sábado, 30 de novembro de 2002

CLÁSSICOS: O PODEROSO CHEFÃO / O chefão dos filmes

Quantos filmes você conhece que começam com um close parcamente iluminado de um ator desconhecido dizendo, com sotaque italiano, “Eu acredito na América”? A câmera vai se distanciando do sujeito vagarosamente e, nesse período, seu discurso contradiz a sua frase inicial. Descobrimos que o sonho americano foi injusto com ele – tão injusto que ele precisa pedir ajuda para mafiosos. Estou falando de “O Poderoso Chefão”, o épico que está completando trinta anos sem envelhecer nem um tiquinho. Mas é fácil esquecer este primeiro momento que tão bem estabelece o tom do filme. O próprio Coppola havia imaginado que abriria seu clássico com a grandiosa sequência do casamento. Ih, mas vamos começar do começo.

Mais sutil, o título em inglês de “Chefão” é “The Godfather”, que significa “o padrinho”. E é isso que Don Corleone é para sua comunidade, ou pelo menos para seus protegidos. É também um pai carinhoso e um mafioso bastante violento da década de 40. A história é aproximadamente essa. Há vários detalhes, montes de personagens, e o foco muda o tempo todo – ora o chefão é o protagonista, ora seu filho caçula. Por que então essa simples trama se transformou num dos maiores clássicos do cinema?

“Chefão” não é considerado apenas o melhor filme sobre máfia já feito, mas também um dos melhores filmes, ponto. Entra sempre na lista dos mais importantes, se bem que muita gente, eu inclusa, fica em dúvida se “Chefão II” não seria superior ao primeiro. A super crítica Pauline Kael demorou, mas acabou colocando o épico no panteão das obras-primas mais influentes do cinema. Além do mais, “Chefão” fez uma dinheirama, quebrou todos os recordes de bilheteria na época, foi um dos pioneiros a gerar continuações, lançou novos astros, e amealhou três Oscars (ao contrário de hoje, a concorrência era acirrada em 72, e “Chefão” concorreu com maravilhas como “Cabaret”).

Os bastidores do filme são igualmente fascinantes. Mario Puzo escreveu uma saga que foi se estabelecendo devagarzinho na lista dos bestsellers. Mas, quando o estúdio comprou os direitos do livro, “Chefão” não era nada fora literatura para se ler nas férias, e a intenção hollywoodiana era produzir um caça-níqueis de baixo orçamento. Por isso, chamou Coppola, que até então havia dirigido três filmes, nenhum deles significativo. Por isso e porque um dos produtores, Robert Evans, concluíra que todos os filmes de gangsters tinham sido feitos por judeus, e ele queria alguém que “cheirasse a espaguete”, ou seja, um ítalo-americano fácil de controlar. Coppola, fácil de controlar! Há! O jovem diretor era tão pouco respeitado no set que uma anedota conta que ele estava no banheiro quando entraram duas pessoas da equipe, comentando que ele era um incompetente, um amador. Coppola, envergonhado, ficou quietinho no cubículo.

É certo que o mérito da obra é dele, que conseguiu que o estúdio abrisse um pouco mais a carteira (mesmo assim, “Chefão” não foi nenhuma superprodução: custou US$ 6 milhões) e insistiu em fazer um filme de época (os produtores pretendiam “atualizar” a história, colocando hippies e tudo o mais). E, principalmente, foi capaz de contratar os atores que quis. Não que tenha sido fácil. Para interpretar Don Corleone, ele queria um dos dois maiores atores de todos os tempos, Laurence Olivier ou Marlon Brando. Olivier não podia, estava doente; Brando queria, mas ninguém o queria nem morto. Hollywood o via como veneno de bilheteria. Além disso, ele era jovem demais para o papel. Brando teve de passar por um teste, onde pôs graxa nos cabelos e Kleenex na boca pra fazer com que Don Corleone parecesse um buldogue. E Al Pacino? Ele era um zé-ninguém na ocasião. Evans o chamava de “aquele anão”. Mas hoje não dá pra pensar em outro pro personagem.

