Em Porto Alegre, dezenas de pessoas acamparam durante um mês e meio para impedir que pelo menos 115 árvores (que o jornal Zero Hora chama de vegetais) fossem derrubadas para a duplicação de uma via, uma das obras da Copa 2014. Na madrugada de quarta, duzentos policiais retiraram, com violência, esses manifestantes.
Um deles, o psicólogo Samuel Eggers, me escreveu: "tu e teu blog são importantes na minha caminhada. Tenho a sorte de ser amigo e conviver com muitxs amigxs feministas, principalmente mulheres lindas por serem de luta, que volta e meia postam teus textos no facebook e me deram a oportunidade de aprender com as tuas lutas.
"Pra mim, esse texto em anexo é tão teu quanto meu. Salvo eventuais machismos meus, é um texto tão ecológico e libertário quanto feminista, porque estamos todxs lutando em nome da mesma causa. E é em nome dessa causa em comum que te peço que o publique".
Este é um guest post que foge um pouco do estilo do blog, mas é importante porque narra o despertar de um ativista. Quero que todxs sejamos, cada qual a seu modo, ativistas. [Que horror, que horror. Veja o update no final].
Considerando a quantidade de omissões e mentiras descaradas que estão sendo divulgadas na grande mídia de Porto Alegre, decidi escrever meu relato a respeito dos acontecimentos da madrugada de quarta no gramado ao lado do prédio da Câmara de Vereadores, de onde o acampamento Ocupa Árvores e seus habitantes foram desalojados a pauladas pela Brigada Militar.
Penso que sou capacitado pra falar sobre este assunto, porque eu fui um dos algemados. E por isso, descreverei os fatos da maneira mais direta, e talvez crua, que eu consigo imaginar.
Primeiro, eu não sei porque serei indiciado por “desacato ou desobediência à ordem policial”, e não sei porque o Zero Hora, maior jornal do Rio Grande do Sul, dá a entender na reportagem em seu site que apenas os manifestantes que resistiram à retirada das barracas foram algemados. Nosso crime, se realmente existe algum, foi termos montado nossas barracas em uma área de grande interesse para a especulação imobiliária e para as grandes empreiteiras, e nossa resistência talvez tenha sido nossa cara de sono e espanto.
Fomos acordados à pauladas e gritos para que nos deitássemos no chão e calássemos a boca, enquanto os policiais presentes se certificavam de que todos nós estávamos algemados. Também não entendo que tipo de resistência nós, os vinte e sete prisioneiros, sem treinamento ou equipamento militar, poderíamos oferecer contra todo o contingente policial que foi deslocado para nos conter. E não precisa acreditar em mim, basta olhar na notícia da Zero Hora as fotos e os batalhões envolvidos – 200 soldados da Brigada Militar, do Batalhão de Operações Especiais (BOE) e do Grupo de Ações Táticas Especiais (GATE), sem contar a polícia montada, que também estava lá.
Devemos ser um grupo bastante perigoso para justificar não apenas todo esse exército contra nós, como também o profundo desprezo e humilhação com que fomos tratados pelos soldados da operação. Fomos arrancados de nossas barracas, jogados no chão, algemados e, quando abríamos a boca para pedir qualquer coisa, não importasse com quanta cordialidade o fizéssemos, ou nos mandavam calar a matraca, ou sofríamos algum tipo de agressão. Talvez por ser homem, branco e aparentemente de classe média, eu tive tratamento VIP, e só tomei uns puxões pelas algemas, uns empurrões e muita cara feia, nada que valesse um exame de corpo-delito. Porém, aposto que não posso dizer o mesmo dos companheiros que são negros, moram na rua ou "parecem" ser pobres. E mesmo assim, apesar de terem pegado leve comigo, nunca me senti tão humilhado em toda minha vida.
Depois de termos sido empilhados em um camburão improvisado e levados para a 9ª Delegacia de Polícia, ao lado do Mercado Público, fomos submetidos a um chá de cadeira de algumas horas -– só que algemados, em pé e de cara contra a parede. Quem tentasse telefonar para algum familiar para avisar que estava preso tinha seu celular confiscado, quem tentasse registrar a cena com algum aparelho fotográfico era intimidado, e quem quer que falasse um ai tomava um empurrão. A mensagem que os soldados nos passavam era clara: obedeçam, ou vão apanhar. Às vezes, essa mensagem vinha de maneira clara, e em outras, sob um verniz de educação: “tô te pedindo numa boa”, “por gentileza”.
Por algum motivo que desconheço, fui premiado com uma revista completa por dois brigadianos homens, que me levaram, sozinho, para um banheiro ali no canto. Eu, muito ingênuo, perguntei se eu iria apanhar. Um dos policiais riu da minha cara, dizendo “olha as idéias que vocês tem, agora tira a calça.” Antes de me mandar baixar a cueca, ele me perguntou se eu tinha alguma droga comigo. E, enquanto eu passava por esse pente fino, tentava estabelecer um diálogo, saber por que diabos estava ali, qual era meu crime. Contudo, a conversa acabava rápido, por que tudo o que tinham para me dizer era “por que tu foi desobedecer as ordens por causa de umas árvores?” Voltei, então, para a sala de espera, novamente algemado, até que algum oficial tivesse a boa vontade de mandar retirá-las.
