quarta-feira, 30 de novembro de 2016

MASTERCHEF CONTRA O MACHISMO DOS CHEFS. VAI, DAYSE!

Hoje fiquei boa parte do dia no Twitter tuitando sobre aborto, já que duas hashtags continuam dominando as redes sociais, #AbortoNão e ABORTO SIM. Tudo devido à decisão do STF de que abortar até o terceiro mês de gestação não é crime. Há muita desinformação sobre o tema, e quero publicar um guest post o quanto antes. 
Cuidado: homens honrados, cidadãos
de bem super honestos trabalhando
E tem gente de esquerda falando, até com uma certa dose de razão, que não é adequado discutir este tema agora que Brasília está pegando fogo, que a PEC 55 foi aprovada no Senado, o que certamente afetará a vida da maior parte das mulheres (e dos homens) no Brasil. Sim, o momento é gravíssimo, não há dúvida. Se alguém quiser me enviar um texto sobre o cenário político, publico também, claro.
Agora estou sem tempo para escrever, e queria tratar de um assunto fútil: o MasterChef Brasil. Eu gosto muito desse programa, que na verdade é praticamente a única coisa que assisto na TV. Esta edição, com cozinheiros profissionais, estava um tanto morna. Mas o machismo esquentou o programa!
Até o maridão (ok, "até o maridão" é injusto, porque ele é bem antenado) disse ontem que nunca viu um machismo tão explícito, tão na cara (veja este vídeo com uma breve compilação).  
E, antes de entrar no tema, só alguns adendos: o mundo da alta gastronomia é extremamente machista. 90% dos chefs são homens. É aquele negócio: cozinheira é mulher, chef é homem; costureira é mulher, estilista é homem. Em outras palavras: o que é valorizado e bem pago é "trabalho de homem", o que é algo do dia a dia, sem remuneração ou com remuneração baixa, é "trabalho de mulher". Nenhuma novidade nisso.
Por isso sempre me incomodou no Masterchef Br que, quando chamam chefs especialistas para ensinar uma receita aos competidores ou para julgá-los, o especialista é homem. Creio que em quatro edições do programa, houve uma, no máximo duas chefs especialistas mulheres (corrijam-me se eu estiver errada). Não estou falando da Paola, que é maravilhosa como chef e como ser humano, e que está sempre lá. Estou falando dos especialistas.
Não é à toa que, nos programas anteriores, que destacam chefs amadores, ou gente que sonha em mudar de ramo e virar chef, sempre há muitas mulheres entre as competidoras (e as duas primeiras versões foram vencidas por elas). Mas, nesta edição, como se trata de profissionais, de gente que já atua no mercado, e como o mercado é 90% masculino, havia no começo sete mulheres, e nenhuma delas, tirando Dayse, se destacou muito. 
Dayse foi conquistando os jurados e o público. Insegura, ela sempre acha que vai se dar mal, e acaba surpreendendo. Num dos episódios, ela foi emparceirada com Ivo e Dario, e eles a deixaram de lado. Quando ela reclamou, Ivo falou pra ela pegar uma vassoura. A edição do programa incluiu uma cena de Paola balançando a cabeça, indignada. 
Creio que o MasterChef vem fazendo um excelente trabalho de denunciar o machismo, e o episódio de ontem foi exemplar. Haviam quatro competidores: Ivo, com tanta experiência, e que já havia, inclusive, sido chefe de Dayse; dois jovens ousados e moderninhos, Dario e Marcelo, e Dayse, obviamente a zebra. Na primeira prova, que não era eliminatória, cada um tinha que preparar um ingrediente com três técnicas diferentes. Marcelo escolheu a banana e usou até a casca, e venceu por sua audácia e criatividade. Dayse ficou em segundo lugar. O que ela preparou com milho também agradou. 
Com a vitória, Marcelo se classificou para a semifinal e pode escolher qual ingrediente cada um dos competidores iria usar. A prova era "surf and turf", comida que eu não comeria nem que me pagassem, que junta carne com frutos do mar (eu não como nada que venha do mar). Um dos ingredientes, considerado o mais difícil de integrar com algo do mar, era a fraldinha. Foi esse que Marcelo escolheu para Dayse, deixando claro nas entrevistas que seu objetivo era que ela fosse eliminada. 
A edição foi primorosa, mostrando toda a animosidade de Marcelo. Não restou dúvida que grande parte desse ódio que ele tem por Dayse é por ela ser mulher. Ele vai dizer que não, que é por ela ser incompetente, mas ele parte do princípio (totalmente equivocado) que ela é incompetente por ser mulher. 
E eis que Dayse preparou o melhor prato, venceu a prova, e está nas semifinais, para desespero de Marcelo, que afirmou: "Eu quero derrubá-la de qualquer jeito; pra ser uma grande final, acho que tem que ser eu e o Dário".
O eliminado de ontem foi Ivo, ex-chefe de Dayse. A edição ainda colocou algumas cenas que "representam o público", como o chef Fogaça chamando Marcelo de falso (quando ele disse a Dayse que "ela tem o seu respeito" -- tem nada!), e como o chef Jacquin exigindo que Marcelo e Dario maneirassem nas comemorações. 
Dayse comemora sua classificação
Mesmo depois do resultado de ontem, os competidores continuaram desprezando Dayse, certos de que a final será entre dois homens. Ivo, na sua despedida, teve que ser instado a falar da ex-funcionária, porque senão nem iria mencioná-la. Marcelo continua achando "palhaçada" que ela esteja entre os três finalistas. E Dario finge que não é com ele e também a ignora.
Dayse faz sinal irônico de coração
para Marcelo
O bacana é que, a julgar pelas votações que são realizadas durante o programa, 80% dos espectadores estão torcendo por Dayse. Ficou, como observou o maridão, "explícito demais" o machismo desses chefs, que não veem uma mulher a sua altura. 
Quero muito que Dayse vença. Do jeito que o programa vem agindo, o machismo já está bastante nocauteado.