Apesar de tudo, “Chefão” deu certo. Serviu para mudar a cara do cinema e transformar a década de 70 numa das melhores da sétima-arte. Mais tarde, Coppola filmaria “Apocalypse Now” pra provar que não acreditava mesmo na América, o ingrato.

Veja aqui muito mais sobre o Chefão.

A MORTE DO MAIS SELVAGEM

Billy Wilder morreu. Quem acha que os filmes pré-1981 integram o cinema mudo ou são em preto e branco – ou seja, quem não viu nenhuma obrinha antes deste tempo – nem sabia que Billy estava vivo. Aliás, desconhecia que existisse um diretor com este nome que, em português, significa “mais selvagem”. Foi em 81 que Billy fez seu último filme, que não era grande coisa e se chamava “Amigos, Amigos, Negócios à Parte”. Uhm, por incrível que pareça, esta comédia não era muda ou em preto e branco.

Pode-se dizer que o último a deter o título de maior diretor vivo acabou de bater as botas. Billy foi um dos gigantes de Hollywood. Seu legado de 26 produções inclui um monte de obras-primas. Infelizmente, aqui no Brasil, elas são meio difíceis de serem vistas. A TV aberta não as passa com freqüência, e boa parte não está disponível em vídeo ou DVD. Tomara que agora alguém decida lançar um pacote.

Billy tinha 95 anos e era um poço de bom humor. Nasceu na Áustria e, pra fugir do nazismo, foi pros States em 1934, sem saber uma palavra de inglês. Isso não o impediu de virar roteirista (seus scripts eram traduzidos) ou de transformar-se num americano típico, desses que usam boné e gírias da moda e prestigiam jogos de beisebol. Mas, como proferiu um personagem de “Quanto Mais Quente Melhor”, um de seus clássicos absolutos, “ninguém é perfeito”.

E por falar nesses clássicos, vou comentar alguns apenas. É provável que o maior de todos seja “Crepúsculo dos Deuses” (1950), uma história ácida narrada por um cadáver – um roteirista bonitão que, sem querer, passa a fazer parte da vida de uma ex-estrela de cinema. Lá pelas tantas, ele diz a ela: “Você já foi grande”, no que ela rebate: “Eu sou grande. Os filmes é que ficaram pequenos”. Tragicômico e belo, “Crepúsculo” é a descrição mais apurada que Hollywood ousou fazer de si mesma. O chefão da MGM, Louis B. Mayer, odiou tanto a produção que xingou Billy a plenos pulmões: “Seu miserável, você desgraçou a indústria que te fez. Você deveria ser expulso daqui!”. Billy deu-lhe o troco sete anos depois, quando o funeral de Mayer atraiu uma multidão: “Isso comprova tudo: dê às pessoas o que elas querem ver, e elas comparecerão”. Mas só na mente pervertida de Billy é que se passava que o público queria ver corpos em decomposição. A primeira cena de seu “Crepúsculo” acontecia num necrotério. A reação da platéia de exibições-teste (sim, essa praga já existia naquela época) fez com que Billy mudasse o início pra cena do protagonista boiando na piscina.

Há quem prefira “Farrapo Humano” que, apesar de também transbordar com humor negro, é um retrato sério e fiel do alcoolismo. Em 1945, Billy transformou o galã Ray Milland em um escritor alcoólatra que esconde garrafas de bebida pelo apartamento e é capaz de trocar a máquina de escrever, seu instrumento de trabalho, por alguns goles. Ou melhor, ele tenta trocá-la, pois a história toda ocorre num final de semana (no título original, “O Fim-de-Semana Perdido”), bem no meio de um feriado judaico, e o pobre bebum vai de loja de penhores em loja e encontra tudo fechado, numa das seqüências mais célebres desta pérola.

Ou quem sabe você seja adepto do film-noir, e aqui Billy também deixou sua marca. “Pacto de Sangue” (1944) conta a trama de um corretor de seguros especializado em desvendar fraudes. Adivinha o que ele decide fazer logo após se envolver com a femme fatale Barbara Stanwyck? Ora, fraudar a apólice, claro. Barbara era uma estrela classuda, e Billy queria uma atriz caindo pelas tabelas. Assim, ele pôs nela uma peruca loura bem vagabunda, o que causou um produtor a reclamar: “Pô, a gente contrata a Barbara e recebe o George Washington?!”. Mas valeu a pena. O ótimo “Corpos Ardentes”, inclusive, se encarregou de homenagear “Pacto” décadas mais tarde.