Após termos todos sidos fichados, passamos por uma última humilhação: recolher nossas coisas, jogadas de qualquer jeito e quebradas na caçamba de um caminhão. Mais uma vez, eu não tive problemas, pois tinha levado apenas uma mochila com alguns livros, e o maior risco que eu corria era de ir trabalhar sem um pé da meia. Para outros camaradas meus, que trabalham com artesanato, não são classe média ou que moram na rua, a perda foi muito maior – perderam suas poucas e preciosas roupas, seu sustento, seu lar.
Fico imaginando que muita gente que vai ler esse meu texto vai pular direto para os comentários pra me chamar de vagabundo, dizer que eu tinha mais é que apanhar por não trabalhar e obedecer a lei, que mendigo é tudo drogado ou lixo humano e que é melhor eu calar o bico e tocar minha vida, parar de me meter onde não sou chamado.
Pra essas pessoas, que provavelmente acham a frase “direitos humanos para humanos direitos” o máximo, posso apenas dizer: ainda bem que nada disso aconteceu com vocês. Ainda bem que quando um policial chega perto, vocês não sintam o sangue gelar, e ainda bem que vocês não sabem o que é perder tudo que você chama de vida assim, de uma hora para a outra, por puro capricho de um governante qualquer.
Esta madrugada, acampamos no largo do Gasômetro para impedir que árvores fossem cortadas, mas nossa luta não é só isso. Eu não milito em causa própria, por glórias, atenção, dinheiro ou cargos. Eu luto porque quero viver em um mundo onde ninguém –- nem vocês, nem os moradores de rua, nem os soldados da Brigada –- precise passar por privação. Esta luta também é sua e estamos do mesmo lado. Só que você ainda não percebeu, porque não entende que a liberdade de um é a liberdade de todos.
Por fim, este dia nasceu triste e opressivo, mas também é um dia de alegria, pois sinto que hoje tive meu batismo de fogo. Quando fui algemado, eu era apenas um menino idealista, mas quem saiu da delegacia foi um ser humano. Entrei para o grupo de pessoas que foram presas porque ousaram desafiar a tirania e combater a injustiça. Finalmente, sinto-me um igual, não apenas diante de homens e mulheres como Gandhi, Emma Goldman e Thoreau, mas também daqueles camaradas que há muito tempo gritavam para que eu me somasse à luta.
Se queriam me assustar com ameaças, e fazer com que eu me recolhesse para dentro do meu mundo, fracassaram, pois hoje descobri que não quero viver numa “democracia” em que eu tenha que me calar e seguir as ordens dos meus superiores. Jurei que farei tudo que estiver ao meu alcance para transformar o mundo onde eu quero que meus filhos cresçam. Guardarei um lugar aqui pra ti, no dia em que perceberes o mesmo, e seguirei lutando enquanto você não acorda.
Enquanto eu, Lola, estava editando este post, chegou um email de uma leitora:
"Aqui estão acontecendo diversas manifestações em função do corte de árvores feito pela prefeitura para duplicar avenidas em nome da Copa e pela forma ilegal e covarde que nós fomos retirados do nosso acampamento Ocupa Árvores e presos pela Brigada Militar. No protesto, ouvi o seguinte diálogo entre duas mulheres que assistiam à marcha pela cidade: 'Mas contra o que eles estão protestando?'
'Dizem que é por causa do corte das árvores, mas eles parecem transtornados de ódio. É grito de ódio contra a polícia, o capital, o governo, a mídia, até contra quem tá parado olhando. Às vezes parece que é só raiva reprimida'.
Percebi que quando eu protesto eu realmente sou movida por ódios -- exatamente todos os ódios que ela citou, e ainda alguns outros. E admito que já cometi atos 'impensados' em momentos de grande raiva. Confesso também que estou, cada vez mais, de saco cheio desse mimimi de manifestação pacífica.
Essa situação das árvores foi a gota d'água: fomos 100% pacíficxs nos protestos que imploravam pra Prefeitura desistir de cortar as árvores, e cortaram. Mas no início do ano, quando protestamos para baixar o preço da passagem de ônibus, a prefeitura baixou depois que os protestos deixaram de ser pacíficos!
Enfim, pacífico é passivo? Esse ódio é certo? Aliás, o que move um protesto se não for o ódio? Por que algumas pessoas ativistas são tão resistentes quanto à violência? Essa resistência não caracteriza medo? O medo não deveria ser algo contrário ao protesto?"
UPDATE em 13/9/13: Samuel Eggers, o rapaz que escreveu este guest post, foi assassinado ontem, 12/9, enquanto estava num congresso em Caxias do Sul. Segundo a notícia, vários tiros foram disparados de um GM Monza de cor escura. Segundo relato de testemunhas, os criminosos disseram que ele tinha que morrer. Foi uma execução. Estou paralisada. Que os criminosos sejam encontrados e condenados rapidamente. Muita força à família. É terrível saber que mataram uma pessoa que ajudava a fazer o mundo melhor.