A indignação de Paola no episódio em
que Ivo mandou Dayse varrer o chão
não se repetiu ontem. Infelizmente.
UPDATE: Fui informada que Paola foi criticada por não confrontar o machismo de Ivo. De fato, na despedida, ela disse a ele: "Você é um orgulho para este país", o que é uma declaração forte considerando que poucas semanas atrás o chef foi abertamente machista. Paola se defendeu no Twitter dizendo que o programa era gravado, e tentou se esquivar. Na minha opinião o programa inteiro, não só Paola, pegou leve com Ivo, e centrou a artilharia no Marcelo. Mas, pra qualquer espectador/a sensatx, foi óbvio que os três participantes homens se envolveram numa "conspiração machista" contra Dayse.

terça-feira, 29 de novembro de 2016

GUEST POST: MÊS DA CONSCIÊNCIA NEGRA TAMBÉM É AZUL

Publico este importante texto da Candida.

O Brasil tem atualmente 210 484 655 brasileiros, destes 103 549 001 são homens, totalizando 49,2% da população geral. Segundo o IBGE, os negros (pretos e pardos) representam 53,6% da população. Quanto à condição socioeconômica, apenas 17,4% se encontram na parcela mais rica do país. Nas camadas mais empobrecidas os negros são a maioria.
Desde que os africanos sequestrados e traficados chegaram ao Brasil para sustentar economicamente uma sociedade escravocrata, a luta por reconhecimento de direitos é grande.
Houve avanços nos últimos quinze anos com as leis de cotas, que ampliaram o acesso à universidade e ao emprego público, com a Lei 10. 630/03 sobre o ensino da cultura afro-brasileira, entre outras políticas de Igualdade Racial, além da criminalização do racismo. Avanços que vemos serem colocados em perigo com a composição do Congresso e pelo golpe parlamentar sofrido pela presidenta eleita.
Os indicadores socioeconômicos no país demonstram como os quatrocentos anos de escravidão e uma política de invisibilidade e exclusão da população negra resultaram em aprofundamento de desigualdade, marginalização e violação de todo tipo de direitos. Os homens negros são os menos escolarizados da população, a maioria tem até o ensino fundamental, são os majoritários na evasão escolar e no atraso idade e ano escolar, sendo as dificuldades indicadas para isso a precariedade da situação socioeconômica familiar, o trabalho infantil e até mesmo a dificuldade de acesso à escola em áreas de risco e rural.
Em decorrência disso, no mercado de trabalho homens negros ocupam as funções de subempregos ou os famosos “bicos”, a maioria na construção civil, além de estarem presentes na indústria de transformação, serviços e trabalhando como ambulantes. A decorrência disso são baixos salários, o que leva à precariedade de moradia, tanto na habitualidade da residência, quanto na localidade, morando em áreas de risco de desabamento e enchentes, e também de segurança.
A negação de direitos sociais básicos à população negra atinge também os homens no que se refere a saúde, visto que são eles, junto com suas esposas e filhos, os maiores usuários dos serviços públicos de saúde, hoje em franco ataque e desmonte pelo governo ilegítimo de Michel Temer.
E, lembrando que esse mês marca a Consciência Negra, com o aniversário de um dos nossos líderes de resistência e luta por nossos direitos e dignidade humana, Zumbi dos Palmares e a sua inseparável e não menos lutadora Dandara de Palmares. Neste mesmo mês, acontece também o Novembro Azul, o mês de cuidados com a saúde masculina.
Falar do exame de próstata sempre provoca risos nervosos e brincadeiras entre os homens, mas o assunto é sério. O câncer de próstata é a doença que mais mata homens no Brasil. Mesmo sendo tão letal quanto o câncer de mama, somente há pouco tempo e ainda de forma incipiente iniciaram-se campanhas para a prevenção do câncer de próstata.
Observe a tabela sobre mortalidade de câncer de próstata e de mama. Os dados são do Atlas de Mortalidade do INCA. As estimativas não são animadoras para este ano.
Clique para ampliar
E os fatores de risco para o câncer de próstata? São eles:
- Idade acima dos 50 anos: 80% dos casos ocorrem em homens a partir desta idade.
- Raça negra: A doença tem maior incidência na raça negra.
- Alimentação inadequada: Dieta rica em gorduras e pobre em vegetais e frutas baixam as defesas do corpo contra o câncer.
- Vida sedentária: A falta de exercícios físicos regulares e o peso acima do adequado aumentam os riscos.
- Hereditariedade: Se algum parente próximo tiver câncer, duplica sua chance de desenvolver um.
Homens negros apresentam risco cerca de duas vezes maior de manifestar a doença, além de chance de 2,5 a 3 vezes maior de morrer pelo câncer. Algumas pesquisas tendem a relacionar o fato à questão de hereditariedade. 
Outros já buscam razões sócioeconômicas, como a falta de acesso a serviços de qualidade de saúde tanto para a prevenção e tratamento, a baixa escolaridade, a qualidade da vida, ou falta dela diante da situação de vulnerabilidade social.
Nesse mês da Consciência Negra, conclamamos todos os homens, negros e brancos, a cuidarem de sua saúde (o exame de toque retal é rápido e não dói!), a exigirem nos espaços de controle social de saúde políticas de prevenção e tratamento modernas e eficazes para a população que depende da saúde pública.
Antes de tudo, pedimos para tomarem consciência da importância da prevenção. A prevenção ao câncer de próstata deve ser algo tão comum e corriqueiro em suas vidas como o futebol com os amigos e aquela cervejinha no fim do jogo.
Cuidem-se, meninos, o mundo é mais bonito com vocês!