Tudo bem, pode ser que o jornalismo seja mais sua praia. Neste caso, Billy inventou dois clássicos que deveriam constar da grade curricular de qualquer aspirante a repórter: “A Montanha dos Sete Abutres” e “A Primeira Página”. Ou de repente você gosta mais de comédias. Aí tem “Quanto Mais Quente Melhor”, considerada uma das melhores já feitas, e “Se Meu Apartamento Falasse”, que valeu a Billy seu segundo Oscar. Ah, e não esqueçamos aquela cena com o vestido da Marilyn levantado pelo ventinho que vem do metrô, aquela, que entrou no imaginário da cultura pop. Está em “O Pecado Mora ao Lado”. Sobre Marilyn, Billy declarou: “foi como ter trabalhado com Hitler”.

Então, estamos combinados. Se alguém souber de algum outro diretor cínico e mordaz que deixou uma legião tão vasta de filmaços, por favor, me avise, tá? E, nesses dias de sisudez absoluta, de total falta de senso de humor, vale lembrar uma das frases do genial Billy Wilder: “Se há uma coisa que detesto mais do que não ser levado a sério, é ser levado a sério demais”.

CLÁSSICOS: A MARCA DA MALDADE / Toque de gênio

No adorável “Ed Wood”, trava-se o improvável diálogo entre Ed, o pior diretor cinematográfico de todos os tempos, e Orson Welles, o gênio. Welles reclama que não tem liberdade alguma em seus filmes, que só lhe deram controle total no seu primeiro, “Cidadão Kane”, e, para ilustrar seu drama, conta que está sendo forçado a escalar Charlon Heston para o papel de mexicano.

Para bom entendedor, meia palavra e tal. O filme em questão é “A Marca da Maldade” (1958), onde o herói nórdico de “Ben-Hur” realmente interpreta um detetive do narcotráfico no México. Welles tinha razão pra se queixar. Parece que o estúdio fez maldade com “A Marca”: mutilaram e mudaram a ordem de algumas cenas. Porém, não consigo imaginar de que jeito esta obra-prima poderia ser melhorada. Recentemente, um estudioso remontou o filme de acordo com anotações feitas por Welles no roteiro. Ainda não vi esta nova versão, mas desconfio que seja um pouco como o relançamento de “Blade Runner”. Se o filme já é bárbaro, por que alterá-lo? É aquele ditado – em time que está ganhando não se mexe.

“A Marca” é o típico policial noir. Tudo é escuro, em invejável branco e preto, principalmente a trama, que fala da corrupção na fronteira entre os States e o México. Um Welles obeso faz o tira americano, um sujeito preconceituoso e cruel. E Heston, ao mesmo tempo o mocinho, é também uma vítima. Sua noiva Janet Leigh é raptada, drogada, e envolvida em escândalo. Mas a história fascinante é o que menos importa. Tudo em Welles é estilo. É o posicionamento da câmera, são os cortes, a luz que teima em iluminar só a metade do rosto, a seqüência ininterrupta do início com a música latina de Henry Mancini para pontuar a ação. Ou seja, toques de autor, de quem respirava cinema (update: só mais tarde a gente descobre que a música do Mancini foi imposta pelo estúdio. Uma pena que a versão "restaurada" do filme não traga mais a música. A sequência perde muito sem ela).

Por essas e outras que Welles é considerado O Homem, e “A Marca” (que em inglês é só um touch, um toquezinho de maldade) seja uma das obras mais marcantes da sétima arte. De quando cinema ainda era tido como arte, claro.

Você pode conferir por que Welles é considerado O Homem no Espaço Cultural Antarctica neste domingo, às 19 horas, de graça. Tá certo, as cadeiras de plástico são desconfortáveis e o som não é grande coisa, mas tendemos a relevar estes detalhes quando estamos embasbacados, atônitos, admirando uma das obras mais marcantes da história. A idéia do cineclube é excelente. Pena que ainda falte um debate com o público, uma conversa depois da sessão, aquele tchan a mais que leve à formação de um espectador exigente.

