quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

GUEST POST: TARADO NO ÔNIBUS E O DESCASO DAS INSTITUIÇÕES

Não sei se vocês lembram, uns meses atrás, de dois blogs que foram amplamente denunciados (de um jeito meio errado, porque eles foram divulgados à exaustão -- tem que denunciar sem divulgar). Eles mostravam fotos e vídeos de caras que, além de bolinarem mulheres dentro de ônibus, filmavam e fotografavam o abuso.
O abuso de passageiras no transporte público é um enorme problema. É revoltante que alguém tenha que passar por isso. Em alguns países são reservados vagões de metrô para mulheres, assim como no Rio, que destina vagões de trem e metrô exclusivos nos horários de maior movimento. Mas, sem fiscalização, eles não funcionam, e qualquer um entra.
É ridículo que tenha que haver uma segregação desse tipo porque o machismo determina que o corpo da mulher é público. Uma mulher sozinha é vista como uma mulher disponível. Igualmente absurdo é que programas de TV considerem um pesadelo desses uma fonte de humor.
A G. me enviou este relato revoltante. Fiquei orgulhosa dela, porque ela fez o que muita gente deixa passar. Mas fica a pergunta: o que fazer?

Pego a mesma linha de ônibus três vezes por semana e, praticamente, atravesso a cidade dentro dele. O transporte público em São Paulo, como todos sabem, deixa muito a desejar e, mesmo no meio da tarde, horário em que costumo tomar o coletivo, ele segue cheio até o ponto final no terminal.
O caso é que, alguns dias atrás, presenciei uma situação horrível! 
No meio das pessoas, um homem ejaculou, sem pudor nenhum, na perna de uma moça que estava sentada ao meu lado! Isso mesmo, ele ejaculou! Não tenho palavras para descrever quão indignada fiquei. Tanto ela, como eu, não tivemos uma reação imediata. Na verdade, demoramos um pouco para entender o que havia acontecido; tempo suficiente para o tarado deixar o ônibus correndo e fugir. Na ocasião, ofereci-me para acompanhar a moça até a delegacia mais próxima e fazer uma queixa, mas ela estava muito transtornada e só queria voltar pra casa o mais rápido possível. Eu não insisti.
Lembro que fiquei muito mal no trabalho, pensei em ir até a delegacia sozinha, mas me faltaram forças. Acabei deixando a história de lado, um pouco por acreditar que nada mais poderia ser feito. Acontece que voltei a encontrar o mesmo maníaco no ônibus. Gelei e me arrependi muito de não ter feito nada. Eu estava sentada e ele parou do meu lado, com o casaco enrolado no braço, escondendo a mão, na altura da cintura, exatamente como na primeira vez que o vi. Foi terrível! Pensei em pegar o telefone e chamar a polícia, mas como iria ligar com o tarado tão próximo? Minha reação foi virar de lado, em direção a ele e encará-lo nos olhos, descaradamente. Ele percebeu que eu o havia reconhecido e desceu no ponto seguinte. Fiquei aliviada momentaneamente, mas sei que esse tarado deve ter pegado o ônibus seguinte e agredido outra mulher!
Para minha surpresa, eu não fui a única a reconhecê-lo. A senhora que estava sentada ao meu lado também se lembrou dele e me contou um episódio parecido, no qual ele ejaculava em uma menina que estava dormindo. Isso quer dizer que é uma violência frequente! Conversei com várias outras mulheres dentro do ônibus, descrevi-o fisicamente para que, a partir de então, todas ficassem mais atentas. Desci do ônibus com a certeza de que devia procurar ajuda e denunciá-lo. Eis que começa outra novela...
Por sugestão de uma das passageiras, liguei para o disque-denúncia (181), número que aparece gigante atrás de todos os ônibus municipais da cidade. Falei com a atendente, que antes mesmo de ouvir minha história, disse que não poderia fazer nada para me ajudar. Eu retruquei perguntando qual era, então, a utilidade do disque-denúncia. Segundo ela, serve para tráfico de drogas, pirataria, maus tratos contra animais, idosos, crianças... E violência contra a mulher? Não, para isso tem o 180, foi o que ela sugeriu.
180 é o telefone da Secretaria de Políticas para as Mulheres, que trata de violência doméstica. Bem, não custava tentar. 
De cara, também, a atendente desconversou e pediu para que eu acionasse a polícia civil, telefone 197. Tentei umas cinco vezes e todas as ligações caíram. Então, resolvi ligar para a prefeitura e falar com a SPTrans, liguei 156. A resposta foi: “Você tem que ligar é para a polícia militar, tirar uma foto do suspeito e fazer boletim de ocorrência”.
Lola, socorro! Que burocracia absurda é essa? É por isso que milhares e milhares de maníacos continuam se aproveitando de nós! O caminho da justiça é tortuosíssimo, me sinto completamente só e desprotegida, de mãos atadas mesmo.
No ônibus, as mulheres falaram que eu devia ter gritado, pedido para o motorista fechar as portas e chamado bastante atenção para que o depravado tomasse uma surra dos outros homens do coletivo e, assim, aprendesse a lição. Já me sugeriram que carregasse minha própria “arma”, no caso um canivete suíço. Medo de São Paulo e da violência em que a cidade está submersa. Será mesmo que justiça só com as próprias mãos? Claro que não, não acredito nisso.
No dia seguinte, ainda passei numa delegacia de polícia militar, e ouvi algo do tipo: "Mas nesse ônibus não tinha nenhum homem, não? Para dar uma sova nesse maluco!?". E nem pediram informações da linha ou do suspeito, agiram como se nada mais pudesse ser feito. Vou ter que passar pelo constrangimento de encontrar com o tarado mais uma vez a caminho do trabalho e fotografá-lo para ligar para a polícia.
O que mais me incomoda é o descaso dos órgãos públicos. É tudo muito devagar e, no fundo, todos só querem empurrar o problema para a instituição vizinha. Será que não há mesmo uma solução para um problema que nos atormenta com tanta frequência?

