Navalha na Carne, direção de Rubens Camelo. Brasília, 2013
Seu jeito de se expressar foi escrevendo o conto abaixo. Como este é o tipo de post difícil de ilustrar, usarei imagens de montagens da peça clássica de Plínio Marcos. Mas o post não tem relação com Navalha na Carne. Conte o seu conto, Marianna!
Mas atenção: trigger warning, ok?
Tirei os olhos do chão e fitei o dono da voz grave que chamava o meu nome. Ele era grande, forte e fora de forma. Sua barriga proeminente brigava por espaço com o cinto apertado que ele usava com a farda.
– O delegado vai falar com você agora.
Segui pelo corredor na direção que ele indicara. Seu olhar acompanhou a minha saia curta quando passei na sua frente.
Em outras circunstâncias, seria um cliente em potencial. Andei devagar por causa da enorme e dolorida mancha roxa que se destacava na pele branca da minha coxa esquerda. Estava descalça, despenteada e tinha os lábios vermelhos e inchados. Linhas escuras delineavam o caminho das minhas lágrimas, pretas por causa da maquiagem. Eu lembrava bem pouco a garota que havia saído de casa mais cedo naquele dia.
Paula Cohen interpreta Neusa |
Ao chegar na sala, esperei de pé enquanto o delegado, um homem de uns 45 anos e expressão severa, me olhava de cima a baixo, analisando cada centímetro da roupa que eu vestia. Eu estava com uma blusa decotada cuja alça direita pendia logo abaixo dos meus cabelos, deixando à mostra uma parte do sutiã vermelho que abraçava os meus seios. Minha saia era apertada e ia até a metade da coxa. Nas mãos, levava um par de botas longas de couro preto, assim como uma bolsa pequena da mesma cor.
Vera Fischer em filme de 1997 |
– Ela é prostituta, Senhor – disse um policial no qual eu não havia reparado quando entrei na sala. Seu rosto era estranhamente familiar, mas não o encarei por muito tempo. Era mais confortável olhar para o chão. Todos aqueles homens me lembravam o estuprador. Seus olhares eram violentos e desrespeitosos, como se eu fosse menos do que um objeto qualquer que eles jogavam fora depois de usado.
O policial corou por um momento – Quem mais usaria esse tipo de roupa, Senhor? Quem mais estaria na rua a essa hora? – ele respondeu quando a confiança voltou. Olhei para ele novamente e o reconheci. Aquele homem e seu olhar de desprezo já haviam sido meus clientes.
O delegado deu uma gargalhada solta – Relaxa, Gomes. Só a sua esposa não sabe das suas escapadinhas. – voltou-se para mim – É verdade, você é uma mulher da vida, então?
Pensei em negar. Pensei em inventar uma história qualquer e dizer que era outra pessoa. Mas não. Nunca escondi quem eu era, e não seriam aqueles homens que mudariam isso. Levantei o rosto e encarei o delegado corajosamente – Sim. Eu sou uma prostituta, uma mulher da vida ou qualquer merda de nome que você queira dar.
Ele gargalhou mais uma vez – Olha o jeito que fala, sua puta – disse em tom de deboche enquanto se espreguiçava. – Caso resolvido. Pra que me chamaram mesmo?
Nesse momento, o encarei com ódio, mas antes que eu pudesse falar, o policial que havia me conduzido respondeu.
O delegado revirou os olhos. – Deve ter aprontado alguma pro cafetão, leva essa vadia daqui.
– Você é louco? – Gritei entre lágrimas – Eu fui estuprada! O desgraçado me humilhou, me bateu, roubou tudo que eu tinha conseguido! Olha minha cara! Olha minha perna! Não é por ser prostituta que eu não possa ser estuprada. Eu tô destroçada, tenho o risco de ter pegado qualquer doença e você não vai fazer nada? NADA?
Louise Cardoso e Diogo Vilela em montagem de 1995 |
Alguém bateu na porta.
– Que foi? – Gritou, babando de raiva.
– Ah! Vamo ver o que o seu “estuprador” tem a dizer. – Deu um sorriso irônico – Traga o rapaz aqui, Denise.
Ela voltou pouco depois com a besta que me atacara aquela noite. Lágrimas escorreram quando olhei para ele, mas não baixei os olhos. Ele sorria pra mim de um jeito nojento.
Tonia Carrero como Neusa em montagem de 1967 |
Resisti e gritei quando ele me forçou a ajoelhar. Uma moça que passava na rua com o namorado me olhou com expressão triste, mas eles nada fizeram.
Foi quando ele encostou uma lâmina afiada no meu pescoço. “Quetinha, vadia.” Puxou minha calcinha e me penetrou com força. Foi como se ele tivesse me rasgado no meio. Lágrimas escorreram dos meus olhos e eu tentava imaginar que era um programa como outro qualquer enquanto ele forçava aquele pênis nojento para dentro de mim. Não era.
“Não atende mais essa hora, é, vadia?” ele disse pouco antes de gozar “Nenhuma puta nega pra mim”. Quando terminou, ele se levantou, pegou todo o meu dinheiro na bolsa, cuspiu no chão e foi embora como se nada tivesse acontecido. Permaneci muito tempo ali antes de ter forças e coragem para levantar.
Agora ele estava ali, sendo protegido pelo homem que deveria me defender.
– Conhece essa moça, rapaz? – O delegado perguntou enquanto me olhava com desprezo. O estuprador fez que sim com a cabeça – E o que aconteceu entre vocês hoje?
– Eu paguei pra trepar com ela. Ela disse que tava indo embora, que não atendia mais, e teve que ser no meio da rua mesmo. A gente foi num beco e ela me deu, só que depois ela ficou de olho grande e pediu mais dinheiro. Eu disse que não e ela veio com uma faca pra cima de mim. – Ele mostrou um pequeno corte na camiseta suja, provavelmente causado pela minha resistência – Daí eu tive que me defende, meu Senhor. Ela tentou me mata.
O delegado sorriu satisfeito e dispensou o rapaz. Eu chorava desesperadamente agora. Aquele homem poderia ir atrás de mim novamente, devia estar com ódio. Supliquei que ele me ouvisse, que prendesse o homem e me levasse para ser examinada. Ele simplesmente me olhou friamente e disse – Vai embora agora ou te prendo. Aproveita que eu tô de bom humor.