Juro que queria terminar o ano com um post levinho e inconsequente, mas não vai dar. O assunto do momento no mundo é a revolta na Índia, e vocês já devem ter ouvido falar do caso.
Vou resumir: no dia 16 de dezembro, em Nova Déli, uma estudante de medicina de 23 anos e seu amigo foram ao cinema, e pegaram um ônibus para voltar pra casa. Dentro do ônibus, durante uma hora, ela foi estuprada por seis homens. Usaram uma barra de ferro para espancá-la e penetrar seu corpo, causando rompimento de vários órgãos. Também bateram no amigo, e jogaram os dois, nus, pra fora do ônibus em movimento.
Durante duas semanas, internada em hospitais, a moça lutou por sua vida, mas não resistiu aos ferimentos e morreu neste final de semana. O clima de revolta começou em meados do mês, quando uma multidão de manifestantes foi às ruas exigir justiça e o fim da violência contra as mulheres. Na realidade, começou antes. Em julho, em outra cidade indiana, uma jovem foi cercada e hostilizada por 20 a 40 homens, que não a estupraram por pouco. A agressão foi filmada, e a inércia da polícia fez com que milhares de pessoas protestassem por toda a Índia.
Entre os países que configuram as maiores economias do mundo, os G-20, a Índia é considerada o pior lugar para as mulheres viverem (o Brasil ocupa a 11a colocação). Estatísticas apontam que, do total de 256 mil crimes violentos registrados na Índia em 2011, 228 mil foram contra mulheres. Esse tratamento de segunda classe dado ao sexo feminino transparece nos alarmantes números de infanticídios (“é uma menina” são as três palavras mais fatais do planeta, segundo um documentário) e nos casos de estupro, que só aumentam.
Ano passado foram mais de 24 mil casos registrados na Índia. Só 26% deles resultaram numa condenação. Como o estupro equivale a uma condenação moral da vítima (soa familiar?), indianas estupradas raramente conseguem casar, por exemplo. Assim, as denúncias de estupro são ínfimas. Só um em cada 50 casos de estupro é denunciado. Portanto, vamos multiplicar os 24 mil estupros na Índia no ano passado por 50. Dá 1,200,000 estupros por ano. E muitos desses estupros são coletivos.
A polícia indiana age como aquela de Nova York nos anos 1970, ou como a nossa antes das delegacias da mulher, ou como o candidato americano ao senado (que falou de “estupros legítimos”), ou como o policial canadense que fez a declaração que gerou a Marcha das Vadias (disse ele: “as mulheres devem evitar se vestir como vagabundas, para não se tornarem vítimas de ataques sexuais”). Certo. A polícia indiana reflete o senso comum, nada mais, nada menos. O problema é que uma parcela enorme da população depende desta mesma polícia para ter o mínimo de proteção.
Uma revista indiana gravou entrevistas com trinta investigadores em delegacias, e o que esses investigadores disseram é o mesmo que ouvimos todos os dias (os comentários publicados aqui em qualquer post sobre estupro não me deixam mentir): que a vítima mereceu, que ela provocou, que ela só quer ganhar dinheiro em cima da denúncia (“as vítimas reais de estupro, mulheres honestas, nunca teriam coragem de denunciar”, alegou um deles).
Outro caso chocante ocorrido semana passada foi o de uma indiana de 17 anos que se matou ingerindo veneno. Ela tentou denunciar o estupro coletivo que sofreu. E, em contrapartida, ouviu da polícia que deveria aceitar um acordo financeiro ou se casar com um dos estupradores. Depois do suicídio, os policiais responsáveis foram afastados. Vão afastar todos?
Diante de uma situação tão desoladora, faz todo sentido a iniciativa de Sampat Pal Devi, que fundou a Gulab Gang (gangue rosa-choque) em 2006. Hoje a gangue tem 20 mil participantes, incluindo homens, que andam com bastões para proteger mulheres de injustiças e abusos. A Gulab Gang, assim como os inúmeros protestos, ajudam a pressionar as autoridades.
O governo indiano está sentindo os protestos na pele. Foi só por causa desses protestos que seis acusados foram presos no caso do estupro coletivo no ônibus de Nova Déli. E o primeiro-ministro compareceu ao funeral. Agora o governo está prometendo medidas mais duras contra o estupro, e a divulgação de nomes de condenados por estupro. Esta é obviamente uma medida perigosa, já que pode causar linchamentos dos criminosos. Mas concordo com uma ativista indiana que diz que essa divulgação tiraria o foco da vítima (que sempre é culpada ou no mínimo suspeita em casos de estupro) e o direcionaria ao estuprador.
Vamos ver no que isso vai dar. A boa notícia disso tudo é que as indianas (e muitos indianos também) estão protestando a todo vapor. 2012, pelo jeito, será o ano em que uma grande parte da sociedade percebeu que não pode continuar assim. Pena que houve a necessidade de tantas mártires para se chegar a esta conclusão.
Se estupro de modo geral já tem muito mais a ver com violência do que com sexo, o que dizer de estupro coletivo, o chamado gang rape? Este é o tipo de estupro mais comum em guerras, e também entre gangues. Por que será? Será que homens em grupo sentem um desejo incontrolável de fazer sexo com as mulheres que aparecem em sua frente? Ou será que o estupro coletivo é um meio em que esse grupo de homens exerce sua masculinidade, provando ser másculo? É dessa forma que um homem prova prum grupo que ele não é a pior coisa que pode ser numa sociedade misógina –- em suma, que ele não é mulher. E nem gay. Ele atesta sua masculinidade liberando sua misoginia e estuprando uma mulher.
E, sim, fui informada do caso da jovem de 21 anos que no início do mês, em SP, se jogou do sétimo andar do seu prédio. Isso aconteceu uma semana depois de uma festa de final de ano no escritório de advocacia em que Viviane estagiava. Viviane chegou a dizer para a mãe que havia sido drogada e estuprada durante a festa. Só agora a polícia está investigando o caso. A firma de advocacia, uma das maiores do Brasil, lançou nota declarando que não se manifestará sobre o caso “em respeito à memória de Viviane”. Pra quem já acompanhou meio caso de estupro, essa nota parece dizer nas entrelinhas que a estagiária transou com um monte de caras numa festa porque quis. Daí o “respeito” em não falar sobre o caso (há reviravoltas no caso, e em março a polícia descartou estupro).
Hoje mesmo recebi um comentário no post sobre o estupro coletivo do grupo New Hit (tudo sic): “mesmo que esse laudo aponte a presenca de semem de um dos rapazes, como saber se nao foi um ato sexual consetido?. quer dizer agora toda mulher pode ir a delegacia e denunciar seus namorados e maridos por estupro para se vingarem de uma traicao ou rejeicao? que bagunça e essa?. Muitas vezes, nao todas, mas muitas, as proprias mulheres é que ficam flertando com o cara, se insinuando”.
Como podemos ver, estupro e a punição para estupros não são graves problemas só na Índia. E se esses problemas fossem fruto de uma determinada polícia, de um determinado governo, não seria difícil resolvê-los. Bastaria trocar a polícia e o governo. Mas trocar toda uma sociedade é bem mais complicado.
Mas pode ter certeza que vamos continuar lutando em 2013.