Oi Lola, acompanho seu blog há bastante tempo e devo dizer que ele mudou a minha forma de pensar sobre a vida. Me fez entender melhor o machismo, como ele influenciou a minha formação e como, apesar de tudo, eu sou uma pessoa muito privilegiada.
Resolvi escrever esse guest post sobre uma situação que vivi há uns 4 anos, que infelizmente é muito comum. Confesso que hoje os acontecimentos não me afetam tanto, e ter feito terapia ajudou nesse processo, mas por muito tempo foi algo bem doloroso. Gostaria de compartilhar minha experiência para tentar ajudar outras mulheres que estejam passando por isso, mostrar que é algo comum e que é possível reagir.
Antes, uma pequena apresentação necessária para o entendimento dos fatos. Estou usando o meu email real, então, caso resolva publicar meu relato, peço que não me identifique. Quanto aos outros personagens da minha história, usarei nomes fictícios.
Nefrologia: ramo da urologia que se dedica ao estudo da fisiologia e das doenças dos rins |
Esse mês que passei lá foi ótimo. Fui bem acolhida por toda equipe, inclusive pelos atuais residentes. Porém, ouvia diversas reclamações dos residentes de lá sobre o Carlos, que os tratava de maneira grosseira o tempo todo. Já comigo, o Carlos sempre foi simpático, elogiava sempre o meu desempenho, dizia que eu era uma médica promissora. Ao final do mês recebi nota máxima na avaliação, com muitos elogios. Terminei o mês disposta a retornar ao hospital para fazer minha sonhada especialização em nefrologia pediátrica.
Prestei então concurso para três grandes serviços de especialização e passei para todos, inclusive o chefiado pelo Carlos. E foi lá que escolhi ficar, por ser no hospital que me formei, por ter sido bem acolhida, mesmo tendo ouvido de diversos médicos mais velhos que deveria escolher outro serviço.
Cheguei no primeiro dia da nova residência feliz, finalmente iria estudar o que sempre sonhei. E recebi a primeira bomba. No primeiro encontro com Carlos, onde ele nos explicaria sobre o funcionamento do serviço, ouvi a seguinte frase:
- Você só está aqui porque eu quis. Eu aumentei a sua nota na prova prática, senão você não passaria.
Fiquei desconcertada, não soube o que responder. Como já disse, eu sempre fui muito estudiosa, sempre passei para concursos por mérito. Nunca pedi ou insinuei a ele que me desse qualquer tipo de ajuda. E a prova disso é que havia passado para dois outros ótimos hospitais onde ninguém me conhecia. Hoje sei que essa frase já tinha como objetivo me deixar submissa, mostrar o poder dele.
Éramos quatro médicos residentes no total, eu, a Joana, que havia entrado comigo, e mais dois do ano anterior (a residência tem duração total de dois anos). Inicialmente fiz amizade com a Joana, trabalhávamos bem juntas. E não ouvi mais nenhum comentário daquele nível do Carlos. Pelo contrário, recebia diversos elogios, sempre voltados ao meu desempenho como médica. Cheguei a acreditar que o Carlos não era uma pessoa tão ruim como pintado por todos ao meu redor (santa inocência). Com o passar do tempo, eu, Carlos e Joana criamos uma amizade. Viajamos juntos para congressos, discutíamos casos, mas tudo de maneira profissional.
Com o tempo, os "elogios" do Carlos para mim e para Joana evoluiriam. Ele fez um convite para que fizéssemos diversos trabalhos ao fim da residência juntos, para atendermos juntos em seu consultório. Sabe, Lola, os últimos anos de residência em medicina são de muita ansiedade. Estava louca para exercer minha especialidade, as oportunidade são poucas. Convites desse tipo de um professor conhecido são vistos como uma grande oportunidade de crescer no início da carreira.
Mas a partir daí as coisas mudaram. Carlos passou a nos convidar para almoçar com ele, para ir em sua casa tomar champanhe, passou a elogiar nossa beleza e forma física... E por último veio nos anunciar que havia terminado o seu relacionamento (na época ele namorava uma ex-aluna).
Percebi que o interesse dele na gente era puramente sexual. Me culpava por ter sido tão inocente. As evidências eram enormes! Não queria nada com ele, estava noiva, ia casar. Já a Joana, solteira, demonstrou interesse nele. Logo, Carlos e Joana começaram a namorar.