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

"A PROSTITUIÇÃO QUE TEMOS HOJE PODE ESTAR COM OS DIAS CONTADOS"

Esta é a terceira e última parte da entrevista que Monique, prostituta em Porto Alegre, me concedeu. Leia ou releia a primeira e a segunda parte antes, que estão ótimas.

Como você sabe, há muita divergência dentro do feminismo em relação à prostituição. Algumas feministas crêem que a prostituição é uma profissão como outra qualquer; outras, que é exploração. Essas últimas geralmente são chamadas de "abolicionistas". 
Sei que a crítica das prostitutas às feministas abolicionistas é que elas veem vocês como vítimas, não como agentes das suas próprias escolhas. Por outro lado, a prostituição está ligada à exploração e ao abuso infantil e ao tráfico de pessoas. Pode-se dizer que a questão da escolha é muito relativa para inúmeras mulheres, principalmente as menores de idade e as que estão em situação de miséria. Quais são seus sentimentos em relação a isso?
 
A questão da escolha, em todas as profissões, é algo muito relativo. Quem, em sã consciência, pode dizer que uma menina em situação de miséria tenha feito uma boa escolha ao sair de sua casa para trabalhar em casa de família na cidade grande, longe de seus pais e sujeita a todo o tipo de abuso? A prostituição está ligada à exploração, ao abuso infantil e ao tráfico humano, mas há muitas outras atividades ligadas a isso. E são esses crimes que devem ser combatidos e punidos, não as atividades extintas. Ninguém pensaria em erradicar o trabalho das costureiras, muito embora saibamos que a escravidão sustenta, torna possível, a existência de muitas das confecções em atividade no mundo hoje. 
Quanto ao abuso infantil, ele ocorre sob nossos olhos, diuturnamente, sem que seja necessariamente ligado à prostituição. É sabido que os abusadores são, em sua maioria, pessoas de confiança da criança e da família. Então, os argumentos apresentados não são, por si, suficientes para que eu consiga me posicionar contra a prostituição. Principalmente, levo em conta o fato de que, ao nos posicionarmos contra a prostituição, acabamos por nos posicionar contra a mulher prostituta, segregando, discriminando, reforçando a situação de limbo, de gueto. 
É imprescindível a reinserção da prostituta, da mulher prostituída, na sociedade, e isso não se dá quando condenamos sua forma de sustento, sua atividade, quando, de certo modo, a culpamos por sua "vida pecaminosa". Esse posicionamento só colabora para que elas se afastem mais e mais das "pessoas de vida digna". E quem sou eu, quem é você, pra julgar a dignidade do meu semelhante, sua sinceridade de princípios, sua índole?
Em resumo, a exploração tem que ser combatida sempre, a utopia de uma sociedade sem explorados têm de ser perseguida sempre, mas não acredito que a negação da realidade seja um bom caminho rumo a esses objetivos.

