segunda-feira, 31 de agosto de 2015

HOMENS DECIDEM O QUE AS MULHERES VESTEM

Acho que quem não conhece vai gostar de saber desse caso contado por Susan Faludi no seu livro obrigatório, Backlash: o contra-ataque na guerra não declarada contra as mulheres
Backlash fala da reação conservadora lançada na década de 1980 para fazer as mulheres regredirem nas conquistas que tinham alcançado nos anos 60 e 70. É um livro importante e delicioso, que você pode ler aqui, grátis, com tradução de Mario Fondelli para a Rocco.
Na primeira metade da década de 80, as mulheres americanas compravam menos roupas. Faludi cita uma pesquisa que mostra que, entre 1980 e 86, mais de 80% das entrevistadas disseram que detestavam comprar roupa. 
Faludi atribui isso em parte à crise econômica, mas também ao fato de que as mulheres estavam mais ocupadas comprando casas, carros e planos de saúde. 
O mercado da moda tentou lidar com a queda na procura aumentando o preço das roupas, que subiram em média 30%. Não adiantou. A mídia tinha até um mote pro que acontecia: "revolta contra a moda". 
Criação de Arnold Scaasi
Outra explicação para a queda nas vendas foi que, pra variar, os estilistas pensavam suas peças para jovens altas e magras. A moda era a "alta feminilidade", cheia de babados e fru-frus. Arnold Scaasi, um dos criadores dessa "tendência", confessou que ela era "uma reação ao movimento feminista, que foi uma espécie de guerra". Lacroix lamentou que, com o feminismo, as mulheres pararam de dar importância à moda -- "só restaram como clientes [da alta costura] as princesas árabes e senhoras da nobreza europeia". 
Faludi lembra que essa revolta das consumidoras já havia acontecido quarenta anos antes, em 1947. Durante a Segunda Guerra, as mulheres usaram calças, sapatos de salto baixo, suéteres largos, e não quiseram voltar a se vestir como antes. Christian Dior lançou o "New Look", uma volta ao visual da era vitoriana, que exigia cintas para deixar a cintura com menos de 40 cm. No final da década de 40, a mídia declarou que Dior havia vencido a batalha. 
Christian Dior e seu new look no
final dos anos 1940
Como aponta Faludi: "Em todos os períodos de backlash (reação conservadora), a indústria da moda contra-atacava produzindo roupas punitivamente restritivas e a imprensa ligada à moda exigia que as mulheres as usassem". Até porque "a insegurança pessoal é a grande força motriz do consumo". Um estudo do começo dos anos 1980 mostrou que as mulheres que menos consumiam eram as mais seguras e independentes.
Griffith é observada por
Ford em Secretária
O discurso nos anos 80 foi que as conquistas feministas estariam roubando as mulheres de sua "natural feminilidade". A porta-voz do Conselho de Moda Íntima se queixou: "Estamos enfrentando uma crise de identidade e nos vestindo como homens". A gente vê isso direitinho numa cena de um grande sucesso do cinema na época, Uma Secretária de Futuro, de 1988, em que Harrison Ford, ao conhecer Melanie Griffith, a elogia por ela usar um vestido preto e se vestir "como mulher", e não como homem (com blazer, por exemplo), como faziam as outras executivas na vã tentativa de, quem sabe assim, serem levadas a sério.
