sábado, 28 de fevereiro de 2009

COMO ERA GOSTOSO MEU PORTUGUÊS

Esta crônica de 2001 (na verdade duas juntas) continua a saga da minha viagem de carro ao sul do Sul. Ela é anterior à reforma ortográfica, que nem mudou tanta coisa assim. Eu continuo sem saber onde enfiar os hífens.

Defendo a idéia de que deveria haver multas para placas públicas que contêm erros de ortografia ou gramática. Ou, pelo menos, algum tipo de advertência que forçasse o dono da placa a corrigi-la prontamente. O problema é que todos esses erros que vemos diariamente nos levam a uma lavagem cerebral, causando a impressão de estarem certos. Por exemplo, quando foi a última vez que você viu escrito “máximo de 10 itens” num supermercado? Aposto como faz um tempão. Todas as placas são unânimes em grafar ítens, com um acento inexistente no i.
Uma vez, numa vaga tentativa de salvar a língua, eu educadamente avisei o dono de um mercado que xuxu ficava melhor (eufemismo) com ch. Ele respondeu que, na verdureira dele, ele assentava chuchu como bem entendesse. Estou lutando até hoje pra compreender este orgulho em linchar o português. Seria uma vingança pessoal?
Na minha agradável viagem ao sul do Sul, tive a oportunidade de constatar que o português culto está morto e enterrado. A Academia Brasileira de Letras bem que poderia homenagear as placas corretas, ao invés de gastar o tempo com chás e votações para substituir com novos velhinhos os imortais que morreram. A única placa com concordância correta que presenciei na viagem foi em São Lourenço do Sul. Lá, alguém de uma casa pôs “vendem-se pastores alemães”. No resto do percurso, pipocavam lâminas com “aluga-se quartos” e “conserta-se carros” (isso quando não escreviam conserto com c). O toque romântico foi dado perto de Palhoça, onde uma enorme árvore ostentava a placa “aluga-se”. Quem diria, o mercado imobiliário atingiu os esquilos.
Um restaurante por quilo de beira de estrada embaralhou a paisagem ao exibir outdoors dizendo coisas como “sua confiança empulsiona (sic) nossa caminhada”, “comida onesta” e, para que a gente não se preocupasse e nem concluísse que a qualidade da comida segue o padrão da língua, um redentor “Deus te ama”. É ou não é de estragar o apetite?
Porém, não foram apenas as placas com erros de português que me chamaram a atenção. Havia placas que praticamente me imploravam para dialogar com elas. Foi o caso de um cartaz perto de Araranguá que exibia as palavras “temos carne”. Meu impulso foi parar o carro e falar pro dono da placa, “eu também”. E como, eu poderia acrescentar. Aposto que mais do que ele.
Mas segui em frente. Logo adiante, tinha um pequeno templo com o letreiro “Igreja Evangélica alguma coisa”. Até aí tudo bem. Isso tem em tudo quanto é canto. Porém, quantas adicionam a explicação “conservadora” no cartaz? Juro que, embaixo do nome da igreja, os pastores haviam colocado “conservadora” no mesmo tamanho e fonte. Não parece meio redundante? Será que os fiéis não seriam capazes de descobrir por si próprios a ideologia que lhes espera?
Em Torres, um outdoor já anunciava que aquela era a décima primeira cidade do país em número de turistas estrangeiros. Floripa é a segunda, só perde pro Rio. Onde está “estrangeiro” leia-se argentino, sabe como é. Pois bem, um outro cartaz continha a seguinte pergunta: “Um argentino bateu no seu carro?”. Era de uma firma de advocacia que promovia processos. Imagino como nossos hermanos se sentem ao ler isso. Tá, eles dirigem mal à beça, mas nós não somos exatamente campeões da civilidade em questão de trânsito, né? Ou de respeito à natureza, ou de honestidade na política... Ih, a lista é longa.
Por falar em lisura, uma placa de imobiliária em Garopaba anunciava: “18 anos de honestidade”. Tive vontade de questionar há quanto tempo o corretor estava no mercado. De repente, ele possuía o negócio havia 40 anos, mas só os primeiros 18 tinham sido honestos. Depois, ele pode ter cansado. Acontece.
E a lâmina de boas vindas de um município? Era “Sorria. Você está em Capivari de Baixo”. Não consegui entender a relação, mas convenhamos: é mais simpática que “Tire este sorrisinho do rosto. Esta é uma cidade séria”.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

CRÍTICA: O CASAMENTO DE RACHEL / Podem se casar sem mim

- Qual de nós vai chamar mais a atenção no seu casamento?