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

CONCLUSÃO: NÃO É FÁCIL SER MULHER

Três notícias relacionadas à violência contra a mulher que vi só entre ontem e hoje. 
A marca de roupas Dafiti comercializou em seu site uma camiseta feia pracarai que dava "exemplos de pleonasmo": "subir pra cima, descer pra baixo, hemorragia de sangue, político ladrão, mulher burra".
Lindo, né? R$ 49,90 por uma camiseta que chama mulheres de burras, pra você carimbar na testa o seu machismo. Pra você vestir sua misoginia e sair desfilando por aí! 
Diante das reclamações, a Dafiti explicou que o produto era da responsabilidade de um de seus parceiros, a Eiblu, que foi descredenciada. Retirou a camiseta do ar, pediu desculpas, e afirmou "repudiar qualquer tipo de manifestação de preconceito e discriminação". Menos mal, né?
Pois é. O problema é que uma rápida busca possibilita ver outras camisetas machistas da Eiblu vendidas pela Dafiti. Tipo esta, que pode ser interpretada como fazendo apologia ao estupro:
Esta fala da "evolução das inimigas", indiretamente chamando mulheres de vacas e incentivando a rivalidade entre as mulheres, uma velha estratégia do patriarcado (juntas somos mais fortes):
E esta, em inglês, pede que você seja legal com as pessoas gordas, porque um dia elas podem salvar a sua vida. No desenho, um urso persegue uma pessoa mais gordinha.
Quer dizer, a Eiblu parece ser uma fábrica mascu, estampando os preconceitos de sempre (provavelmente as camisetas racistas e homofóbicas estavam em falta). E a Dafiti comercializa essa porcaria sem saber? Não cola. Não tem isso de "Eu não sabia". A marca obviamente tem que saber o que vende e quem produz o que está sendo vendido (sabe trabalho escravo?). 
Outra violência vem do tipo de "jornalismo" que eu pensei que (assim como o colunismo social) já estivesse extinto. É aquela seção que fotografa mulheres na rua e dita se aquele look está "certo" ou "errado". Porque alguém morreu e nomeou o jornalista Deus pra decretar verdades absolutas sobre moda.
Este print saiu no caderno "Zona Oeste" (mais popular) nos jornais O Globo e Extra
É uma coluna chamada "Estilo", assinada por Lolô Penteado, pseudônimo da jornalista Roberta Ferraz. Não tenho qualquer outra informação sobre a coluna. Nem sei se esse print é deste ano ou de 2014, já que o professor de literatura da UFRRJ, Marcos Pasche, que postou o print no seu FB, havia tratado do tema numa palestra no ano passado. 
De todo modo, a coluna traz duas fotos com o rosto coberto por um desenho, para evitar processos (afinal, você não pode tirar foto de alguém na rua -- ou na internet -- e ofendê-lo; existe uma coisa chamada "concessão do uso de imagem", ou "termo de cessão de direitos para uso de imagem", como qualquer pessoa que já apareceu na TV ou num vídeo sabe). A primeira diz:
"Visão do inferno: Dá vontade de rolar uma Lava Jato na produção dessa lola. Como pode sair de casa com legging e blusa curta? Um crime! E o blazer três números menores do que o dela, estourando o botão? Gente, para completar, a botinha torna o look ridículo. Não queria ser cruel, mas fui. Às vezes, é preciso um choque de realidade". 
E a outra: "Não pode. Se você está naqueles dias em que não está a fim de se produzir, melhor não sair de casa então. Para não dar nisso. Nesse look deprimente, com bermuda apertada e barriga saltando, chinelão 'véio' e camiseta desbeiçada. Acho que nem para dormir sozinha essa produção passa. Eu ficaria com vergonha de mim mesma". 