CRÍTICA: INVASOR, AMORES BRUTOS, RÉQUIEM PARA UM SONHO / Nada no cinema?

O que tem em comum o brasileiro "O Invasor", o mexicano "Amores Brutos", e o americano independente "Réquiem para um Sonho"? Bom, todos são ótimos filmes, todos custaram baratinho e arrecadaram prêmios, todos são muito violentos, todos são recentes e estão disponíveis em vídeo, todos têm um ritmo visceral, e... Nenhum deles passou nas telas da minha cidade, chuif. Mas também, são bons filmes – e o que bons filmes estariam fazendo por aqui? Só se estivessem a passeio.

Confesso que não gostei tanto assim de "O Invasor" como outros críticos. Numa pesquisa feita por profissionais, este que é o terceiro filme de Beto Brant foi eleito o mais importante da retomada do cinema nacional, ou seja, do período entre 1994 e 2002. Em segundo ficou "Cidade de Deus". Sem dúvida, "O Invasor" é marcante, e a imagem do ex-Titã Paulo Miklos não sai da minha cabecinha. É um retrato fiel da luta de classes em Sampa, mas é também um pouco redundante. Tem cenas sobrando que não contribuem muito com a história. Talvez eu tenha gostado mais de "Matadores" e "Ação entre Amigos", os outros do Brant. Ou talvez, depois de tanto oba-oba, eu estivesse esperando mais de "Invasor", e tenha ficado um tantinho decepcionada. Mas é uma obra altamente recomendável e que se tornou mais atual ainda depois do assassinato do rapper Sabotage, que compôs boa parte da trilha sonora do filme.

"Amores Brutos" ("Amores Perros" no original; "perro" é cachorro), de Alejandro González Iñárritu, é bem mais longo que "Invasor", e, pra mim, mais inesquecível. São três histórias terríveis envolvendo cães, amor e ciúmes. A primeira trata com grande realismo as rixas de cães, e eu só sosseguei depois de ver nos créditos finais o aviso de que nenhum animal foi ferido durante as filmagens. É até difícil de acreditar. Gael García Bernal, o nome mais repetido do cinema mexicano de hoje (ele está em "O Crime do Padre Amaro", outro que vai passar longe das telas daqui), é o protagonista da primeira história. Na segunda, muda-se o foco completamente pra mostrar uma modelo que tem um acidente. No último, um andarilho é contratado para matar um cara rico, mais ou menos como em "O Invasor". As três tramas vão se unindo à la "Pulp Fiction", numa competição insana pra ver qual me arrancava mais lágrimas. Mas "Amores" não tem nada de sentimental. Nada das novelas mexicanas que vez por outra invadem o SBT. "Amores" é forte como café amargo, e sabe quando ia ganhar o Oscar de melhor filme estrangeiro a que foi indicado no ano passado? Nunca. É chocante demais pro gosto comum dos votantes da Academia.

Outro que deixa um gosto ruim é "Réquiem para um Sonho". Mais distante do cinema de entretenimento de massas de Hollywood, impossível. Em linhas gerais, "Réquiem" fala de vícios. Ellen Burstyn (lembra dela em "O Exorcista"?) é a mãe de um viciado em heroína que namora outra viciada, Jennifer Connelly (que levou o Oscar de coadjuvante por "Uma Mente Brilhante"). Ellen também se vicia, primeiro em televisão, mais adiante em pílulas para emagrecer. E tudo acaba excepcionalmente mal pra todos. O vício não compensa, a gente já sabia disso, mas "Réquiem" está estupidamente bem-filmado, cheio de ângulos inovadores e uma edição pulsante. Não pense que digo isso só porque o sobrenome do diretor (Darrren Aronofsky) é lindo. Não. "Réquiem" tá lotado de cenas inolvidáveis, e pode ser que minha preferida seja aquela em que a Ellen vai ao médico – que nem sequer olha pra ela. Quem já passou por isso, levante a mão. Um de cada vez, por favor.