Será que consigo escrever uma crítica rapidinha? Vou tentar. Primeiro, já avisando que tenho enorme preconceito contra qualquer filme que tenha casamento no título. Aliás, já fiz promessa (descumprida) de que não veria mais produções que tenham esse título, porque eu sempre me decepciono. É que não tenho o menor carinho por rituais. Se, na vida real, já limito minhas idas a casamentos a duas por década (não, é sério, e também não me convide pra funerais, batizados, chá de panela etc, que estarei ocupada), por que iria querer assistir a filmes onde a cerimônia é encenada? Mas tive de abrir uma exceção a Casamento de Rachel porque é do Jonathan Demme, e eu gosto dele. Adoro Silêncio dos Inocentes, Filadélfia me agrada, e acho umas gracinhas De Caso com a Máfia, Totalmente Selvagem e Melvin e Howard. Fora isso, o cara provavelmente adora o Brasil, já que costumava assinar suas obras com “A Luta Continua” assim mesmo, em português, e agora deu o nome de “Clinica Estetico” (seja lá o que isso significa) a sua produtora. E quase sempre ele inclui alguma música brasileira. Em Rachel tem samba, com mulatas e tudo.
Mas o filme, por alguma razão, não dá samba. Talvez porque 55 discursos de convidados celebrando os noivos sejam pra lá de cansativos. E também fiquei fatigada com o estilo câmera na mão. Pô, é um filme basicamente de diálogos. Precisa mesmo que a câmera fique balançando e enfoque o nariz da pesonagem que fala? Pode ter dado certo pro Dogma, mas acabou, sabe? É diferente essa movimentação da câmera em O Lutador. Lá funciona, e não apenas nas cenas (grotescas) de luta. Funciona quando o Mickey Rourke tá andando de costas por longos corredores. Quando ele tá conversando com alguém, a câmera fica mais ou menos quieta, sem que o cineasta tropece e acabe focando o dedo mindinho do pé do Mickey. Em Rachel essa câmera só serve pra tentar criar um clima de neurose já presente nos diálogos e interpretações. Fica redundante.
Um resuminho da trama de Rachel, pra quem não conhece: Anne Hathaway (estrela de O Diabo Veste Prada e Agente 86) interpreta Kym, uma ex-viciada em drogas que está numa clínica de reabilitação faz um tempão. Sua irmã (Rosemary DeWitt, mais bonita que Anne, mas que parece muito mais velha também - não sei qual é pra ser a diferença de idade entre as duas) vai se casar, e Kym quer passar o final de semana com a família. Vários traumas de infância serão revividos. As duas irmãs têm um relacionamento de amor e ódio. Ambas querem ser o centro das atenções o tempo todo. Sobra pro pai (Bill Irwin, que não conheço; ele está bem, só um pouco exagerado), coitado, acusado pelas duas - Kym o culpa por ele lhe dar atenção demais, Rachel por não lhe dar atenção nenhuma. A mãe é distante, fria (me lembrou a vilã de Gente como a Gente), e realmente não liga muito pra nenhuma das duas (mas convenhamos, ambas são adultas). E, se for pra comparar, essa mãe é mais linda que as duas filhas juntas, já que é interpretada pela Debra Winger. Alguém ainda se recorda da Debra? Ela foi uma das maiores estrelas do início dos anos 80. Foi indicada ao Oscar por Laços de Ternura, fez a voz do ET, adquiriu fama de atriz difícil, e praticamente sumiu (Por que tantas atrizes da década de 80 tinham essa voz sexy? Havia a Debra, a Kathleen Turner, a Demi Moore). Em Rachel seu papel é pequeno, mas tem uma cena entre mãe e filha que é marcante (não vou contar).
Já é o segundo filme em que a Anne Hathaway, que é magérrima, se acha gorda. Dá a impressão que ela foi mal escolhida pro papel. Tudo bem, na vida real muitas mulheres magras se acham gordas. É comum. Mas tem todo um papo de anorexia não comprovada que permeia o drama. O problema é que a anorexia envolve a personagem da irmã, não a da Anne.
Lógico que eu chorei em alguns momentos do filme, só pra variar. Mas não vou me lembrar do troço daqui a uns dias, nem achei a atuação da Anne digna de indicação ao Oscar (fiquei refletindo sobre o que a Angelina Jolie faria com o papel). Meu pé atrás com filmes casamenteiros segue firme. Ah, mas quer saber o que amei? O bolo! Ele é lindo, em forma de elefante da Índia, azul por fora e, ao que parece (a câmera estava muito ocupada filmando qualquer outra coisa), de chocolate por dentro. Salve salve.
P.S.: Eu não ia falar nem uma palavrinha sobre o casamento interracial, porque o filme não fala nada. Trata isso com a maior naturalidade, que é como deve ser. Mas aí eu vi o poster (veja lá em cima), que põe o rosto de Anne em primeiro plano, e Rachel e seu pai atrás, nebulosos. Dá a entender que são eles os noivos! Mais uma vez, Hollywood esconde um casal negro pra não assustar seu público!