A moda investiu muito para feminilizar as consumidoras, principalmente as executivas. Calvin Klein, ao lançar uma coleção de minissaias, afirmou: "Nós nos baseamos no desejo das mulheres". Um fabricante de roupas de Los Angeles justificou que as mulheres no ambiente de trabalho "querem que os homens olhem para elas como mulheres. Veja primeiro as minhas pernas, não a minha competência". 
Houve um esforço enorme para aquecer o mercado de moda íntima, que também estava em baixa. 
Melanie Griffith em Secretária
Bob Mackie, um estilista de Hollywood, lançou no final da década de 80 uma coleção de lingerie praticamente idêntica à que ele havia criado no início da década, e que havia sido um fracasso retumbante. Porém, segundo ele, agora seria diferente: "As mulheres agora querem lingerie muito feminina". O cinema fez o possível para alavancar essa "tendência", com cintas-ligas e sutiãs meia-taça em ampla exposição em Bull Durham, Uma Secretária de Futuro, e, óbvio, Ligações Perigosas.
Como diz Faludi, "a lingerie do fim da década de 1980 celebrou a repressão, não o florescimento, da sexualidade feminina. A senhora vitoriana ideal para a qual ela tinha sido originalmente criada não devia ter, afinal de contas, libido alguma" (pg. 198).
Alguns anos antes, um americano chamado Roy Raymond pensou no tema vitoriano por ter sido, segundo ele, um tempo feliz e romântico. Ele abriu uma butique especializada em lingeries num shopping da Califórnia tendo em mente pessoas como ele -- homens. Mas pegava mal dizer que a loja era de um homem vendendo lingerie sexy pra mulheres, então ele colocava em seu catálogo uma carta pessoal de "Victoria", conclamando as consumidoras para "minha butique". Na mídia, Raymond nunca aparecia. Só a esposa dele, Gaye. A loja, evidentemente, se chamava Victoria's Secret.
Em 1982 uma empresa, a Limited, comprou a marca por um milhão de dólares e a transformou numa cadeia nacional. Em cinco anos, a franquia já contava com 346 lojas nos EUA. Faludi narra uma típica loja da Victoria's Secret em 1988, com prateleiras cheias de tangas de seda e ursinhos de pelúcia:
"Perguntadas se estavam ali atrás da lingerie vitoriana, duas clientes dizem que não com a cabeça. Até a gerente Becky Johnson admite que só compra 'as boas e velhas calcinhas e sutiãs básicos'. Então, quem é que está comprando a porcaria vitoriana cheia de babados? 'Os homens', respondeu Johnson.
Embora os homens representem de 30 a 40% dos clientes das lojas Victoria's Secret, são responsáveis por quase metade do volume do faturamento, estimam os gerentes da empresa. 'Os homens são ótimos', suspira uma das vendedoras da loja de Stanford. 'Não medem esforços para ter o que querem.'
Um espécime dessa raça entra na loja justo nesse momento. Jim Draeger, um advogado de 35 anos, ignora o balcão de ofertas e vai diretamente para as prateleiras de bustiê. 'Venho aqui desde 1980', diz ele, analisando um corpete de seda. 'Esse tipo de roupa torna a mulher mais sensual'" (pg. 201).
Um fato que eu não sabia é que Raymond cometeu suicídio aos 46 anos, em 1993, pulando da famosa ponte Golden Gate. 
Se o criador da marca e a Limited tiveram que suar na década de 80 para convencer as consumidoras a trocar calcinhas e sutiãs "práticos" por lingerie com rendas ou fio-dental, hoje isso não é um problema. Em 2012 a Victoria's Secret faturou 6,12 bilhões de dólares.