No Brasil, a prostituição não é crime. Mas explorar a prostituição, é. Portanto, prostíbulos são ilegais. Como o projeto do deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ), que propõe a regulamentação da prostituição, afetaria a sua vida? Você pode falar um pouco sobre o que acha do projeto?
 
Enquanto prostituta independente, o projeto do deputado Jean não afeta em nada a minha vida. O projeto é positivo justamente por que afeta diretamente a vida das prostitutas que atuam em outros nichos, menos favorecidos, pois determina claramente o papel das casas de prostituição, estabelece limites, define direitos para as trabalhadoras. Os prostíbulos, queiramos ou não, estão aí, em plena atividade. Ainda que fossem verdadeiramente proibidos, o que, na prática, não acontece, funcionariam na clandestinidade, criando suas próprias regras, fugindo à fiscalização. Toda a semana, recebo emails e telefonemas de meninas com interesse de trabalhar "para mim", de modo que entendo ser a mão-de-obra farta para este tipo de trabalho. Dispenso-as, não tenho interesse em agenciar, mas não posso negar que ainda seja procurada para este fim.
Durante muito tempo, entendia que mulheres procuravam pela prostituição como último recurso, devido ao desemprego. Em época de pleno emprego, o que percebo é o fenômeno oposto: os sites de anúncios estão lotados, as agências funcionam a pleno vapor e, em visita recente a algumas casas do ramo, percebo um bom aumento no número de mulheres dispostas a atuar no ramo. Também sei dos abusos e por isso defendo a regulamentação. Elas terão um instrumento mais efetivo, embora não perfeito, contra a exploração.
 
Algumas feministas criticam que o projeto do deputado não prevê melhorias pras prostitutas, apenas “visa suprir uma necessidade da indústria sexual, que juntamente com as grandes corporações, buscam utilizar o corpo das mulheres para faturar altos montantes em grandes eventos como a Copa do Mundo." Como você rebateria essas críticas?
 
O projeto, a partir do momento em que define o que seria "exploração", já prevê melhorias. Hoje em dia não há percentual definido e as casas cobram o que bem entendem, estabelecem "multas" absurdas para as trabalhadoras e, em muitos locais, sequer a função da prostituta fica bem estabelecida, sendo muitas responsáveis inclusive pela limpeza do ambiente e pela reposição do material de trabalho (preservativos, lubrificantes, sabonetes).
 
Você tem contato com outras prostitutas? Há muita competitividade, ou há bastante cooperação entre as prostitutas? Você participaria de uma cooperativa?  
 
Tenho contato com outras prostitutas, sim, procuro ter. Tenho amigas, tenho carinho verdadeiro por muitas dessas meninas de quem acabo por conhecer a luta, os sonhos, a vida... conheço muita gente! A competitividade nesta atividade é tão forte quanto na maioria das outras. A cooperação é pouca e sei que sou mal vista por muitas colegas por minhas tentativas de interação, e mesmo por falar tanto e tão abertamente do assunto. Mas já chegamos a obter avanços, já chegamos a conseguir manter por curto período um forum próprio, nosso, para nossa proteção... 
Parei de agitar esse espaço por falta de tempo e necessidade de cuidar da minha própria agenda. E, não nego, por receios diversos e bem reais. Chegamos a ser, aqui em Porto Alegre, acusadas de "formação de cartel" e de estarmos nos organizando mais do que os homens clientes -- ainda que nossa organização fosse incipiente, não tivesse mais do que alguns meses, a organização fosse pouca e tenha se dado dentre um número bem restrito de acompanhantes.
A reação machista foi impressionante: eu tirei uma semana de férias, começo de 2011, e, na volta, algumas colegas apavoradas me procuravam por medo, já que tinham sido ameaçadas por MSN de processo judicial (!) por conta de termos aumentado o valor do cachê. A ideia era de que teríamos nos combinado e isso daria aos clientes direito de reclamar ao CADE, de que estávamos cometendo crime contra a economia. 
Absurdo, mas as moças pouco sabiam de leis, e precisei acalmá-las. A cópia que me enviaram das conversas era assustadora e dava uma boa medida do quanto, e de como, há interesse em manipulá-las, manipular-nos, de modo vil. Não bastaria a quem tenha ficado insatisfeito com o aumento contratar outra acompanhante? Era necessário amedrontá-las? Que perigo, verdadeiramente, representamos? Que risco se corre quando prostitutas se organizam para sua defesa, sua proteção? A que forças estamos ameaçando?
 