Pois é, se você, como eu, anda cansado das coisas horrendas que ficam em cartaz por semanas a fio, tirando o lugar de filmes mais densos e inteligentes, agradeça aos céus pela invenção do vídeo e do DVD. E pegue essas obras que fazem pensar. Afinal, quem não tem cão caça com gato, né?

CRÍTICA: ÔNIBUS 174 / Soco no estômago

Não é pra todo mundo. Se você não mora numa metrópole ou numa cidade com cineclube, dificilmente terá a oportunidade de ver "Ônibus 174". Neste caso, incomode o dono da sua locadora para que ele compre a fita. Nesses tempos de oba-oba do Oscar, nada mais apropriado para nos trazer de volta à realidade do que este documentário nacional dirigido por José Padilha.

Antes de continuar, um instantinho de reflexão. Quantos documentários você já viu na vida? Poucos, né? Eu também. É uma pena que esta outra forma de se fazer cinema chegue tão raramente até nós. Imagino que várias pessoas pensem que documentários são chatos. Essas devem ser as mesmas que acreditam em neutralidade. Bom, "Ônibus 174" não é chato nem neutro. Quando Padilha selecionou cenas reais pra montar seu filme, teve de tomar decisões sobre o que incluir e o que deixar de fora. Essas escolhas já demolem qualquer suposta neutralidade.

Poucas vezes presenciei um silêncio tão solene quanto na saída da sessão de "Ônibus". Não havia o que falar, qualquer tentativa seria fútil. A história de Sandro, o assaltante que fez reféns num ônibus carioca em junho de 2000 e acabou, pra variar, morto pela polícia, é um verdadeiro soco no estômago. Mais ainda que seu companheiro ficcional, "Cidade de Deus". O efeito de "Ônibus" equivale ao de "Cronicamente Inviável", que também é altamente perturbador. O documentário colhe vários depoimentos de policiais, de ex-secretário de segurança pública, de sociólogos, de jornalistas, de assistentes sociais, de gente que conheceu Sandro, das reféns. Todos os testemunhos são relevantes, tirando um, e esta é uma opinião estritamente pessoal, mas achei que as palavras da mãe adotiva do moço comprometem o ritmo. Há grandes compensações, claro. Um sociólogo diz que nada expõe mais a precariedade da polícia que um assalto com reféns, porque aí descobrimos que os policiais não têm sequer rádio (usam mímica) e que não fazem um curso há dois anos. A assistente social, ao explicar o passado de Sandro, conta que ele nasceu de pai desconhecido, e que a ilusão de que esse menino negro e favelado tenha avós faz parte da nossa mentalidade burguesa. Mais ou menos isso.

A vida do guri é uma tragédia só. Aos seis anos, viu sua mãe, grávida, ser assassinada. Criou-se nas ruas do Rio. Em 93, sobreviveu à chacina da Candelária. Sobreviveu também às Febens da vida, onde recebeu corretivos "sócio-educativos" (é piada ou não é?). E terminou sendo um elemento de periculosidade muito maior, pondo em risco dez reféns, num circo de horrores amplamente transmitido pela TV em rede nacional, ao vivo e em cores. No ônibus, Sandro grita o tempo todo: "Isso não é um filme de ação!", numa sombria metalinguagem. Noutro momento, ele fala a um comandante: "Lembra da Candelária? Eu tava lá!".

Se não lembramos da chacina, problema nosso. O diretor Padilha faz questão de nos levar a 93. Uma ex-menina de rua conta como era o cotidiano das crianças que dormiam em frente à igreja. Num depoimento comovente, ela narra que de vez em quando a molecada comprava um lanche no Bob's e o repartia entre eles – cada um dava uma colherada no sorvete. Nessas horas, segundo ela, "a gente se sentia filho de papai e mamãe". Sete guris foram mortos por policiais nesse massacre. E a maior parte da população achou que foi bem-feito.