domingo, 30 de agosto de 2015

BEIJING NO OMBRO

Lolinha em frente ao Cubo Aquático em Pequim (clique p/ampliar)

Como vocês sabem, entre os dias 4 e 25 de julho estive na China, numa viagem inesquecível patrocinada pelo Santander Universidades para 24 professores e 76 alunos de universidades brasileiras. 
Eu e alunxs queridos em lanchonete
próxima à Muralha da China
Este é um (outro) email que enviei pro maridão no dia 11 de julho, com esse título mesmo, que ele achou infame. O email é longo, mas vamos ver se eu consigo encontrar várias fotos que me mandaram pra ilustrá-lo.

Oi, minha paixão! Muitas saudades! Ontem não escrevi porque fiquei com preguiça. Nem acessei a internet.
Júlio (UFRPE), Heverson (Unifor) e eu
Anteontem tivemos uma excelente aula de um professor brasileiro, o Júlio, da UFRPE, sobre carnaval e manifestações artísticas do nordeste. Foi muito boa mesmo, ele misturou bem teoria e prática, incluiu vários vídeos curtinhos, chamou seus dois alunos (ele teve sorte do casal de alunos saber dançar) pra dançar forró na frente da turma, e esse casal por sua vez conseguiu chamar um casal de alunos chineses pra aprender a dançar, e todo mundo adorou.
Minha palestra na PKU
Eu fiquei na dúvida se também deveria incluir alguns vídeos na minha apresentação (que sera amanha), mas acho que não sei fazer isso, então... Ai, amor, e se minha aula for uma droga? [Não foi, foi super elogiada!]
Um dos campi da PKU
Anteontem teve a segunda aula de um professor chinês, também excelente. Foi sobre direito na China. Eles parecem ter poucos advogados por aqui, cerca de 300 mil. Prum país tão gigantesco e com 1,4 bi de pessoas, é bem pouquinho.
Também anteontem, depois das aulas, fomos ao show acrobático. Era longe... Mas valeu muitíssimo a pena. É incrível tudo que eles fazem. Coisas realmente perigosas, arriscadas, sem rede de proteção. Fico feliz que ninguém morreu, porque eu não me sentiria bem se alguém morresse pro meu entretenimento. E era uma equipe enorme. Sabe aquilo das motos correndo dentro de um globo? Então, acabaram entrando oito motos. Qualquer errinho e morre todo mundo lá dentro.
As dez moças que se equilibraram em cima de uma bicicleta em movimento também iriam se machucar bastante se caíssem, mas sobreviveriam. O carinha que subia e descia degraus altíssimos com uma só mão não teria a mesma sorte, acho eu.
Só sei que fiquei a apresentação inteira de boca aberta, aplaudindo e gritando, implorando: “Não! Não! Por favor, não façam isso!”.
Depois do show uma turma decidiu ir pra não sei onde. Só sei que ficava muito longe, mais de 4 quilômetros, e o pessoal queria ir andando. Andamos 1,5 km e aí finalmente imperou a voz da razão e pegamos o metrô. Foi minha primeira viagem de metrô na China. É muito bom. Lotado, é claro, mas tudo bem sinalizado e bilíngue. E limpo.
Eu e alguns professores no jantar
num barco
Ah, foi interessante porque dois chineses, Bella e V. (seus nomes ocidentais) nos acompanharam nesse passeio todo. Todo mundo quer sair com alunos chineses pra não se perder. E porque eles são super amáveis. E porque na hora de se comunicar (pedir comida, por exemplo), eles quebram um galhão. Bom, Bella e V. estiveram com a gente em Shanghai e, como eles constantemente andam juntos, todo mundo pensava que eram um casal de namorados. 
Eu tentando imitar (sem
sucesso) o gesto da está-
tua num museu
No começo da nossa longa caminhada Bella não estava junto, então perguntei pro V. porque sua namorada não veio. Ele respondeu que ele não tem namorada e que, na verdade, “he's kind of gay” [ele é meio gay]. Aí eu quis saber, como assim, “kind of”? E ele explicou que nunca tinha ficado com um cara, apesar de se sentir atraído por homens. Falamos um pouco sobre homossexualidade na China. Não existe nenhuma medida punitiva, mas é bastante tabu, segundo ele. Ele disse que muitos gays e lésbicas contam pros seus pais e são aceitos, mas há os que insistem em casamentos de aparência.
Eu e Pablo no Lama
Temple
Quando a gente estava perto do nosso destino final, senti uma poluição horrorosa. Comecei a tossir forte (estou com muita tosse esses dias, acho que foi a chuva que peguei em Shaghai, aliada à poluição), e coloquei a máscara que uma professora tinha me dado. Não sei se ajuda muito, mas fiquei com a máscara quase o tempo todo por lá. Eu me senti um ET. Ah, apareceu num telão a Dilma se reunindo com um monte de políticos chineses. A gente ficou com a impressão que ela estava na China. Depois falaram que ela estava na Rússia.
E chegamos ao grande mercado. É aquele lugar que turistas vão para experimentar comidas nojentas que eles consideram típicas mas que os chineses não comem de jeito nenhum, tipo espetinho de escorpião. Além de ser caro pra caramba (25 yuans cada espetinho, ou 13 reais), é cruel. Antes de ser grelhado, o espetinho fica exposto, com vários escorpiões vivos, empalados, se mexendo, tentando fugir. Um aluno brasileiro comeu, outros experimentaram uma ou outra patinha, e todos tiraram muitas fotos.