A Suécia adota, desde 2009, medidas que punem a exploração da prostituição e o cliente. Esse modelo também existe na Noruega e na Islândia, e é um dos assuntos do momento na França, já que a ministra dos Direitos das Mulheres anunciou querer abolir a prostituição. Com o projeto do deputado, o Brasil não estaria indo na contramão desses países mais preocupados com os direitos humanos? Pra você, querer erradicar a prostituição seria uma utopia? Como você veria um mundo sem que as pessoas trocassem sexo por dinheiro?
 
Bom, não há dúvidas de que a Suécia é um país muito mais avançado do que o Brasil no que tange aos direitos dos trabalhadores. Mas a realidade sueca EM GERAL é distinta da nossa. A proteção social, os salários, os impostos, vamos copiar a Suécia em tudo então (óbvio que é brincadeira, pois todos sabemos que as coisas não funcionam assim e que vimos avançando muito recentemente). O que vale para eles não necessariamente vale para nós no contexto atual. Além do mais, prostituição e tráfico humano estão intrinsecamente ligados na Suécia. É a estrangeira que sai de seu país para se prostituir na Suécia -- muitas vezes sem sequer falar a língua local.
Num mundo ideal, talvez as pessoas não trocassem sexo, cuidados médicos ou mesmo conhecimento por dinheiro. São necessidades humanas essenciais... Esse não é o mundo em que vivemos, mas isso não me impede de sonhar com ele.
Entretanto, não há imoralidade em trocar sexo por dinheiro. Precisamos parar de ver o sexo exclusivamente sob esta ótica romântica e conservadora. Sexo e romantismo, sexo e envolvimento, nem sempre estão ligados. Eu entendo assim. E esse entendimento me leva a crer que é possível que a prostituição como a vemos, como a temos hoje, possa estar com os dias contados. É possível lutar por essa outra visão, em que a profissional do sexo deixe de ser vista como um ser pernicioso, e entenda-se sua função como, quem sabe, verdadeiramente, uma espécie de terapeuta que auxilia na descoberta e na relação de cada um com sua sexualidade. Em época de "personal qualquer coisa" nem se trata de uma ideia muito revolucionária. Claro que isso exigiria maior preparo e profissionalismo...
Por outro lado, olhando as coisas sem a ótica da utopia, com olhos de hoje: dá pra imaginar algum homem sendo perseguido no Brasil por conta de contratar os serviços de uma prostituta? E alguma prostituta desistindo da atividade por conta de lei desta natureza? Eu, sinceramente, considero absurda, na prática, a ideia difundida pela mídia romântica de que só existe traficante por conta da existência de drogados eventuais, um paralelo possível e mais conhecido dentre nós. Essa é uma maneira escapista e ingênua de racionalizar as coisas, fugindo do debate essencial, fingindo que estamos nos preocupando e fazendo algo para mudar a realidade que nos incomoda sem ir ao âmago das questões.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

GUEST POST: CADÊ AS NEGRAS NAS REVISTAS ADOLESCENTES?

Já faz um tempo, recebi de uma leitora um belo livro sobre como as revistas adolescentes no Brasil veem e retratam a mulher negra. Usei um dos capítulos num curso de extensão sobre análise dos preconceitos na mídia, e foi muito produtivo. 
Hoje quero publicar um post dessa autora falando um pouquinho desse seu projeto. Carolina dos Santos de Oliveira é historiadora, mestre em educação, participante do grupo de ações afirmativas na UFMG, e desde 2007 trabalha com a implementação da lei 10.639/03, que trata do ensino de história da África e cultura afro-brasileira. Ela também trabalha com estudos articulando raça, gênero e mídia. O livro Adolescentes Negras, resultado de sua dissertação de mestrado, está à venda na livraria da editora em BH, mas é possível comprá-lo por email direto com a autora: carolliva@ig.com.br . E, acredite, vale muito a pena.