O documentário trata bastante da invisibilidade dos meninos de rua, aqueles que a gente finge que não vê. No sinaleiro, três garotos fazem malabarismos, e os motoristas se recusam a olhar pra eles. Ahn, isso é só no Rio? Ademais, Padilha nos mostra um pouco das cadeias e delegacias cariocas, meros depósitos de presos. Um presidiário declara que seria melhor estar morto que viver nessas condições. A sociedade concorda. Ela não acredita em recuperação. Quer vingança, castigo, pena de morte. Uma das cenas mais surreais de "Ônibus" ocorre quando a plebe ensandecida parte pra linchar Sandro. Em pleno cerco policial! A posição do documentário é clara: a maior vítima dessa história toda foi o assaltante, como ecoa uma das reféns. E ouvir essas coisas dói.

CLÁSSICOS: O PODEROSO CHEFÃO / Mais sobre o chefão dos filmes

Atendendo a inúmeros pedidos (dois) de quem acha que um clássico da estatura de "O Poderoso Chefão" (1972) merece mais que um textículo, volto ao tema com mais revelações saborosas. O diretor Coppola faz um monte delas no comentário que gravou para o DVD, mas se você, como eu, se acostumou a buscar todas as informações possíveis sobre "Chefão", elas não são tão reveladoras assim.

Por exemplo, tive o prazer de ler pedaços da autobiografia do produtor Robert Evans, um dos maiores inimigos de Coppola. O cara não tem o menor pudor em contar que, enquanto ele se encarregava de atazanar a vida do diretor, sua mulher na época, a atriz Ali MacGraw (de "Love Story"), estava mandando ver com o galã machão Steve McQueen durante as filmagens de "Os Implacáveis". Na festa de lançamento de "Chefão", Evans conseguiu trazer chefes de Estado. A linda Ali foi também, mas Evans relata que, ao olhar pra ele, ela "estava pensando no p** do Steve". E narra problemas de impotência, de envolvimento com drogas – ele abre o jogo mesmo. Porém, sobre o "Chefão", sua estratégia é fazer crer que o crédito é dele, não de Coppola. Tá, a gente acredita. Ele diz que a primeira montagem entregue pelo diretor tinha pouco mais de duas horas e nenhuma substância, e que foi ele, Evans, que ordenou Coppola a editar tudo de novo e acrescentar montes de cenas, o que constituiria um caso raro, talvez único, de um produtor implorando pra alongar uma obra (filmes longos, lembre-se, dão menos lucro pros exibidores, pois rendem menos sessões). Coppola até hoje fica indignado com esse boato. Segundo ele, Evans havia lhe avisado que, se o filme tivesse mais de duas horas, o diretor perderia o controle da montagem. Portanto, ele suprimiu cenas. Evans viu o resultado e pediu pra colocar as cenas de volta, só isso. Mas o produtor foi capaz de adiar a data de lançamento do clássico, o que não é fácil.

Vamos a outros detalhes:

- Nino Rota iria ser indicado ao Oscar por sua bela música. Até que a Academia descobriu que a trilha é igualzinha à de "Satyricon", também dele. Coppola argumenta que não vê nada de errado em roubar de si mesmo.

- O estúdio não queria Marlon Brando nem morto. Mas ele se comportou super bem durante as filmagens. Trouxe bom humor ao set, fazia graça, aplicava trotes e, mais importante, trabalhou uma semana extra de graça. Parece que, na cena em que um capanga lhe faz um discurso nervoso, Brando tinha escrito na testa "F*** you". Chegou ao ponto de James Caan não poder fitá-lo sem morrer de rir. Observe também o gatinho sendo acariciado por Brando no início do filme. Eles o encontraram no set, o puseram no colo do maior ator vivo e ele ficou lá, todo feliz. A maldade de Brando só veio depois, quando ele enviou uma falsa índia para receber seu Oscar e deixou a platéia estupefata.

- Coppola acha estranho que, apesar de vários humanos serem mortos no "Chefão", a cena que gerou protestos foi a da cabeça do cavalo na cama do produtor. Coppola explica que eles não sacrificaram nenhum cavalo, mas que – não sei se a gente precisa saber disso – pegou a cabeça numa fábrica de ração para cães.

- Toda essa seqüência de como a máfia ajuda a carreira de um ator/cantor é inspirada na vida de Frank Sinatra, óbvio, mais especificamente em como ele obteve o papel em "A Um Passo da Eternidade", que reavivou sua carreira. E depois, em como ele fez shows nos cassinos para saldar sua dívida. Pobre Frankie.