Tinha também churrasco grego, panquecas, algo parecido com pinhão, e espetinhos que parecem maçãs do amor, mas com frutinhas muito menores que eu não quis provar.
Eu e turminha amada
numa lanchonete na PKU
E um monte de tendinhas cheias de bugigangas. Acabei comprando mais um monte de coisinha que não preciso, tendo que negociar daquele jeito chinfrim. Os chineses gostam muito do meu dinheiro, amor.
O final da noite foi anticlimático, com um péssimo lanche no KFC [Kentucky Fried Chicken]. É que dois dos alunos brasileiros presentes nunca tinham estado fora do Brasil e portanto nunca tinham comido fast food de frango frito. Tadinho, um deles vai passar um ano estudando no Arizona assim que voltar da China e não sabe que vai se enjoar de KFC e afins por lá.
Comida chinesa é muito melhor!
No estádio olímpico de Pequim
Ontem de manhã teve um evento meio lúdico, meio de atividade física, num dos gramados da universidade (que não tem 2,7 hectares, como te falei; li em outro folheto que são 270 hectares, ou 2,7 mil quilômetros quadrados de campus). Foi divertido. Aprendemos noções básicas de Tai chi Chuan e tivemos que escrever alguns símbolos em chinês com uma caneta gigante. Eu fui a única professora que participei.
Fê, eu e Luã na cerimô-
nia de encerramento
Ontem à tarde, depois de almoçar numa das cantinas da universidade (almôndegas de porco com arroz, muito bom) e trocar mais cem dólares (acho que serão os últimos que trocarei, paixão, ou seja, gastarei uns 400 dólares no total; o consenso por aqui entre os brasileiros é que não compensa comprar eletroeletrônicos, que estão com um preço parecido com o do Brasil; os que estão mais baratos são falsificações), passei a tarde sem fazer nada. Teve um pessoalzinho que me chamou pra ir ao Summer Palace (ex-palácio do imperador), mas eu preferi não ir. Minhas pernas estão cansadas de tanto andar. Ontem meus pés doíam! 
Às 17:30 (aqui se almoça e se janta muito cedo, as cantinas da faculdade fecham às 18:30) nós professores nos reunimos em frente ao prédio 1 (estamos no 9, aqui anda-se muito pra ir a qualquer lugar) para sermos conduzidos a um restaurante no campus, longe pra caramba. E lá foi a Lolinha com seus pés exaustos andar mais um montão. 
Professores na embaixada do Brasil na
China
Foi um jantar de confraternização. Havia alguns (poucos) professores chineses (a maioria está de férias agora). Um deles, que atua na linha de Brazilian Studies, fala português muito bem, passou um ano e meio na UnB e trabalha com literatura comparada. Fiz pra ele a sua pergunta -– se os chineses sabem do poder e da importância que têm -– e ele respondeu sorrindo que sim. “É o nosso marketing,” disse ele.
Pablito e eu na Muralha da China
Ele também disse que a China continua sendo um país comunista, mas só politicamente. Na economia, como sabemos, é capitalista. No campo político, o Partido Comunista daqui tem 87 milhões de membros filiados. Mais que a população total de vários países.
Rindo ao ter que posar
com estátua na PKU
Também conversei com uma professora chinesa e comparamos a situação das mulheres em cada um dos BRICS. Chegamos à conclusão que é pior na Índia. A situação da Rússia também é bastante ruim, pelo que li, inclusive com perseguição política a grupos feministas. E a África do Sul detém o recorde mundial de estupros (com atenção especial ao estupro corretivo de lésbicas). E partes mais distantes da China ainda cometem abortos e infanticídios de meninas. Ou seja, EM COMPARAÇÃO, o Brasil parece não estar tão mal. Essa professora se declarou feminista e disse que estará na minha palestra amanhã. (E sabe que vergonha, amor? Eu não trouxe cartão de visita pra entregar! É verdade o que tinha ouvido: eles entregam o cartão com as duas mãos).
No Museu de Planejamento Urbano,
ainda em Shanghai
Uma executiva do Santander, uma chinesa que mora em Madrid mas visita a China cinco vezes por ano, disse ter a impressão que em países comunistas como a China havia menos desigualdade entre homens e mulheres, pelo menos no mercado de trabalho e no pagamento de salários. Eu disse que várias alunas chinesas contaram ter menos oportunidades de trabalho que seus colegas homens, e ela achou estranho, porque na filial do Santander em Pequim só tem mulheres, segundo ela: “they're all ladies”.
Com alunxs fofos na saída da Cidade
Proibida
Foi um jantar muito bom, naqueles restaurantes com mesa giratória e cheia de pratos. O pato estava excelente. Pato é gostoso, se a gente abstrair e não pensar no pobre bichinho.
Agora estou aqui, domingo de manhã (acordei às 6), escrevendo este email gigantesco pra você. Vou tirar a manhã pra responder emails, coisa que não faço há dias.
Melhor não comentar. Pablo me
força a fazer essas poses. Foi no
Lama Temple, e eu me senti no
Caçadores da Arca Perdida
Talvez fazer um post pro blog pra amanhã. Hoje depois do almoço vamos sair. Mas tenho que revisar minha palestra de amanhã.
O chocolate aqui não é bom, minha paixão.
Queria que você estivesse aqui comigo.  
Te amo, meu lindo!
Da sua Lolinha