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

BLOGS, JORNAIS, E REVELAÇÕES PESSOAIS

Uma leitora me recomendou esse artigo que saiu no britânico Times Online em 28 de janeiro, e disse que gostaria de vê-lo traduzido, pois ele é importante. Decidi escrever sobre ele porque me pareceu interessante, apesar de eu discordar do tom alarmista. Em alguns casos, ele mais parece um cautionary tale, sabe, um texto pra mostrar como é perigoso se expor. Mas ele falha, já que não consegue dar um exemplo em que alguém realmente tenha sido moralmente prejudicado ou mortalmente ferido por falar da sua vida pessoal. Ninguém morreu escrevendo blog, por exemplo.
Eu sempre fico com o pé atrás ao ver um veículo da mídia impressa (mesmo que seja a Times online) falar mal dos blogs, porque muitas vezes existe um certo desespero. Assim como quase todo mundo, eu não sei o que será da mídia impressa no futuro, quando a geração que ainda lê jornais e revistas partir desta pra melhor. Os jovens, em geral, se informam pela internet. Então acho que existe, sim, uma tendência da mídia impressa a demonizar os blogs, chamando-os de fúteis e duvidosos. E este artigo é um desses. Começa ridicularizando a confidência de um produtor num blog que brócolis lhe causa flatulência. Certo, porque essas informações inúteis só existem na internet, certo? Porque os jornais sim que só falam de matérias que elevam a alma humana.
Se existe uma vantagem dos blogs sobre a mídia impressa, é que os blogs não estão tentando vender nada. Acho que ainda existem pouquíssimos blogueiros que lucram com o que escrevem. Eu posso falar mal à vontade do McDonald's e de creminhos anti-rugas que não funcionam porque eles não são meus anunciantes. Duvido que os jornais tenham essa liberdade. Bom, eu escrevo pra jornal desde 1998, e posso contar nos dedos de uma mão as vezes em que algum texto meu foi censurado, então tampouco posso reclamar. Só que blogs são plural. Há cem milhões deles no mundo, e quase todos falam coisas diferentes. Compare com o tom monolítico da grande mídia.
Creio que a mídia frequentemente se esquece do conceito das comunidades imaginárias desenvolvido por Benedict Anderson. Ele fala em termos de nacionalismo, de como as nações foram criadas através do “capitalismo impresso”. Em linhas muito, muito gerais: quando os livros deixaram de ser publicados apenas em latim, pessoas que falavam as mesmas línguas passaram a achar que tinham uma identidade em comum. Os jornais foram fundamentais nesse processo do indivíduo se ver como parte de algo maior. Imagina como era a vida pra alguém que morava numa vila antes de ser informado que na cidade vizinha os moradores tinham os mesmos problemas. A própria noção de tempo mudou. Mas essas comunidades são, no fundo, imaginárias, porque eu posso me sentir brasileira, mas não conheço todos os outros 200 milhões de brasileiros. Nossa unidade não é real. Agora, se comparada à internet, a comunidade imaginária criada pelos jornais é fichinha. Nunca fomos tão aldeia global quanto agora. E imagine o que vai ser no futuro, quando não apenas uma minoria tiver acesso a computadores e internet.
Segundo o artigo da Times, os blogs mais populares são aqueles em que seus autores mais revelam de si. Concorda? Eu não. Quer dizer, não faço a menor ideia de quais sejam os blogs mais lidos do Brasil e do mundo, mas os que eu leio não são bem assim. São blogs pessoais, lógico, e eu gosto de ler textos que dão sua opinião, ao invés de fingirem ser imparciais (como tantos jornais fazem. Eu parei de assinar o Estadão e a Folha porque há poucas opiniões, e quando há, elas são todas iguais. Os articulistas são quase todos homens, brancos, héteros, concidentemente com uma opinião que segue à risca o editorial do jornal). Nos blogs eu posso ler mulheres de diversas idades, raças, e orientação sexual. Leio mães falando de seus filhos (aliás, isso deve ser ótimo pros filhos lerem quando crescerem), leio mães sofrendo porque chegou a hora de se separar dos filhos adultos, leio adolescentes e seus problemas, leio uma moça respondendo pela primeira vez a uma baixaria que ouve na rua. Por que isso seria menos importante que o preço de uma ação de petróleo que não tenho ou de um engarrafamento em São Paulo?