Hoje, quando lavo meus cabelo crespos e os deixo livres, percebo ao meu redor diversos tipos de olhares, desde reprovação até de admiração ("Que coragem!"). Mas para que hoje, já na casa do 30, eu possa me sentir bem com essa imagem, que reforça que sou uma mulher negra, o caminho foi longo.
Lendo revistas femininas desde a pré adolescência, descobri que eu não estava adequada aos padrões estéticos da revista, nem da TV, nem de nada...
A inquietação que surgiu nessa época me acompanhou pela vida. Mais tarde, como professora de história, vi a angustia de não se ver representada se repetir em minhas alunas. Vi também que as revistas estavam mudando: da total ausência de adolescentes negras, havia uma presença incipiente nas páginas. Surgiu nesse momento uma questão de pesquisa: como essa presença se apresentava? O que ela significaria?
Foi nesse contexto que iniciei minha pesquisa de mestrado em educação. Considerando o poder “educativo” da mídia e que ela não se constitui do “nada” -- ela se alimenta do que a sociedade lhe fornece e aceita receber, num processo de alimentação cíclica --, considerei que podia “ler” como as relações raciais e o racismo estavam se apresentando no início do século XXI.
O racismo cordial que impera no Brasil nos dificulta e às vezes impede de percebê-lo, e nisso reside sua crueldade. Sem percebê-lo, não existe; sem existir, não o combatemos. Através da análise de revistas femininas em geral e especificamente as voltadas para as adolescentes, foi possível ver essa cordialidade.
Trabalhei principalmente com a revista Atrevida, uma das maiores do Brasil para adolescentes. A princípio a revista não “racializa” suas leitoras, ou seja, não marca o pertencimento racial do seu público-alvo. No entanto, essa ausência de marcação revela que, seguindo o modelo de racismo no Brasil, ao falar de sujeitos brancos não é necessário mencionar seu pertencimento étnico, uma vez que esses são considerados os representantes naturais da espécie.
As adolescentes negras aparecem pontualmente em episódios em que são convidadas a “corrigir” e “educar” seus corpos em nome, segundo a revista, não apenas da beleza, mas da "saúde". As revistas femininas são publicações baseadas no entretenimento e não na informação; a novidade é o que interessa, e não os acontecimentos atuais. Por isso seu discurso é o de ser algo ou alguém pelo consumo. Com a imagem da mulher negra não é diferente. Essa adolescente negra é convidada a manipular e modificar seu corpo. Ela é sempre alertada de que pode melhorar, mas sempre com muito trabalho. Trabalho expresso em expressões comumente associadas aos cabelos crespos e corpos negros: lidar, domar, rebeldes, indisciplinados.
Diante da criminalização do racismo, da formação de uma classe média negra que pressiona por produtos e serviços que lhes atenda, das lutas de várias décadas travadas pelos movimentos negros (que resultaram em diversas conquistas políticas como a lei 10.639/03 e a criação da SEPPIR, entre outras), os grupos dominantes se apropriam do discurso vindo desses movimentos, e o reelaboram para iludir uma inclusão e ao mesmo tempo esvaziar o discurso original. 
Na contramão de estudos realizados em diversas áreas, em que sabemos que as hierarquias raciais são socialmente -- e não biologicamente -- produzidas, a revista insiste em “biologizar” as diferenças e trazer soluções para a correção dos problemas com “neutralidade científica”.
Existem muitos exemplos em diversas edições da revista pesquisadas e de outras também, seja com a presença de mulheres negras, seja na sua ausência. Devemos ficar atentas para que esse discurso inclusivo emergente não nos seduza e deixe enganar, como se o racismo estivesse superado. 
A inclusão de imagens e discursos sobre as adolescentes e mulheres negras representa sim um avanço no que diz respeito a relações raciais no Brasil, mas representa um processo semelhante ao que ocorre na própria sociedade em que a revista está inserida. Um processo cheio de avanços e recuos, carregando as ambiguidades do racismo brasileiro e do mito da democracia racial. Um processo que, pelo tamanho de seus passos, ainda será longo.
Durante minhas pesquisas percebi que para além da questão racial nos deparamos com a questão de gênero, uma vez que as publicações determinam padrões estéticos e de comportamento que as mulheres em geral deve seguir.O resultado dessa análise é meu livro Adolescentes Negras, no qual pretendo levar xs leitorxs a aguçar o olhar para os lugares determinados para mulheres negras na nossa sociedade. Assim, podemos começar a pensar em como mudar essas perspectivas.
Posso dizer que hoje tenho o privilégio de contar com bonecas negras, referências positivas de mulheres negras para apresentar a minha filha e também ao meu filho. Mas não somos uma ilha. Sei que, apesar de todo o meu esforço na formação racial deles, não estamos blindados de sermos vítimas do racismo. Ainda precisamos avançar muito, todxs nós.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

