Esta semana um vilarejo mineiro que você provavelmente nunca ouviu falar foi notícia em matérias de várias partes do mundo. O problema é que é tudo mentira.
Típico: pegam uma vila peculiar, em que as mulheres são maioria e têm poder (e uma história única), e transformam numa "cidade só de mulheres desesperadas para arranjar marido".
Juliana Brancaglioni Casciatori, de Americana, SP, fez o favor de pesquisar e relatar essa história pra gente.
Sou uma leitora invisível do blog, leio sempre, só não comento. E agradeço muito por ter conhecido esse blog, pois através dele conheci mais a fundo o feminismo.
Quero compartilhar com vocês uma história. Deparei-me com uma matéria ontem no Uol sobre uma “Cidade de Beldades” que estava fazendo uma “campanha por homens”. Vários jornais e sites estrangeiros divulgaram uma reportagem com fotos sobre um vilarejo de 600 mulheres jovens, lindas, exóticas e solteiras, que teriam criado uma campanha para atrair homens.
Segundo o Uol: “Manchetes como 'Habitat de Beldades em Busca de Homens' e 'Lugar Exclusivamente Ocupado por Garotas de Extrema Beleza Quer Atrair Maridos' deixaram alguns leitores estrangeiros curiosos -- a ponto de chegar ao topo da lista de mais lidas do jornal britânico The Telegraph”.
Mas o absurdo não é esse. O problema é que tudo isso nada mais é do que um boato. O vilarejo do qual eles falam se trata do pequeno distrito de Noiva do Cordeiro, a 100 km de Belo Horizonte, MG, povoado por aproximadamente 300 pessoas, entre homens e mulheres. A maioria da população é sim de mulheres, e durante a semana o vilarejo é mais povoado por elas, já que os homens vão à capital para trabalhar como operários em fábricas, e retornam no final de semana.
Uma das moradoras, Rosalee Fernandes foi citada nas matérias que divulgaram o boato. Diz ela:
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Rosalee Fernandes cinco anos atrás |
"Com certeza não tem campanha nenhuma. Não dei entrevista. Colocar a gente nessa situação é um absurdo [...]. Em pelo menos uma dessas reportagens foram usadas fotos que mostram as mulheres em poses e trajes provocantes. As fotos foram tiradas numa festa à fantasia e publicadas na página da associação local no Facebook. [...] Ninguém aqui está desesperada, não, senhor, somos trabalhadoras".
Agora, em que século será que estamos? Só porque uma moradora citou em uma matéria exibida lá no exterior que há poucos homens e boa parte deles parentes, a mídia britânica já saiu espalhando que existia uma “campanha em busca de maridos”?
Aprofundando a história, as mulheres de Vila do Cordeiro contam que, no passado, moradores das cidades vizinhas as chamavam de prostitutas -– pelo simples fato de estarem desacompanhas.
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Maria Senhorinha em destaque |
Eu, muito curiosa, quis saber um pouco mais sobre a vida da vila, então encontrei o site sobre Noiva do Cordeiro. Tudo começou há mais de 120 anos, por “culpa” de uma mulher. Por volta de 1890, Maria Senhorinha se casou com um francês no povoado de Novas Roças, em Belo Vale (MG). Porém, após 3 meses de casada ela conheceu Chico Fernandes, se apaixonou e começou a ter um caso com ele. O marido descobriu.
Com o adultério Maria Senhorinha resolveu se separar e assumir o romance com Chico, mas o povoado ficou chocado, e a Igreja Católica os excomungou até a quarta geração. Com isso, Senhorinha e Chico resolveram se mudar para uma propriedade a 40 km de distância de Belo Vale.
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Delina Fernandes hoje |
Alguns anos depois eles tiveram o primeiro filho, Francisco Fernandes Filho, um dos nove que viriam a ter, e em 1942 ele se uniu a Geralcina Maria de Jesus, somente no civil, já que seus pais tinham sido excomungados. Em 1944 nasceu Delina Fernandes (que hoje é considerada a matriarca da Vila), filha de Francisco e Geralcina.
Em 1950 eles começaram a receber a visita de um pastor, que queria evangelizar e pregar a palavra na região. Os moradores, junto com o pastor, construíram a igreja Evangélica Noiva do Cordeiro (que mais tarde veio a se tornar o nome da vila). Em 1962 o pastor se casou com Delina Fernandes, que só tinha 16 anos, neta de Maria Senhorinha e Chico.
Após o casamento o pastor impôs várias regras referentes à religião, entre elas jejum três vezes por semana, e com isso muitos moradores da propriedade rural foram para outras cidades. Ele não permitia que os membros da igreja tivessem contato com outras pessoas que não fossem da mesma religião, não podiam assistir televisão e nem ouvir rádio. De 1970 a 1990, a população do vilarejo aumentou, pois os casais não podiam evitar filhos. E com todos esses fatores, as famílias ficaram sem dinheiro e na miséria.
Então em 1991 aconteceu o primeiro casamento com música na igreja (gente, nem música os jovens conheciam até essa época!). Essa situação mexeu com o sentimento dos moradores e o enfraquecimento da Igreja Evangélica Noiva do Cordeiro tornou-se evidente. Alguns moradores passaram a não frequentar mais os cultos e em 1994 decidiram extinguir a religião e não adotar mais nenhuma doutrina. Logo em seguida o pastor faleceu, deixando Delina viúva. Ela se tornou matriarca da vila, pelos seus ensinamentos.
E a reviravolta começa aí: o nome da comunidade vira Vila Noiva do Cordeiro em 1999, e Delina, juntamente com sua filha Rosalee (a que foi citada nas reportagens), criam a Associação Comunitária Noiva do Cordeiro, com o objetivo de buscar recursos para as famílias. E no mesmo ano criam uma fábrica de lingeries e várias formas de lazer e trabalho na comunidade.
Vila Noiva do Cordeiro tem uma grande força feminina, já que são elas que tomam conta de todos os setores da comunidade, desde a agricultura, artesanato, costura, comida etc. São elas que tomam todas as decisões, e o mais bacana é que ninguém é obrigada a fazer nada, cada uma escolhe fazer o que gosta. E se ajudam mutuamente, são muito unidas e fazem tudo juntas, desde o trabalho à refeição, formando uma grande família. Não há competição entre as mulheres, apenas sororidade. Ninguém é rica ou pobre, todas se ajudam e agem em comunidade. Não conhecem criminalidade e são felizes. Sem religião.
Por causa de todas essas particularidades, tem quem ache que lá é um prostíbulo. Obviamente, não é. Para quem quiser saber mais, no ano passado foi produzido um documentário com o nome Noivas do Cordeiro. A revista Marie Claire fez uma matéria sobre "a vila das mulheres" em 2009.
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Com o repórter inglês do Telegraph |
Sabe Lola, é difícil acreditar que num passado muito próximo ainda havia (e com certeza ainda há) esse tipo de preconceito. Mas o mais bacana disso tudo é saber que no século passado, mesmo com toda opressão da sociedade, quando chamavam Maria Senhorinha de prostituta e pecadora, ela não se importou e foi viver com seu grande amor.
E é bacana ver que essas mulheres superaram o machismo das cidades vizinhas e a opressão da religião, e hoje, no meu ponto de vista, essa vila e essas mulheres são um ótimo exemplo de empoderamento feminino. Pois juntas elas conseguiram restaurar a dignidade, a emancipação, e principalmente a liberdade de escolha.
O triste é ver que Noiva do Cordeiro, que foi tão difamada pelas cidades vizinhas durante décadas, agora é difamada pela imprensa internacional.