E eu, eu me exponho muito? Talvez. Não adoto pseudônimos, meu nome é esse mesmo, tem fotos aqui, e eu não escondo onde moro. Mas nas minhas crônicas pro jornal também sou assim. Isso já me trouxe problemas, como quando quase fui linchada na faculdade de Pedagogia. Mas e se naquela ocasião eu tivesse um pseudônimo, seria tão difícil me reconhecer? Eu falo da minha vida pessoal, mas com limites. Não costumo escrever sobre minha vida sexual, até porque a vida sexual de um casal monogâmico há dezoito anos não é a coisa mais interessante do mundo. De vez em quando eu menciono meus gatinhos. Não ficaria muito feliz se meu orientador lesse o meu blog porque aí ele faria a mesma pergunta que todos me fazem: “Como você consegue conciliar a tese com escrever um post todo dia e responder todos os 50 comentários por post? E aí eu teria que responder: “quem disse que eu consigo?”.
Mas, em geral, eu não tenho segredos. Não tenho nada a esconder. Se eu não minto na vida real, por que mentiria na virtual? Não sei se deveria me esconder por trás de um outro nome. Qual é o medo? Que alguém de carne e osso venha até a minha casa me xingar? Que me deem um soco na rua? Eu já fui reconhecida várias vezes, porque minha fotinho sai no jornal. Já brinquei com isso e disse que, quando alguém pergunta, “Você é a Lola Aronovich?”, eu receosamente respondo “Depende...”. Mas a verdade é que o pessoal que faz essa pergunta sempre quer elogiar. Foi a supervisora no caixa do banco que permitiu que eu retirasse dinheiro mesmo com o cartão vencido. Foi uma professora dizendo que usava alguns textos meus na aula. Foi um carinha lindo num shopping - pra esse eu não respondi “Depende” - quando ele disse “Sou seu fã!”. Eu ia dizer “A recíproca é verdadeira”, mas me contive a tempo.
Sou ingênua, tenho um blog faz pouco tempo (um ano), confio na bondade humana. Muita gente esconde a identidade e o rosto, então deve haver motivos. Pode ser sim que exista um pessoal perigoso à solta, mas pra mim vale aquele princípio que morar em prédio é mais seguro que casa (porque um prédio tem vários apartamentos, e quem iria querer assaltar logo o meu?). Entre cem milhões de blogs, o meu parece absurdamente insignificante pra motivar alguém a tomar medidas drásticas. Eu não sou importante, nem tenho uma legião de fãs. Aquele do shopping me basta.
Porém, assim como no caso do escândalo na faculdade, tive mais problemas por causa de conhecidos que de desconhecidos. Eu posso não ter nada pra esconder, mas talvez o maridão tenha (nãããão...). Tá, o maridão foi um péssimo exemplo. Mas digamos assim: se eu quero falar de algo que aconteceu com uma amiga, posso só dizer “uma amiga” e não dar nenhum detalhe sobre quem ela é. Mas não posso dizer “um maridão”, porque só tenho um (droga! droga! droga!). E o mesmo com a minha mãe. Tem coisas que ela pediu pra eu jamais falar no blog. Eu não gosto disso, acho que é censura, mas tenho que respeitar.
Agora, se ter um blog vicia? Totalmente. Mas bem antes disso eu já era rata de internet. Trocava emails quilométricos com duas amigas em particular, que moram em outras cidades. Falávamos sobre uma ampla gama de assuntos. Às vezes nos desentendíamos. Com o blog é diferente: não são muitas as pessoas que eu conheço pessoalmente, e num post eu capricho mais (releio e corrijo os erros, o que não faço num email). E coloco fotos. E os temas são ainda mais variados. O resto é até parecido. Existe interação e debate, e, mesmo discordando, a gente acaba se sentindo parte da mesma comunidade. Algo que raramente acontece hoje com os jornais.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