sábado, 29 de agosto de 2015

GUEST POST: "NUNCA TIVE A CHANCE DE DAR MEU CONSENTIMENTO"

Recebi este relato da B.: 

Meu nome é B. e acompanho seu blog desde 2012. Foi um marco muito grande na minha vida, no sentido de me descobrir como feminista e de identificação com outras pessoas.
Por isso, pensei em te escrever sobre algo que aconteceu há dois anos na minha vida e que ainda me afeta, na realidade. Fiquei bastante tempo pensando em como escrever esse email. Então, vamos lá.
Era uma vez uma garotinha de 17 anos, uma pessoa alegre, cheia de sonhos, determinada, com alguns objetivos muito bem definidos. Era uma vez eu. Eu queria descobrir o mundo, conhecer outros países, mudar de cidade, fazer uma graduação, um mestrado, um doutorado... Até esse ponto, considero que eu fui muito bem-sucedida na minha "missão". Passei um ano fazendo intercâmbio em um país bem diferente durante o ensino médio, voltei, mudei sozinha pra outra cidade, fiz cursinho e depois de um ano consegui passar numa ótima universidade pública. Tudo ia bem.
Isso era 2013, no meu primeiro semestre de faculdade. Mas aí, durante esse ano, comecei a sentir muitas coisas ruins (angústia, medo, desesperança), que evoluíram para um quadro de depressão grave em 2014. Eu comecei a ter crises de choro inexplicáveis, que pareciam ataques de pânico. O ano de 2014 destruiu aquela pessoinha alegre que eu era: eu me isolei, sair da cama era um esforço tremendo, fiquei agressiva, perdi meus objetivos, me descobri infeliz no curso. Os pontos mais difíceis foram no segundo semestre do ano passado e agora em 2015. Eu pensava em me matar o tempo todo, e cheguei a tentar me cortar três vezes.
O primeiro semestre desse ano foi terrível. Não conseguia mais ir pra faculdade, acabei trancando quase todas as matérias, passava muito tempo dormindo ou só deitada. Passei por várias experiências desagradáveis com psiquiatras/ psicólogos, até que comecei a fazer acompanhamento com uma psicóloga maravilhosa.
Pois bem, depois de toooda essa história... Foi com essa psicóloga que eu consegui investigar melhor o que estava, e ainda está, acontecendo comigo. E o que eu acho mais estranho é que o fato surgiu de uma maneira acidental na conversa. Talvez tenha sido meu inconsciente, não sei. Bem, o que aconteceu foi lá no meu primeiro semestre de faculdade. É bastante comum na universidade acontecerem "happy hours", que são basicamente aquelas festinhas no campus mesmo, no espaço público. 
Em maio de 2013, fui em um desses happy hours com uma colega. Bebi duas cervejas e, não sei porquê, fiquei totalmente alterada. Hoje eu suspeito que tenham colocado alguma coisa na minha bebida. Depois disso eu fiquei fora do ar por umas 3 horas, acho. Só lembro de alguns flashes. Eu mal conseguia ficar em pé, alguém me pegou pela mão, me colocaram dentro de um carro, esse alguém me penetrou, me acharam passando mal no estacionamento. Continuei bem mal até ir embora com essa colega. No dia seguinte, quando eu acordei, isso voltou na minha cabeça e, quando eu fui no banheiro, tinha sangue na minha calcinha. 
Fiquei bem assustada, passei na farmácia e comprei a pílula do dia seguinte. O fim de semana foi horrível, porque eu viajei pra uma formatura e não podia conversar com ninguém. Voltar pra faculdade na segunda foi pior ainda, porque na festa meus colegas de curso simplesmente estavam achando muito engraçado meu estado, e eu não fazia ideia de quem fez aquilo. Eu "resolvi" que não ia deixar isso me afetar; decidi na minha cabeça que eu tinha transado com um desconhecido e era isso.
Sabe, Lola, até hoje, depois de muito e muito trabalho, ainda me questiono se isso foi um abuso. Mas quando essa pessoa passou e me puxou, eu nunca tive a chance de dar meu consentimento. Eu não tinha capacidade nem de lembrar meu nome. E hoje eu entendo que apesar da "decisão" que eu tinha tomado, de não deixar isso me afetar, o que aconteceu mexeu muito com a minha cabeça. Meu estado de negação fez com que meu choque voltasse das formas que te contei ali em cima. 
A forma como eu passei a me relacionar com homens também mudou completamente; durante esses dois anos, eu quase não disse "não" pra sexo. Hoje posso afirmar que não queria de fato ter estado com 80% das pessoas com quem estive. As coisas se tornaram muito mais uma questão de "tá, vai logo" do que realmente vontade. Sem contar que depois disso, comecei a sentir muita dor durante as relações e nunca falava nada. 
Ainda é bastante difícil encarar o que aconteceu. Foi depois que isso surgiu na terapia que eu comecei a melhorar. Estou bem mais saudável do que há alguns meses atrás, e estou começando a me sentir otimista apesar de alguns dias ruins. É engraçado como renomear as coisas muda os efeitos delas sobre a gente. O que eu estou sentindo agora é um misto de medo, desconforto e alívio. 
Eu conheci um cara muito bacana recentemente, que eu sei que me respeita totalmente, mas estou com muito medo de me relacionar com alguém. 
Parece que eu finalmente estou voltando a ter consciência do que eu sinto e retomando minha capacidade de agir sobre isso, depois de muito tempo apática. Não sei como vai ser daqui pra frente, mas fico feliz só de eu conseguir pensar em um "pra frente" pra minha vida.  
Ninguém deveria passar por isso, de verdade. Eu tenho chorado por mim e por todas as mulheres que sentiram isso, e espero que todas recebam a ajuda necessária pra superar. Acho que a gente nunca volta a ser quem era antes, mas isso talvez seja simplesmente relacionada a mudanças na vida.
Bem, Lola, era isso... Desculpa pelo tamanho do texto e se eu tiver gastado muito do seu tempo. Mas senti que seria bom te escrever. Seu blog é um dos únicos lugares em que eu sinto que há espaço para tolerância e não a propagação desse ódio tão característico dos movimentos atuais.