- A clássica cena do batismo intercalada com assassinatos só funcionou depois de adicionarem a música de órgão. E o bebezinho é Sofia Coppola, filha do homem.

- Dizem que a busca pelos atores que fariam os filhos de Don Corleone correspondeu a uma busca por quatro Scarlett O'Haras. Al Pacino, James Caan e Robert Duvall foram todos indicados ao Oscar de coadjuvante. Este foi um dos triunfos de Coppola, que conta que, se dependesse do estúdio, "Chefão" traria Ernest Borgnine contracenando com Ryan O'Neal.

Ih, tem muito mais, mas por hoje é só, pessoal.

MELHORES MOMENTOS DAS MENSAGENS IRADAS

Vou compartilhar com os três fiéis leitores desta coluna os melhores momentos entre as mais de 90 mensagens que recebi de pessoas muito zangadas com a minha crítica a "O Senhor dos Anéis". Não acho justo guardar só pra mim estas pérolas da sabedoria humana. Resolvi excluir emails que começavam com "sua vadia" ou "vai se f****" (os asteriscos são meus, que sou educada). Respondi todas as mensagens sem me ofender. Algumas já estão nas mãos de autoridades competentes, sabe, pra futura investigação. Não, não, brincadeirinha. Estes nerds são totalmente inofensivos e não muito instruídos, como pode ser conferido nos trechos abaixo, que não foram corrigidos de propósito. Boa diversão. E não espalhe pras mães desses garotos que eles escrevem palavrões.


- Você escreveu uma crítica como quem escreve um bilhete em um papel higiênico...
- Leia a trilogia quando for assistir o próximo filme em janeiro. Ah, me lembrei! não vai dar para você ler porque você estará lendo "mil maneiras de enlouquecer um homem na cama".
- Acho a função critico/cronista de cinema uma praga da humanidade.
- Vc deve ser loira né.... já te avisaram que sucrilhos não é quebra-cabeça?
- Se tivesse lido ao menos o primeiro capitulo do livro, aposto que, como eu, choraria! E de emoção! Se a senhora não se excitou, talvez seja uma critica cinematograficamente frigida.
- De que planeta vc veio?? Lá não haviam flores, paisagens Neoholandesas, seu planeta era muito escuro, etc??!!! (Nota da autora: que eu me lembre, o filme se passa na Nova Zelândia).
- Se a humanidade dependesse da sua criatividade, estariamos lascando árvores com pedra e caminhando de quatro.
- Você sabe pq Legolas não afundou na neve? (Nota da autora: quem?! Tinha neve?)
- (Fico) atonica a estes tipos de comentários, nada construtivos!
- Eu realmente não consigo entender como você pode não ter gostado do filme. (páginas depois....) Puxa vida, depois de falar tanto está na hora de falar a grande verdade... eu ainda não vi o filme.

CRÍTICA: SENHOR DOS ANÉIS / Morte lenta aos hobbits

Uau! Sobrevivi ao “Senhor dos Anéis”! Não, não à trilogia, que ninguém é de ferro. Mas consegui assistir à primeira parte cochilando só um pouquinho. Não sou de pegar no sono no cinema. Agüento até as películas de época do James Ivory sem bocejar. Porém, considero uma façanha dormir apenas uns 15 minutos durante as quase três loooongas horas do “Senhor”. Gente, que porre! Suponho que os fãs de Tolkien me enviarão cartas com antraz, mas não vou me calar. Odiei o filme com todas as minhas forças.

Nunca li o clássico da literatura infanto-juvenil. Primeiro, porque o tema não me atrai. Duendes, elfos, anões, hobbits, smurfs, tô fora! Segundo, porque o título me remetia imediatamente a um outro clássico da minha adolescência, “O Senhor das Moscas”, que adoro. Mas entendo que os tais dos anéis tenham uma legião de seguidores. E é possível que, para eles, a versão cinematográfica seja mágica, fantástica, mítica, entre outros adjetivos que críticos jabazentos distribuem sem sentimento de culpa. No entanto, para mim, mera mortal, o filme não disse nada. Quer dizer, pareceu que a tela sussurrava “duuurma...”. E eu obedeci.

