A esta altura, imagino que todo mundo conheça (e muita gente tenha visto) a excelente minissérie O Conto da Aia (The Handmaid's Tale), que vai continuar com uma segunda temporada.
Espero que o pessoal esteja também correndo pra ler a grande distopia da canadense Margaret Atwood, publicada em 1985. Ela foi profética ao imaginar este cenário: acontece um ataque terrorista nos EUA. Os fundamentalistas cristãos culpam os terroristas islâmicos pelo ataque e aproveitam para instalar uma teocracia, a República de Gilead. Tiram todas as liberdades individuais, suspendem a Constituição, e decretam o fim de qualquer direito das mulheres.
O dinheiro que qualquer mulher tinha na conta é congelado, e só pode ser movimentado por um homem (marido, pai, irmão). Elas não podem mais ser contratadas para trabalhar, não podem aprender a ler. E as que sabem são proibidas de ler e escrever. O direito ao divórcio é anulado (há projeto aqui no nosso Congresso pra acabar com isso também). Resumindo: um pesadelo feminista, um sonho conservador.
Além disso, todos os negros são relocados para trabalhar nas fazendas do Sul dos EUA, como escravos. Isso é chamado de “relocamento dos Filhos de Ham”
(Cam, em português. Esta é uma interpretação racista da bíblia que foi usada durante séculos para justificar a escravidão, e ainda é aprovada por gente como Marco Feliciano. Noé amaldiçoou Canãa, um dos filhos de Cam, e todos seus descendentes, a serem escravos. E Canãa é visto como quem populou a África, daí a associação). No livro, imagens de TV mostram uma cidade em chamas -- era Detroit. Na série, isso não existe. Tiveram que convencer Atwood a desistir do "relocamento". Explicaram que ficaria uma série racista, sem atores negros (como Moira, a melhor amiga da protagonista).
Queria citar algumas outras coisinhas interessantes do romance de Atwood que não estão na série de TV (pelo menos na primeira temporada. Ou, se estão, não são tão desenvolvidas. O que não é nenhum demérito da série).
Pouco depois da “catástrofe” (um atentado que mata o presidente, outro atentado contra o Congresso; suspensão da Constituição, jornais censurados –- “não houve nem protestos nas ruas”), a protagonista (que não tem nome no livro antes de virar "Offred", que significa "of Fred", pertencente a Fred; na série, ela se chama June) vai à lojinha da esquina onde ia com frequência, e encontra um rapaz, em vez da senhora de sempre.
A protagonista pergunta: ela está doente?, e o rapaz responde, Quem? Ele digita os números do cartão dela na máquina, e nada: número inválido. Ela tenta ligar pra companhia, as linhas estão congestionadas.
Ela chega ao seu trabalho, e o patrão chama todas as funcionárias e informa: “Sinto muito, mas preciso demiti-las. É a lei. Se vocês não forem embora agora eles vão entrar”. Elas olham pro escritório dele e veem soldados com metralhadoras. “'É ultrajante', uma mulher diz, mas sem acreditar. O que fez com que pensássemos que merecíamos isso?”, conta a narração.
Sua amiga Moira expõe o que viu na TV: as mulheres não podem mais ter propriedade. Seu marido pode usar o cartão por você. Maridos ou parentes homens ficarão com o que tem na conta. Quando o marido de June chega, ele tenta consolá-la: "É só um trabalho. Você sabe que eu sempre cuidarei de você". E a narração: “Houve protestos, é claro, muitas mulheres e alguns homens. Mas eles foram menores do que se espera”.
Tudo isso está mais ou menos na série. O que não está é que o marido quer fazer sexo naquela noite em que as mulheres perdem todos seus direitos. June, por incrível que pareça, não está no clima.
“Alguma coisa tinha mudado, algum equilíbrio. Eu me senti diminuída. Ele não liga pra isso, pensei. Ele não liga mesmo.
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Flashback na série de TV: Luke, que é
negro, tenta fugir com June e filha |
"Talvez ele até goste. Não somos mais um do outro, eu sou dele. Então Luke, o que eu quero te perguntar agora, o que preciso saber, é, Eu estava certa? Porque nunca falamos nisso. Na hora que eu finalmente podia falar, eu estava com medo. Não podia me dar ao luxo de te perder”.
No livro, as aias podem andar por onde quiserem. Ou, como explica a protagonista, “um rato num labirinto é livre para ir a qualquer lugar, desde que fique no labirinto”.
Na praça, Offred vê um grupo de turistas japonesas. Ela estranha o esmalte, o batom, as saias curtas e os sapatos de salto alto (“delicados instrumentos de tortura”) usados pelas japonesas. Ela e sua companheira de caminhada, Ofglen, “estamos fascinadas, mas também repelidas. Elas parecem nuas. Levou tão pouco tempo para que mudássemos nossas mentes sobre coisas assim. Aí eu penso: eu costumava me vestir assim. Isso era liberdade”.
Os turistas lhe perguntam, através de um intérprete, se elas são felizes. Elas não respondem nada, “mas às vezes isso é tão perigoso quanto não falar. 'Sim, somos muito felizes', eu murmuro. O que mais posso dizer?”
Na série, parte desse diálogo é substituído pelo encontro com a embaixadora mexicana.
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Uma peça de teatro de 2015 |
As não-pessoas são mandadas pras colônias, onde elas enterrarão cadáveres e lidarão com resíduos tóxicos e alto nível de radiação. É o destino de mulheres estéreis e de outros detratores, como homossexuais e revolucionárixs que querem derrubar o regime. Adivinha pra onde são enviadas as feministas? A mãe de June, feminista das antigas, está nas colônias.