Meus comentários: Que horror, B. Espero que você hoje tenha consciência de que você foi estuprada. E é definitivamente muito difícil deixar algo assim "pra lá". Sabemos também que é incrivelmente difícil denunciar. Denunciar quem, pra quem? Se até quando uma vítima tem provas ela é desacreditada... E isso segue acontecendo nas universidades (e não só nas brasileiras). E é preciso denunciar, fazer barulho, falar com os coletivos feministas da sua faculdade. 
Porque não é nada aceitável que alguém te leve pra dentro um carro -- te carregue, como você sugere, porque você mal tinha sequer condições de andar --, faça sexo não com você, mas em você, e te deixe no estacionamento. Isso é estupro. E é provável sim que tenham colocado algo na sua cerveja. Se você visse como tem "guias" na internet sobre como dopar meninas e mulheres para depois estuprá-las... 
Admiro sua força e sua decisão consciente de "resolver" que aquilo não iria te afetar. Mas, infelizmente, como você viu, não funciona assim. O trauma permanece, a dor reaparece, o corpo cria mecanismos pra se "desligar", para que você não sinta essa dor... Claro, as pessoas têm maneiras diferentes de lidar com isso, mas uma experiência traumática não é chamada de traumática em vão.
Ainda bem que você está fazendo terapia e que hoje você passa por um novo momento na sua vida. Mesmo assim, querida, você sendo feminista, é bom fazer parte de um coletivo e conversar sobre o que pode ser feito pra que isso que aconteceu com você não aconteça de novo, com outras alunas. Agora que você não está mais apática, talvez ajudando outras colegas você possa se sentir melhor. Fique bem, linda!