Hoje, dia 28 de setembro, é uma data importantíssima pra quem batalha pelo Estado laico e pela liberdade das mulheres. É o Dia de Luta pela Descriminalização do Aborto na América Latina e no Caribe, uma data que hoje chega aos trinta anos.Como quem acompanha este blog sabe, já publiquei dezenas de posts pela legalização do aborto e de guest posts de mulheres que abortaram. Já fui denunciada à polícia por um desses guest posts publicados, já fizeram site falso no meu nome vendendo remédios abortivos e jurando que eu realizava abortos em sala de aula na UFC. Porém, mesmo tendo falado tanto sobre aborto, mesmo que meus inimiguinhos continuem querendo que eu seja presa por defender a legalização, me considero bastante leiga no assunto. Há inúmeras feministas que travam essa guerra com muito mais competência do que eu.
Agora em agosto, tivemos um caso muito relevante que, na minha opinião, foi um divisor de águas e uma vitória. Estou me referindo ao caso da menina de 10 anos do Espírito Santo que foi estuprada pelo tio durante quatro anos, engravidou e conseguiu abortar, apesar de toda a pressão do governo e dos "pró-vida" (muitas aspas nessas horas). Ficou evidente que a maior parte da população é a favor da possibilidade da interrupção da gravidez em casos de estupro e risco de vida para a gestante. E também ficou muito claro (pra quem ainda tinha qualquer dúvida) que este governo de extrema direita deseja proibir o aborto em todos os casos, até naqueles em que ele é permitido desde 1940!
Outra comoção dessas aconteceu em 2009 em Recife, quando uma menina miudinha de 9 anos engravidou de gêmeos. Um arcebispo fez de tudo para proibir o aborto a que a menina tinha direito (inclusive para salvar sua própria vida): excomungou as feministas que apoiaram a garotinha, o médico, a mãe da menina -- todo mundo menos o estuprador. Afinal, a igreja católica e os crentes veem o estupro como um pecado muito menos grave que um aborto. Acabam assim sendo grandes defensores pelo direito de estupradores pedófilos serem pais.
Para se vingar, o pior governo de todos os tempos publicou uma portaria para na prática dificultar ainda mais o acesso ao aborto legal (que já é muito, muito difícil, apesar de constar como um direito das mulheres). A portaria estabelecia que os médicos, rompendo o sigilo médico, notificassem à polícia sempre que mulheres ou meninas vítimas de estupro decidissem recorrer ao aborto. Além do mais, as vítimas deveriam assinar um documento permitindo que elas fossem presas se mentissem sobre o estupro, e teriam que assistir ao seu exame de ultrassom.
A portaria é tão autoritária, tão inconstitucional, e representa um retrocesso tão grande, que ela foi denunciada na ONU como uma violação aos direitos humanos e o governo teve que voltar atrás um pouquinho. Semana passada, tirou do texto original a "obrigatoriedade" dos médicos em avisar à polícia, e colocou a palavra "deverão", e tirou a parte de mostrar o ultrassom às mulheres. Ainda assim, bolsonaristas como Allan dos Santos se revoltaram com a decisão, por achar que o governo estava facilitando o aborto ("facilitando" algo que já é legal!), o que fez o youtuber bradar o já clássico "Nunca mais me ligue!" (dirigido ao presidente dele). A portaria também foi eficiente em fazer com que cada vez menos profissionais de saúde aceitem realizar um aborto legal, já que serão perseguidos por entidades "pró-vida" e pelos homens no poder.
Semana passada também ficamos sabendo o que todo mundo já suspeitava: de como a ministra dos Direitos Humanos Damares agiu nos bastidores para impedir que a menina de 10 anos pudesse abortar. Enquanto a sinistra mantinha silêncio publicamente sobre o caso, por trás dos panos ela fazia de tudo, como chegar a participar de pelo menos uma das reuniões com conselheiros tutelares do Espírito Santo via videochamada. Nas reuniões entre assessores de Damares e conselheiros tutelares, o Ministério tentou "comprar" apoio oferecendo um "kit Renegade" (que inclui um jeep de R$ 70 mil e equipamentos de infraestrutura). Damares queria levar a menina para um hospital em Jacareí, SP, ligado à igreja da sinistra, para que a garotinha ficasse lá até ter o bebê (mesmo correndo risco de morrer).