CRÍTICA: MILK, A VOZ DA IGUALDADE / Quando Hollywood faz algo útil

- Bom, a luta com o Mickey Rourke foi dura, mas agora é rumo ao terceiro Oscar.

É tão raro fazer uma biopic (uma espécie de cinebiografia) boa que Milk - A Voz da Igualdade merece ser destacado só por isso. Em geral as biopics são um porre - eu dormi em Ray -, porque elas tentam condensar a vida inteirinha da celebridade em duas horas e canonizá-la. Felizmente, Milk não é assim: tem um ritmo sensacional, que só deixa a peteca cair no fim, e mostra um sujeito legal, mas com seus defeitos, não muitos. Gostei mais do drama agora que o vi pela segunda vez. Ele entra na categoria de Filmes Importantes, com maiúsculas, desses que precisam ser vistos pra gente aprender alguma coisa. No caso, o início dos movimentos pelos direitos gays nos anos 70.
Há muitos contextos aí. Em primeiro lugar, o contexto da homossexualidade nos EUA. Nessa época, que não tem nem quarenta anos, a psiquiatria ainda considerava uma orientação sexual que não fosse a hétero um distúrbio, e a polícia tinha por hábito bater e prender quem se envolvesse nessas práticas criminosas. Stonewall foi um marco. Em 69, em Nova York, um grupo GLBT enfrentou a polícia, que queria fazer uma batida num bar gay. Muitos homossexuais, moradores de cidadezinhas americanas retrógradas, começaram a se mudar para Nova York e Califórnia, onde poderiam tentar levar um estilo de vida sem tanta repressão. Em São Francisco, o Castro tornou-se logo o principal ponto de encontro (continua até hoje). E, claro, era o começo dos anos 70, com a revolução sexual, os hippies, e todos os movimentos pelos direitos das minorias (negros, mulheres, gays). O outro contexto é o do cinema. Um excelente documentário, The Celluloid Closet, mostra como Hollywood sempre discriminou os gays. Durante um século de cinema, eles foram ou motivo de piadas ou vilões (e em muitos filmes atuais seguem sendo tratados dessa forma). Até um drama relevante como Filadélfia não ousou incluir um só beijo entre Tom Hanks e Antonio Banderas pra não chocar seu público mainstream. Mas é um marco, assim como Brokeback Mountain. Portanto, é louvável que Milk não tenha receio em exibir tanta afeição entre os gays. Quase todos os personagens retratados são gays, inclusive, o que tá longe de ser comum.
Harvey Milk, vivido aqui com maestria por Sean Penn, foi um homem que, até seus 40 anos, viveu no armário. O filme começa quando ele, em NY, conhece um belo rapaz (James Franco - eu quero um pra mim!). Eles se mudam pra São Francisco, abrem uma lojinha de material fotográfico, e viram ativistas. Harvey logo se autoentitula “o prefeito da Rua Castro” e concorre a supervisor de São Francisco (algo como vereador). Na quarta vez que disputa, é eleito e torna-se o primeiro político abertamente gay da Califórnia. E bem na hora certa, quando a reação conservadora contra os movimentos sociais toma o país. Uma lei, a Proposition 6, ameaça despedir todos os professores gays e simpatizantes das escolas públicas, sabe, pra “salvar as crianças”. Qualquer relação com a Proposition 8, que passou em novembro último proibindo o casamento gay, não é mera coincidência. É lastimável que, num país dito democrático, sejam aprovadas leis para abertamente discriminar um grupo de pessoas. Lutar contra essas sandices é um dever não só dos gays, mas de todos os héteros de bem.