Chato ver meu nominho sendo usado pra isso, mas obviamente não é pessoal e duvido que a jornalista me conheça. "Lola" é um nome fofo que vem cada vez mais sendo usado para ser marca de roupas, cosméticos, cabeleireiros, animais de estimação etc. Aqui, como o pseudônimo da jornalista é "Lolô", suponho que ela use "lola" como sujeito de suas críticas, que nada mais são do que puro "body shaming". Em outras palavras, você pega uma parte do corpo de uma pessoa, quase sempre mulher, e a humilha por isso. Nas duas imagens, vemos uma mulher acima do padrão de beleza magérrimo. Logo, ela nem deveria por os pés na rua, segundo a colunista, porque é "um crime" usar blazer "estourando o botão", ou "bermuda apertada", "barriga saltando". 
O que mais me choca é a ordem de que, se você não quer se produzir, não saia de casa. A rua é pública, não é uma passarela. Mulheres saem de casa por mil e um motivos, e não precisam estar impecáveis, muito menos para agradar homens ou colunistas de moda. Eu sempre lembro de alguma dessas colunas dizendo na minha infância e adolescência que a mulher têm que estar sempre maquiada, bem vestida, cabelo lindo, salto alto, até quando vai à padaria, porque nunca se sabe quando vai encontrar o príncipe encantado (o meu -- se é que alguém ainda acredita nessa asneira de príncipe -- eu conheci num torneio de xadrez, sem maquiagem nem salto alto).
É esse tipo de baboseira que se ensina às meninas desde muito cedo, que as mulheres devem ser decorativas, devem viver em função de seduzir homens. Até na hora de dormir sozinha precisamos estar maquiadas! 
Não preciso nem falar no quanto esta "cagação de regra" é elitista. 
Todo mundo conhece o "ditado" "Não existe mulher feia, existe mulher sem dinheiro", ou, mais direto ainda, "Não existe mulher feia, existe mulher pobre", associando assim, na cara dura, pobreza à feiura. Ai de você, mulher pobre, que não tem grana ou tempo para um banho de loja ou uma academia ou uma cirurgia plástica. Seu destino é ser fotografada sem permissão na rua para servir de exemplo negativo de aparência (e ai de você se você tem dinheiro -- meu caso -- mas tem mais o que fazer além de se render a um padrão inatingível de beleza. Você também será perseguida). 
Mas sabe o que é bacana? É que o segundo look, de uma mulher com camiseta, bermuda ou short e chinelo, é o que eu mais vejo na rua. Aliás, não só na rua, mas nas universidades também. Grande parte das alunas se veste desse jeito, pelo menos aqui no Nordeste, que é quente pacas. E elas se sentem ótimas, confortáveis, poderosas. Óbvio que nem andar "desleixada" as salva de serem assediadas na rua, mas esse é outro assunto.
Só concordo com a última parte do texto da jornalista: "Eu ficaria com vergonha de mim mesma". Sim, estamos com vergonha de você, Lolô.
A terceira notícia é que a TV estatal do Marrocos deu dicas de maquiagem para cobrir marcas de violência doméstica. Em vez de combater e eliminar essa violência que afeta tantas mulheres pelo mundo, a emissora decidiu escondê-la. E não sei se o timing influi, mas também foi totalmente errado: o tutorial foi ao ar no dia 23 de novembro, dois dias antes do Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres. 
O tutorial de maquiagem, em que a sorridente apresentadora instrui "Depois do espancamento, essa parte do rosto ainda está sensível, então não pressione", foi amplamente repudiada em todo canto. As feministas marroquinas começaram uma petição clamando para não cobrir violência doméstica com maquiagem. E a TV se retratou.
A conclusão bastante óbvia dessas três notícia recentes está no título do post. Não vou repetir o que vocês já sabem. 

