Acho que quem não conhece vai gostar de saber desse caso contado por Susan Faludi no seu livro obrigatório, Backlash: o contra-ataque na guerra não declarada contra as mulheres.
Backlash fala da reação conservadora lançada na década de 1980 para fazer as mulheres regredirem nas conquistas que tinham alcançado nos anos 60 e 70. É um livro importante e delicioso, que você pode ler aqui, grátis, com tradução de Mario Fondelli para a Rocco.
Na primeira metade da década de 80, as mulheres americanas compravam menos roupas. Faludi cita uma pesquisa que mostra que, entre 1980 e 86, mais de 80% das entrevistadas disseram que detestavam comprar roupa.
Faludi atribui isso em parte à crise econômica, mas também ao fato de que as mulheres estavam mais ocupadas comprando casas, carros e planos de saúde.
O mercado da moda tentou lidar com a queda na procura aumentando o preço das roupas, que subiram em média 30%. Não adiantou. A mídia tinha até um mote pro que acontecia: "revolta contra a moda".
Criação de Arnold Scaasi |
Outra explicação para a queda nas vendas foi que, pra variar, os estilistas pensavam suas peças para jovens altas e magras. A moda era a "alta feminilidade", cheia de babados e fru-frus. Arnold Scaasi, um dos criadores dessa "tendência", confessou que ela era "uma reação ao movimento feminista, que foi uma espécie de guerra". Lacroix lamentou que, com o feminismo, as mulheres pararam de dar importância à moda -- "só restaram como clientes [da alta costura] as princesas árabes e senhoras da nobreza europeia".
Faludi lembra que essa revolta das consumidoras já havia acontecido quarenta anos antes, em 1947. Durante a Segunda Guerra, as mulheres usaram calças, sapatos de salto baixo, suéteres largos, e não quiseram voltar a se vestir como antes. Christian Dior lançou o "New Look", uma volta ao visual da era vitoriana, que exigia cintas para deixar a cintura com menos de 40 cm. No final da década de 40, a mídia declarou que Dior havia vencido a batalha.
Christian Dior e seu new look no final dos anos 1940 |
Como aponta Faludi: "Em todos os períodos de backlash (reação conservadora), a indústria da moda contra-atacava produzindo roupas punitivamente restritivas e a imprensa ligada à moda exigia que as mulheres as usassem". Até porque "a insegurança pessoal é a grande força motriz do consumo". Um estudo do começo dos anos 1980 mostrou que as mulheres que menos consumiam eram as mais seguras e independentes.
Griffith é observada por Ford em Secretária |
O discurso nos anos 80 foi que as conquistas feministas estariam roubando as mulheres de sua "natural feminilidade". A porta-voz do Conselho de Moda Íntima se queixou: "Estamos enfrentando uma crise de identidade e nos vestindo como homens". A gente vê isso direitinho numa cena de um grande sucesso do cinema na época, Uma Secretária de Futuro, de 1988, em que Harrison Ford, ao conhecer Melanie Griffith, a elogia por ela usar um vestido preto e se vestir "como mulher", e não como homem (com blazer, por exemplo), como faziam as outras executivas na vã tentativa de, quem sabe assim, serem levadas a sério.
A moda investiu muito para feminilizar as consumidoras, principalmente as executivas. Calvin Klein, ao lançar uma coleção de minissaias, afirmou: "Nós nos baseamos no desejo das mulheres". Um fabricante de roupas de Los Angeles justificou que as mulheres no ambiente de trabalho "querem que os homens olhem para elas como mulheres. Veja primeiro as minhas pernas, não a minha competência".
Houve um esforço enorme para aquecer o mercado de moda íntima, que também estava em baixa.
Melanie Griffith em Secretária |
Bob Mackie, um estilista de Hollywood, lançou no final da década de 80 uma coleção de lingerie praticamente idêntica à que ele havia criado no início da década, e que havia sido um fracasso retumbante. Porém, segundo ele, agora seria diferente: "As mulheres agora querem lingerie muito feminina". O cinema fez o possível para alavancar essa "tendência", com cintas-ligas e sutiãs meia-taça em ampla exposição em Bull Durham, Uma Secretária de Futuro, e, óbvio, Ligações Perigosas.
Como diz Faludi, "a lingerie do fim da década de 1980 celebrou a repressão, não o florescimento, da sexualidade feminina. A senhora vitoriana ideal para a qual ela tinha sido originalmente criada não devia ter, afinal de contas, libido alguma" (pg. 198).
Alguns anos antes, um americano chamado Roy Raymond pensou no tema vitoriano por ter sido, segundo ele, um tempo feliz e romântico. Ele abriu uma butique especializada em lingeries num shopping da Califórnia tendo em mente pessoas como ele -- homens. Mas pegava mal dizer que a loja era de um homem vendendo lingerie sexy pra mulheres, então ele colocava em seu catálogo uma carta pessoal de "Victoria", conclamando as consumidoras para "minha butique". Na mídia, Raymond nunca aparecia. Só a esposa dele, Gaye. A loja, evidentemente, se chamava Victoria's Secret.
Em 1982 uma empresa, a Limited, comprou a marca por um milhão de dólares e a transformou numa cadeia nacional. Em cinco anos, a franquia já contava com 346 lojas nos EUA. Faludi narra uma típica loja da Victoria's Secret em 1988, com prateleiras cheias de tangas de seda e ursinhos de pelúcia:
"Perguntadas se estavam ali atrás da lingerie vitoriana, duas clientes dizem que não com a cabeça. Até a gerente Becky Johnson admite que só compra 'as boas e velhas calcinhas e sutiãs básicos'. Então, quem é que está comprando a porcaria vitoriana cheia de babados? 'Os homens', respondeu Johnson.
Embora os homens representem de 30 a 40% dos clientes das lojas Victoria's Secret, são responsáveis por quase metade do volume do faturamento, estimam os gerentes da empresa. 'Os homens são ótimos', suspira uma das vendedoras da loja de Stanford. 'Não medem esforços para ter o que querem.'
Um espécime dessa raça entra na loja justo nesse momento. Jim Draeger, um advogado de 35 anos, ignora o balcão de ofertas e vai diretamente para as prateleiras de bustiê. 'Venho aqui desde 1980', diz ele, analisando um corpete de seda. 'Esse tipo de roupa torna a mulher mais sensual'" (pg. 201).
Um fato que eu não sabia é que Raymond cometeu suicídio aos 46 anos, em 1993, pulando da famosa ponte Golden Gate.
Se o criador da marca e a Limited tiveram que suar na década de 80 para convencer as consumidoras a trocar calcinhas e sutiãs "práticos" por lingerie com rendas ou fio-dental, hoje isso não é um problema. Em 2012 a Victoria's Secret faturou 6,12 bilhões de dólares.