Não quero falar demais pra não entregar a trama pra quem não a conhece, mas já escrevi sobre ela aqui, após assistir ao documentário The Times of Harvey Milk (foto do Harvey verdadeiro ao lado). Aliás, não quero nem ver o filme no cinema, porque isso significa aturar um bando de homofóbicos que acha que trocas de afeto são privilégio dos héteros. Mas vou falar das interpretações. O Sean é um grande ator, e este ser o melhor papel de sua carreira. Ele, o Mickey Rourke, o Richard Jenkins e o Heath Ledger tiveram as quatro melhores atuações em produções americanas no ano passado. Mas pra mim quem rouba as cenas é o James Franco. Tá, talvez pela beleza. Só sei que fiquei completamente caída por ele. Outro que gostei é o Diego Luna (de E Tua Mãe Também; foto) que faz um namorado do Harvey. Quanto ao Emile Hirsh, não acreditei muito nele como ativista. Porém, pra mim, a atuação mais fraca é a do Josh Brolin, que faz o vilão Dan White. Eu devo ser a única a não ter gostado do Josh, já que ele foi indicado ao Oscar de ator coadjuvante e tal. Mas o achei incrivelmente falso na cena em que ele aparece embriagado na festa do Harvey. Aquilo lá é uma caricatura de um bêbado. Fico feliz que tentaram dar nuances ao Dan, pra não fazê-lo simplesmente um homofóbico desequilibrado, mas o Josh me desapontou.
Outra coisa que me perturbou bastante é que o movimento gay, a julgar pelo filme, foi um movimento predominantemente masculino. Há uma só lésbica em Milk, que assume a campanha de Harvey. E o jeito como ela é recebida pelo comitê me faz compreender por que uma militante lésbica e feminista amiga minha diz ter um pé atrás com os gays, pois eles são antes de tudo homens, e sua orientação sexual não anula seus privilégios masculinos. Digamos apenas que no filme existe uma ampla galeria de personagens homens e somente uma mulher. Ou melhor, duas. A outra é uma cantora repulsiva que luta pra salvar a América da ameaça gay. Uma cena que me pareceu emblemática é uma em que Harvey trava um debate contra um conservador num cenário hostil, no bairro rico de Orange County, onde gay e pervertido são sinônimos. A câmera focaliza um assessor de Harvey e, atrás dele, duas mulheres na platéia, indignadas com o que Harvey diz. Perdão, sei que pode ser marcação minha, mas num filme em que a ausência de mulheres é tão gritante, o Gus van Sant (diretor abertamente gay) precisa mesmo colocar duas senhoras como exemplos de intolerância? Quando chega um dos discursos finais do Harvey, em que ele convoca outras minorias pra participar da luta pela liberdade e deixa de lado as mulheres, eu pensei em jogar a minha cópia de O Eunuco Feminino na tela.
Bom, certamente os negros vão se sentir tão excluídos por Milk quanto as mulheres. É como opina a Whoopi Goldberg em Celluloid Closet: “Me diga uma minoria que seja representada positivamente por Hollywood”. Mas ainda assim, minha fé na humanidade aumenta quando noto que se fazem filmes como Milk. Agora só falta as minorias lutarem juntas. Porque já basta o preconceito que recebemos da Patrulha da Normalidade. Não precisamos nos discriminar mutuamente.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