domingo, 27 de novembro de 2016

COMPARAÇÃO COM CUBA PROVA O GIGANTESCO FRACASSO DO CAPITALISMO BRASILEIRO

Reproduzo um excelente texto do professor de Filosofia e Psicologia da UFJF, Gustavo Castañon. O artigo foi publicado na Revista Língua de Trapo

"Vai pra Cuba!”
Coxa
Com a morte de Fidel o leitmotiv predileto da direita vai voltar à carga. Esse é a acusação de que a esquerda quer transformar o Brasil numa Cuba. É uma estratégia tão, mas tão desonesta, que é até difícil explicar o tamanho da desonestidade. Mas vou tentar.
Para começar, Cuba pode realmente ser ruim para mim, que sou de classe média alta, mas é para 100% de seus habitantes melhor do que o Brasil é para 90% dos seus. Esse não é um chute estatístico, mas uma estimativa conservadora. 75,9% dos brasileiros vivem com menos de U$10.000 ao ano enquanto 10% dos brasileiros abocanham 75,4% da renda nacional (1% abocanha 48%) [Credit Suisse – Research Institute. Markus Stierli. Outubro de 2015. Tabela 6-5, pág. 149, 17-10-2016]. A renda per capita em Cuba ajustada por poder de compra é de 20.611 dólares internacionais, enquanto a do Brasil antes da depressão econômica era de 15.893 dólares. O povo daquela ilha rochosa bloqueada é mais rico que o povo do continente Brasil. Essa é uma realidade chocante e geralmente desconhecida.
Ainda assim não quero ir pra Cuba, a não ser a turismo. Porque para mim a quantidade de liberdade é mais importante do que o pão. É claro, eu tenho pão. Bem mais do que isso, eu faço parte dos 10% de privilegiados brasileiros. Logo, sou mais livre aqui do que lá. Mas minha diarista certamente não. Que pena que ela não tem ideia do que realmente significa “Vai pra Cuba!”.
E é também por isso que não posso querer para mim uma sociedade moralmente monstruosa como os EUA, aquela plutocracia onde o último traço de democracia é uma relativa liberdade de expressão. Mas o Brasil, meu Deus, o Brasil é uma monstruosidade social tão maior, que querer que ele se transforme em algo parecido com os EUA é querer reformas de esquerda. 
Miséria no Brasil
Sim, na maioria dos aspectos, os EUA estão à esquerda do Brasil. No dia em que o Brasil tiver um salário mínimo como o dos EUA (U$7,25 por hora contra U$1,12), uma distribuição de renda como a dos EUA (gini 40,8 contra 54,7) [World Bank GINI index], uma lei de mídia como a dos EUA, a proteção às indústrias e agricultura local como a dos EUA, um estado do tamanho do dos EUA (14,6% da população empregada contra 11,1%), a direita vai poder alertar para o risco de ele virar uma Alemanha. Até lá, em vez de gritar: “A esquerda quer transformar o Brasil numa Cuba!”, deveria gritar: “A esquerda quer transformar o Brasil num EUA!”.
Se temos que acabar com o bem estar
social, podemos começar com as
corporações? E não com as nossas
crianças