Nesse meio tempo tive uma briga com a Joana (por motivos alheios à residência médica) e nos afastamos um pouco. O primeiro ano terminou, entraram mais dois novos residentes, e meu inferno começou. Carlos passou a me agredir verbalmente, criticar meu trabalho, ao mesmo tempo que passava a mão na cabeça da Joana. Levava ela para almoçar no nosso horário de trabalho, enquanto eu atendia as crianças. Deu a ela diversas regalias que sempre foram negadas aos residentes (como um dia de folga na semana, um armário para guardar os pertences). Quando havia algum procedimento interessante a ser feito alegava sempre que era a vez da Joana. Nos procedimentos mais chatos, era sempre a minha vez de fazer. Emendava feriados para viajar com a Joana (enquanto os outros residentes trabalhavam).
Fazia reuniões de serviço com os residentes onde exaltava todas as qualidades da Joana e criticava todos os defeitos meus e dos outros residentes. Chegava a ser caricato. O clima foi ficando insuportável. Os outros professores estavam cientes da situação, achavam um absurdo tudo isso, mas ao mesmo tempo não queriam enfrentá-lo, pois ele era o chefe do serviço.
Perdi toda a vontade de estudar. Ia ao hospital obrigada. Minha autoestima ficou no pé. Achava que aquilo era o fim da minha carreira, que eu era um fracasso, que era tudo culpa minha. Chorava constantemente em casa. Até que o ano acabou. Na minha última semana ainda ouvi mais ofensas dele, dizia que eu era uma pessoa manipuladora, que não tinha compromisso. Me proibiu de frequentar o serviço, falou que nunca mais ia aceitar a minha presença em nenhum local que ele trabalhasse. Uma outra residente, que iria para o segundo ano, não aguentou a pressão. Fez prova novamente e foi para outro hospital. Pra você ver como a situação era crítica. Ela preferiu jogar um ano de estudos fora, recomeçar do zero, a ter que passar mais um ano aturando as ofensas do Carlos.
Fui convidada por um outro professor do hospital para fazer mestrado. Aceitei, pois sempre sonhei em ser professora. Mas já nas primeiras reuniões ele me falou para darmos preferência a marcar reuniões fora do hospital. Não queria que Carlos me visse com ele, para não dar problema. Me senti muito mal. Não era justo que eu mais uma vez fosse prejudicada quando o Carlos era o agressor!
Decidi então romper todos os vínculos. Larguei o mestrado, passei a procurar locais para trabalhar de forma independente. No início foi muito difícil. Não conseguia nenhuma oportunidade, achava que o Carlos estava certo e eu era realmente incapaz. Ou que ele realmente tivesse conseguido acabar com a minha imagem. Mas com o tempo tudo foi ficando melhor.
Oportunidades foram aparecendo. Passei em um concurso para médico de um grande hospital universitário, montei meu consultório, fiz diversos contatos profissionais. Apesar de não ter feito mestrado nem virado professora, tenho muito contato com alunos, posso passar a eles minha experiência e isso me faz bem.
Oportunidades foram aparecendo. Passei em um concurso para médico de um grande hospital universitário, montei meu consultório, fiz diversos contatos profissionais. Apesar de não ter feito mestrado nem virado professora, tenho muito contato com alunos, posso passar a eles minha experiência e isso me faz bem.
Hoje estou crescendo na carreira, tenho uma boa relação com todos os colegas que me cercam. Não tenho mais nenhum contato com o Carlos e a Joana. Hoje levo o que aconteceu como uma experiência sobre o que eu NÃO quero ser no futuro. Sobre como não agir caso um dia eu chegue a ser chefe de serviço. Aprendi a acreditar em mim mesma, e que ninguém, por mais poderoso que seja, pode mudar o meu futuro. E o principal, aprendi a ser menos inocente. Sei que é errado julgar alguém baseado nas opiniões de terceiros, mas quando todos falam algo sobre uma pessoa, vale a pena ficar com o pezinho atrás. Alguém que lhe trata bem quando maltrata todos ao seu redor sempre terá um interesse oculto por trás disso, que pode lhe fazer bem ou não.