As aias recebem a hostilidade das Marthas, das econoesposas, que cospem no chão quando as veem, e, logicamente, das esposas dos comandantes. Ou seja, de todas as mulheres, menos, talvez, das tias, que as instruem para serem aias e dizem que o futuro depende delas.
As esposas se reúnem e conversam sobre as aias: “Pequenas prostitutas, todas elas, mas a gente não pode ser muito exigente. Algumas delas não são nem limpas. Não te dão um sorriso, não lavam o cabelo, o fedor. Você tem que ameaçá-la pra que ela tome banho”.
Uma das tias diz às aias: “Vocês são uma geração transicional. É mais difícil pra vocês. Sabemos dos sacrifícios que vocês têm que fazer. É difícil quando os homens te odeiam. Para as que vierem depois de vocês, será mais fácil. Elas aceitarão suas tarefas de coração aberto”.
Um dos momentos mais chocantes da doutrinação das aias está na série. Uma das aias em treinamento, Janine, conta a história de quando foi estuprada por um grupo e teve que fazer um aborto. “Mas de quem é a culpa?” pergunta Tia Helena. “A culpa é dela, a culpa é dela”, as aias respondem em coro. “Quem os instigou?”, pergunta Tia Helena. “Foi ela, foi ela, foi ela”.
“Por que Deus permitiu que algo tão terrível acontecesse?” “Dar-lhe uma lição. Dar-lhe uma lição”.
“Queremos que vocês sejam valorizadas, meninas. Pensem em vocês como pérolas”, diz uma das tias. E a narradora pensa em pérolas -- “cuspe de ostra congelado”.
No condicionamento, as aias têm que assistir filmes pornôs de estupro e morte, ver mulheres sendo espancadas, mutiladas, desmembradas. “Considerem as alternativas. Veem como as coisas eram? Era isso que pensavam das mulheres naquela época”, explica uma tia. Filmes pornôs violentos servindo pra lavagem cerebral e escapismo também aparecem em outra distopia/ utopia feminista, Mulheres à Beira do Tempo, de Marge Piercy (1976).
O comandante dá presentes a Offred: deixa que ela leia uma revista feminina (proibida), lhe dá creme pras mãos, a leva para um clube privê, apropriadamente chamado Jezebel's. Neste clube secreto para os homens da elite, mas financiado pelo estado, há prostitutas, mulheres vestidas de líderes de torcida, de coelhinhas da Playboy, todos os clichês.
O comandante justifica: “Não se pode enganar a natureza. A natureza pede variedade para os homens. É parte da estratégia da procriação. As mulheres sabem disso instintivamente. Por que elas compravam tantas roupas diferentes, nos velhos tempos? Para fazer os homens pensarem que elas eram várias mulheres diferentes. Uma nova todo dia”.
Ele segue se justificando: “O problema não era apenas com as mulheres. O problema maior era com os homens. Já não havia nada pra eles. Não havia mais nada pra eles fazerem com as mulheres. Sexo era fácil demais. Qualquer um podia comprá-lo. Eles estavam incapazes de sentir.”
Quando Offred vagamente reclama que a situação ficou horrível pras mulheres, o comandante explica: “Não se pode fazer um omelete sem quebrar alguns ovos. Pensamos que poderíamos fazer melhor. Melhor nunca significa melhor para todos. Sempre significa pior para alguns".
Isso está na série, mas o resto do discurso, não: "Nós demos mais do que tiramos. Pense no trabalho que elas [as mulheres] tinham antes. Você não se lembra dos bares para solteiros, da indignidade dos encontros às cegas na escola? O mercado da carne. Você não se lembra da distância terrível entre aquelas que conseguiam um homem facilmente e as que não conseguiam? Algumas estavam desesperadas, elas morriam de fome até ficar magras, ou enchiam seus seios de silicone, ou tinham seus narizes cortados. Pense na miséria humana. […]
"Desta forma todas terão um homem, ninguém ficará de fora. Quando elas conseguiam se casar, podiam ser abandonadas com um filho ou dois, o marido poderia se cansar e ir embora, desaparecer, elas tinham que depender do estado. Ou então ele ficava e batia nelas. Ou se elas tinham um emprego, as crianças ficavam numa creche ou com alguma mulher ignorante, e elas tinham que pagar por isso elas mesmas, tirando dos seus contracheques minguados.
"Elas não tinham respeito como mães. Não é surpresa que eles estavam abrindo mão. Desta forma elas estão protegidas, elas podem cumprir seus destinos biológicos em paz”.
E quando ele pergunta o que os fundamentalistas cristão que comandam Gilead esqueceram, a bobona responde “Amor” (porque sim, Offred é bem boba às vezes).
E uma coisa que está tanto no livro, no filme de 1990 (dirigido por Volker Schlondorff, com roteiro de Harold Pinter, e interpretado por Natasha Richardson, Faye Dunaway, Robert Duvall, Aidan Quinn), quanto na série de 2017, é o discurso de tia Lídia:
“Agora caminhamos na mesma rua, em pares vermelhos, e nenhum homem grita obscenidades para nós, fala com a gente, nos toca. Ninguém assobia. Há mais de um tipo de liberdade, liberdade para e liberdade de (freedom to e freedom from). Nos dias da anarquia, era liberdade para. Agora vocês recebem liberdade de. Não a subestimem. […] Nós éramos uma sociedade morrendo de liberdade demais”.
Tenho certeza que os reaças concordam.