ATRÁS DO TRIO ELÉTRICO SÓ NÃO VAI QUEM É FEIA

A alegria contagiante das musas do Harém.

Uma leitora pediu para que eu comentasse uma notícia saída na Folha sobre um bloco carnavalesco em Salvador que dá o abadá (camisetas-ingressos) de graça para mulheres bonitas, mas mulheres feias, e homens de qualquer grau de boniteza, devem pagar R$ 450 cada um. No passado, as convidadas recebiam uma pulseirinha pra participar de graça do bloco. Porém, de acordo com o empresário dono do bloco, “mulher é esperta, cortava e dava de presente pra amiga feia”. Portanto, agora elas ganham uma tatuagem provisória (O Globo diz que os abadás são grátis para todas as mulheres).
Nem sei direito o que comentar. Acho triste que uma festa popular, como carnaval de rua, custe tão caro e seja para apenas uns poucos. Parece que, nesses blocos, “seguranças esticam cordas para que o grupo fique protegido dos sem-abadá”. Soa como algo meio apartheid mesmo. De um lado, o povão, que em Salvador é 80% negro. No meio, os seguranças, que devem ser negros também. E, no lado certo, o lado in, o lado A, um bando de turistas brancos que podem pagar uma pequena fortuna por noite. Bem o retrato do nosso capitalismo.
A ideia de usar muita mulher, de preferência bonita, pra atrair homens com dinheiro não é nenhuma novidade. É o que rege as promoções do tipo “mulher que entrar numa boate/bar até sei lá que hora não paga”. Na porta de boates mais badaladas, é comum os seguranças ou a hostess proibir a entrada de homens mal-vestidos e mulheres feias e/ou velhas. Ano passado, na Inglaterra, uma boate resolveu barrar as gordas. Foi boicotada e teve que voltar atrás, embora muitos carinhas tenham aprovado a iniciativa. Se praia não fosse pública, mulheres fora do padrão seriam impedidas de entrar. Pra elas, ainda vale a pressão popular do “Ugh! Você não tem corpo pra usar biquíni!”.
O que não entendo muito bem é como mulheres, lindas ou horrendas (e digamos que essa avaliação pode variar bastante), queiram participar de um bloco chamado Harém. É tão divertido assim o conceito de um sultão usufruindo de várias escravas sexuais? Pro sultão, talvez, ok, mas pras escravas? Vá lá, de repente até compreendo que moças bonitas se sintam lisonjeadas por serem descobertas por “olheiros” e convidadas para dançar num bloco de elite. Mas por que seria necessária a taguagem, pulseirinha, o diabo a quatro? Se elas são lindas, a aparência não serve como o próprio abadá delas? O quê? Você tá me dizendo que os seguranças não sabem distinguir uma mulher feia de uma bonita? Ué, pensei que o padrão de beleza fosse tão único e objetivo que bastasse olhar pra gente.
Eu certamente seria barrada. Já passei da idade e do peso de ser considerada bonita. Agora, vamos supor que eu tivesse algum interesse em torrar ao sol ouvindo axé e sendo esmagada por uma multidão bêbada. Eu iria me sujeitar a ser avaliada e xingada de feia assim, na cara dura? Certo, creio que o critério de seleção não é tão machista como o texto faz crer. Duvido que seja como porta de boate - você entra, você não. Acho que as mocinhas bonitas já estão escolhidas faz um tempo, e só elas não pagam. No entanto, depois do vazamento da notícia, qualquer mulher lá sem a tatuagem identificadora vai estar no grupo das feias. Continuo achando estranho. Lembra um pouco os rebanhos marcados a brasa e as tatuagens nazistas pra identificar judeus, ciganos e gays. Mas não dá pra ver na cara de uma pessoa se ele é gay. Precisa de um triângulo rosa pra identificar. Com mulher bonita não deveria ser diferente? E, se pras moças lindas é tão incrivelmente fantástico fazer parte do Harém, por que elas davam as pulseirinhas pras amigas feias? Além disso, li num blog que a maior parte das beldades selecionadas é branca. Pra que pulserinha ou tatuagem, se é só checar a cor da pele?
Não sou a pessoa adequada pra falar de carnaval. Acho que nunca fui a um baile nem nada. É que como não bebo, não sambo, não gosto de barulho nem multidões, não vejo qual é a graça. Mas tenho amigas que desfilaram em escola de samba e vestiram abadá na Bahia e adoraram. Não quero condenar ninguém, cada um faça o que quer (mas use camisinha e se beber não dirija). Não faço parte do pessoal que considera carnaval a maior depravação, uma Gomorra a ser punida. Aliás, se a folia serve pra atenuar a vigilância sobre as mulheres (se nesses quatro dias de festa as moças que queiram namorar deixam de ser chamadas de vadias), sou até a favor. O que não gosto é desse apartheid de bloco. Ou dessa celebração de “homens abonados” e “mulheres lindas”. Porque isso me lembra que continuamos vivendo num mundo em que há muito mais homens ricos que mulheres ricas, e onde as ainda mulheres são julgadas, acima de tudo, pela aparência.
Lógico que esse sexismo que nos incentiva a dividir mulheres entre gostosas e mocréias não é exclusivo do carnaval. Acontece o ano todo, em todas as partes do mundo. A gente nem se lembra mais da chinesinha feia que foi escondida nas Olimpíadas, né? Nossa indignação foi porque fizeram isso com uma criança. Mas querer longe da nossa vista adultas feias tá liberado. Então, por que não traumatizar garotinhas? É bom mesmo que elas aprendam cedo o que lhes aguarda.