OSCAR, BOLÃO, DESASTRES

Vou confessar que mal vi a primeira meia hora do Oscar de ontem. Minha transmissão estava péssima, travava o tempo todo. Mas do pouco que vi foi possível perceber que Seth MacFarlane não será chamado pra apresentar a cerimônia de novo.
Aliás, por que não convidaram logo Tina Fey e Amy Poehler, que deram um show no Globo de Ouro?
Seth acirrou a competição pro pior apresentador da história do Oscar. Sei que o nome que vem imediatamente à cabeça é o James Franco, mas sério, o David Letterman, em 94, foi muito mais terrível. Ele começou com uma piadinha sem graça sobre Oprah e Uma (Thurman), a plateia riu por educação, e ele insistiu na gag mais 50 vezes.
Praticamente todas as piadas do Seth falharam. Foi realmente embaraçoso. Além de contar com a ajuda do eterno Capitão Kirk num telão, que veio do futuro lhe dizer que Seth ficaria conhecido como o pior apresentador ever (quando o capitão apareceu, a previsão já não era mais necessária -- a gente já sabia), o criador de Ted e Family Guy fez um longo e doloroso esquete com a Sally Field e um monte de piadinha preconceituosa.
Contra latinos ("não entendemos nada do que eles dizem, mas não importa, porque eles são muito atraentes"), sobre violência doméstica ("Django é a história de um homem lutando para trazer de volta sua mulher, que tem sido sujeitada a muita violência, ou, como Chris Brown e Rihanna dizem, um date movie"), sobre mulheres stalkers ("Jessica Chastain em A Hora Mais Escura faz uma mulher que gasta doze anos perseguindo Bin Laden. O filme é uma celebração da capacidade inata de toda mulher de nunca esquecer alguma coisa"). Ele também sexualizou uma menina de nove anos, Quvenzhane Wallis ("Pra dar uma ideia de como ela é jovem, ela ainda tem 16 anos pra ficar velha demais pro George Clooney").
Essa piada aparentemente deu permissão para que outras vozes pegassem no pé da fantástica atriz mirim. O site satírico The Onion, por exemplo, a chamou de cunt (palavra vulgar pra falar de vagina, e que significa vadia, estúpida). O site deletou o tweet uma hora depois, e só pediu desculpas hoje. Isso dito de uma garota negra que usa bolsa em formato de cachorrinho...
Mas, voltando ao Seth, o pior que ele fez foi cantar uma música chamada "Nós vimos os seus peitos", em que ele cita algumas das atrizes presentes que já ficaram sem roupa na tela. A reação do público foi mais ou menos essa:
Esta é a Naomi Watts ao ser mencionada. Parece que essas reações são pré-gravadas (as atrizes estão com vestidos diferentes), mas o que isso quer dizer? Que o número foi mostrado, as pessoas detestaram (é só ver a cara dos outros), e, ainda assim, ele foi mantido. Pra ofender mesmo. [O Vitor explicou que "a musica foi um video do William Shatner do futuro mostrando que ele fez esse número, foi desagrádavel e ofensivo e considerado o pior apresentador. Aí ele, ao vivo, decidiu nao fazer o número e chamou Charlize e Channing Tatum pra dançar no lugar].
A que tá fazendo um facepalm é a Charlize Theron, que não ficou feliz em ser reduzida a um par de seios, ainda mais numa noite que deveria celebrar o talento das atrizes. Ah, e tem mais: como me lembrou uma leitora, quatro dos filmes citados em que os seios das atrizes aparecem são... cenas de estupro. É verdade, Seth cita Meninos Não Choram e Acusados, em que temos a sorte de ver os seios da Jodie Foster enquanto ela é violentada num bar. Que legal, né? Vimos seus seios!
Sem falar que o discurso de Seth foi interminável. Prum show que usou a musiquinha de Tubarão pra empurrar pra fora do palco quem fizesse um discurso de agradecimento mais longo que alguns segundos, por que dar 19 minutos pro Seth passar vergonha?
O trem foi tão, mas tão ruim que eu me peguei torcendo para que a cerimônia tivesse mais números musicais. E parece que eu não fui a única. Jennifer Hudson apareceu, cantou, comoveu, e recebeu a primeira standing ovation (como se traduz isso?) da noite. Perto dela, todas as outras cantoras, entre elas Barbra Streisand e Adele, pareceram estar roucas. 
Os outros pontos altos, pra mim, foram a Meryl Streep pisando no vestido e tendo que arrumar a calcinha, sem jamais perder a majestade, a linda e divertida Jennifer Lawrence tropeçando ao subir a escadaria pra pegar seu Oscar (eu me identifiquei!), e a Jane Fonda, magnífica. Como eu disse no Twitter, eu queria chegar aos 50 tão bem quanto a Jane chegou aos 75.
Vamos nos reerguer no bolão do ano que vem!
Outro momento impactante foi o empate em Edição de Som. Não que seja inédito, mas é raro. O empate mais famoso é de 1969, quando Katharine Hepburn e Barbra Streisand ganharam melhor atriz. Mas a última vez que um empate tinha acontecido foi em 94, só que numa dessas categorias menores (curta de animação), que nem entram no bolão. (Todos os resultados do Oscar estão aqui).
Olha a Alexandra se aproximando pra surrupiar o bolão, gente!