E quando o Brasil ficasse parecido com os EUA, querer um governo de esquerda ia ser querer que o Brasil começasse a ter políticas de salvaguarda social mais parecidas com as da Alemanha, sua saúde pública, sua educação pública, suas políticas ambientais estreitas, sua carga tributária (40,6% contra 34,4% do Brasil) [Heritage Foundation "2015 Macro-economic Data” Index of Economic Freedom], seu imposto progressivo (quanto mais rico, mais imposto). E a direita deveria então gritar, se quisesse ser honesta: “Cuidado, a esquerda quer transformar o Brasil numa Alemanha!”
E então, quando o Brasil ficasse parecido com a Alemanha, a direita poderia alertar para o risco de virarmos uma Dinamarca. Aí, querer reformas de esquerda seria querer que mais da metade da renda fosse para os impostos (50,8%), que os filhos da elite fossem obrigados a estudar em escolas públicas, entre as melhores do mundo, que o estado empregasse mais de um terço da população (34,9%), bancasse dois anos de licença para criar um recém-nascido, limitasse fortemente a atuação das grandes corporações, fosse radicalmente democrático.
Finalmente, quando o Brasil ficasse parecido com a Dinamarca, o direitista poderia gritar sem hipocrisia seu terror com a Cuba que se avizinha, a do estado total e economia planificada, e assim disfarçar melhor sua inveja do funcionário público sob a máscara do ódio ao estado. Provavelmente nesse dia, até eu estivesse protestando a seu lado.
Se um homem tem uma casa cheia de
jornais, o chamamos de louco. Se uma
mulher tem uma casa cheia de gatos, a
chamamos de maluca. Quando pessoas
juntam tanto dinheiro que elas empo-
brecem outras, as colocamos na capa
da revista Fortune e fingimos que são
modelos a seguir
Na estratégia do espantalho cubano o reacionário brasileiro finge ser a favor da liberdade e do mérito, enquanto na verdade é contra. Contra a liberdade do povo, seus direitos trabalhistas, o investimento na educação e universidade públicas, o fortalecimento do SUS e a redução dos juros. Contra o aumento da carga tributária, do salário mínimo, do estado, da remuneração do professor básico, da distribuição de renda e das oportunidades para os excluídos.
Um conservador na Inglaterra é só um conservador. Um conservador no Brasil é um monstro. Um monstro que quer conservar as estruturas de um dos países mais desiguais e injustos do mundo.
Não, Cuba não é o paraíso. É só uma ilha rochosa no meio do Caribe sem recursos naturais de qualquer tipo e bloqueada economicamente há cinquenta anos. E, no entanto, garante saúde e educação universal para seu povo e tem um IDH maior que o nosso, nós, que somos um continente, nós, que temos todos os recursos naturais em abundância. Essa é a medida de nosso fracasso. O incrível e gigantesco fracasso do capitalismo brasileiro.