Como a proposta de transferir a menina para o hospital em Jacareí não deu certo, o grupo "pró-vida" partiu para a estratégia de intimidação. Houve até tentativa para manter a criança em Vitória, para que ela perdesse o voo para Recife. Como isso também falhou, o passo seguinte foi divulgar o nome da menina, o que é contra a lei.
Segundo pessoas envolvidas no caso, foram assessores de Damares que vazaram o nome da menina para a ativista extremista Sara Giromini. Ela então o divulgou em suas redes sociais, atiçando reaças a irem ao hospital em Recife hostilizar o médico. Em coro, chamaram a menina de 10 anos de "assassina".
Entrevistada por Pedro Bial, Damares chegou a dizer: “Os médicos do Espírito Santo não queriam fazer o aborto, eles estavam dispostos a fazer uma antecipação de parto. Não era a criança ir até o nono mês. Mais duas semanas, poderia ter sido feita uma cirurgia cesárea nessa menina, tirar a criança, colocar numa incubadora. Se sobreviver, sobreviveu. Se não, teve uma morte digna.”
Não foi a primeira vez que Damares tentou impedir que uma mulher realizasse um aborto legal. Uma reportagem da Vice de janeiro de 2019 aponta um outro caso. Em 2012, Jéssica, estudante de curso técnico de enfermagem, recém-casada, viu que tinha câncer de pulmão. Precisava fazer radioterapia e quimioterapia para continuar vivendo, mesmo só tendo 27 anos. Na mesma época, viu que estava grávida. Queria abortar, já que o tratamento pro câncer pode causar malformação do feto. Conseguiu que o Tribunal de Justiça de Goiás autorizasse o aborto para que ela pudesse fazer o tratamento. Uma semana depois, a então pastora Damares tentou anular a decisão do TJ, num processo que correu em segredo de justiça.
Jéssica nem sabia quem havia entrado com a anulação. Não sabia sequer quem era Damares. Como é de costume, o processo demorou, teve que chegar até uma desembargadora, que autorizou o aborto. Damares entrou com uma outra medida liminar enquanto Jéssica estava internada. Segundo a advogada-pastora, o feto estaria "ameaçado no seu direito de ir e vir e, mais que isso, em seu direito à vida, e "a simples presença da criança no útero não traz qualquer ameaça à vida da mãe". Depois de muitas dificuldades, Jéssica conseguiu abortar. E em seguida fazer o tratamento pro câncer.
Detalhe: Jéssica é evangélica, assim como Damares. E também se diz "totalmente contra o aborto. Mas, no meu caso, como era doença, não tinha como... O doutor falou que não tinha 1% de chance da criança nascer".
É bem parecido com a notícia que li hoje. Uma ótima notícia, aliás. O STF confirmou uma decisão do Superior Tribunal de Justiça e um padre terá que pagar R$ 389 mil a um casal de Goiás por ter interrompido um aborto autorizado pela Justiça. O caso é de 2005. A moça de 19 anos estava grávida de um feto com uma síndrome que não deixava que seus órgãos se desenvolvessem. Foi autorizada a abortar. Já estava no hospital tomando medicamentos para interromper a gravidez quando o padre obteve um habeas corpus. A jovem teve que retornar para sua casa. Passou 8 dias agonizando, voltou ao hospital e deu à luz um feto q morreu logo depois.
Não há nada de incomum nesses casos. É o jeito que os "pró-vida" agem: querendo passar por cima da vontade, dos direitos e até da vida das mulheres. A única coisa que importa, pra eles, é o embrião ou o feto.
Por isso é tão importante seguir lutando. Se nos calarmos, eles fazem o Brasil virar Gilead em dois tempos.