Ah sim, o bolão. Bom, o não pago tinha tanta gente (299 participantes) que eu nem tentei acompanhar. Mas o bolão pago, com apenas 14 jogadorxs, chegou a ter quase tanto suspense no final quanto Argo. Havia uma turminha de cinco pessoas (eu não inclusa, mas pelo menos Silvio, vulgo maridão, estava lá), que disputava cabeça a cabeça. Finalmente, a Alexandra, única que havia acertado design de produção (ganhou Lincoln), acertou direção (Ang Lee), e levou o bolão, com 17 acertos em 20 possíveis -- um número formidável prum ano em que não havia tantos favoritos e as premiações ficaram bem repartidas. Italo, Silvinho, Claudemir e Vitor (os três últimos, participantes antigos do bolão), acertaram 16. Eu fiz 15, chuif.
O que mais dói é que esta é a terceira vez consecutiva que Alexandra vence o bolão. Por que, gente, por quê?! Não há justiça neste mundo! Um comentarista anônimo disse ontem, com razão: "Alexandra até tenta disfarçar mas todos sabemos que ela vem do futuro". Pois é, precisamos debater se queremos que essa Exterminadora do Futuro participe no ano que vem.
No bolão não pago quem deu um passeio foi a Anna Britto. Ela acabou acertando 17, mas chegou a ficar com 10 em 10, muito na frente. Só quatro pessoas acertaram 16: Warwick, Rafael, Marco e Eduardo. Espero que vocês todos deixem de ser pão-duros miseráveis e entrem no bolão pago no ano que vem. Ah, também merece destaque a Gabriela, que fez zero. Isso exige talento! (Vou colocar os nomes e acertos nos comentários. Depois o Júlio César, o santo que organizou todo o bolão, vai me mandar um link que eu disponibilizarei aqui. Obrigada, Júlio! Seu único defeito é ser amigo da Alexandra! Ex-amigo a esta altura, espero).
Se a Alexandra e/ou a Anna quiser escrever um guest post tripudiando em cima do meu fracasso, pode mandar que eu publico, com sangue nos olhos. Ahn, Alex, eu já tenho a sua conta bancária. Não precisa mandar não.
                                                      Lolinha contemplando o horizonte