedindo dinheiro a vida toda aos avós da criança, sendo inconvenientes. Mostrando, com todas as evidências, que não soube crescer, se desvincular dos próprios pais e cuidar de seus próprios filhos. A classe média e seus bebês mal planejados não merecem nosso julgamento, também, então? Só os favelados? Mesmo sabendo-se que os favelados, na maioria das vezes, de fato não têm outra opção?
Pedindo dinheiro a vida toda aos avós da criança, sendo inconvenientes. Mostrando, com todas as evidências, que não soube crescer, se desvincular dos próprios pais e cuidar de seus próprios filhos. A classe média e seus bebês mal planejados não merecem nosso julgamento, também, então? Só os favelados? Mesmo sabendo-se que os favelados, na maioria das vezes, de fato não têm outra opção?
Se alguém tiver ficado chateado com o que escrevi, digo que também estou chateada. Vejo isso acontecendo com minha própria mãe, com minhas amigas mais velhas. Todas sofrendo nas mãos de filhos sem-noção que não entendem que aquela mulher ali, que os pariu, é um ser humano que também sente cansaço. Que tem vontade própria. Que gosta de viver e curtir, do mesmo jeitinho que nós.
Já há pessoas pensando a maternagem. Já há pessoas pensando o que é ser mãe, pai. Já há pessoas pensando quais seriam as melhores maneiras de se criar os filhos. Mas estou vendo pouca gente falando sobre os avós. Na verdade, não vejo ninguém falando sobre eles sob este prisma, dos cuidadores gratuitos. Por isso, enfatizo que meu intento não é demonizar ninguém, até mesmo porque observo que ser mãe/pai é mesmo algo dificílimo.
O meu ponto aqui é só defender o lado dos mais velhos, mesmo. Acho que não estamos sendo muito respeitosos com eles.
O meu ponto aqui é só defender o lado dos mais velhos, mesmo. Acho que não estamos sendo muito respeitosos com eles.
Termino indicando a leitura desta matéria sobre Josefa Feitosa, mulher viajante de 59 anos que disse uma frase óbvia: “Avó não foi feita para cuidar de neto”.