“Senhor” tem quatro categorias de seqüências: closes de anel, cenários deslumbrantes da Nova Zelândia, closes de nariz de ator, e lutas. Só. Minto. Às vezes, a câmera focaliza espadas também. Estas cenas vão se intercalando, formando um efeito hipnótico que leva o espectador menos iniciado no mundo de Tolkien ao sono profundo. Vi muita gente dormindo e se mexendo sem parar nas cadeiras. Ouvi inúmeros bocejos. Fiquei contente em perceber que estas não foram somente as três horas mais longas da minha vida. E pensar que o slogan da superprodução é “A lenda ganha vida”. Esses publicitários têm senso de humor, não se pode negar.

Ahn, a história? É o básico. Aquela ladainha do bem contra o mal. Em algum lugar na terra, em alguma época que lembra Idade Média, mas não é, foi cunhado um anel que dará forças sobrenaturais de domínio. Mais ou menos os poderes absolutos que o ministro Cavallo tinha pra afundar a Argentina. É como se o Bush, ou o Bin Laden, usasse um anel. Um hobbit (que é um ser menor que um anão, com pés peludos e orelhas pontudas, sem ser verde) precisa destruir o anel, levando-o a um vale amaldiçoado. Oito criaturas vão com ele, a confraria dos espadas, imagino. Eles enfrentam mostrengos diversos no caminho. Não se engane com o que estou escrevendo – a trama não é tão excitante assim, como parece no papel. A menos que você se entusiasme com enredos do tipo “Passolargo e Frodo Bolseiro encontram-se no Pônei Saltitante”.

E tudo no filme é tenebroso? Não, claro que não. Pra não dizer que não falei das flores, a paisagem neozelandesa é belíssima. Deve existir um vídeo da National Geographic mostrando as mesmas cenas, sem durar uma eternidade. Tem também os incríveis efeitos especiais. Pena que não dê pra vê-los, pois tudo está envolto num breu danado. Tudo bem que a trama se passe na Idade das Trevas, mas isso é ridículo. Agora, com 450 milhões de dólares, até eu crio efeitos de ponta! Aliás, os vilões meio símios que têm lá me lembraram as máscaras de “O Planeta dos Macacos”, só que com a maquiagem borrada. O que mais “Senhor dos Pastéis” traz de bom? Ah, a música. 95% do filme tem trilha sonora de fundo. Ela é horrenda, daquelas exageradamente melodramáticas, mas serviu pra embalar meu sono e cobrir meus roncos.

O hobbit interpretado pelo Elijah Wood é a cara da mediocridade. É hoje que serei linchada, mas convenhamos: o Frodo é froda. Aqui em Joinville tem Fritz e Frida, e ninguém faz um filme sobre eles. Há outros seres esquisitões no filme, nenhum com o qual possamos nos identificar. A vantagem é que ninguém fala muito, a não ser quando tem três flechas cravadas no peito. Aí, o sujeito desanda a tagarelar.

A trilogia custou US$ 450 mi e já está prontinha. A próxima parte, que se não me engano chama-se “As Duas Torres (Gêmeas?)”, virá no final do ano. Estou louca pra vê-la, lógico, mas infelizmente estarei ocupada. O maridão crê que boa parte da grana foi usada pra pagar os críticos. Como ele é injusto! Eu garanto que não recebi um centavo. Olha, depois de ver este tédio monumental, este trekkie medieval, vou precisar de um medicamento élfico. “Xuxa e os Duendes”, depois dessa, não tenho mais medo de ti!


Leia aqui as mensagens iradas de leitores revoltados.

CRÍTICA: 13 FANTASMAS / Visões do inferno

Este foi um fim de semana de muitos sustos. Susto 1: não estreou nada que prestasse. Sem chance que eu vá ver um filmeco com escorpião no título, estrelado por uma montanha que deve ser tão bom ator que leva o sugestivo nome de "A Rocha". Na publicidade, eles têm coragem de colocar "dos criadores de 'A Múmia'" pra servir de chamariz. Tô fora! Ainda na linha "vou dá porrada", chegou também um chinês com artes marciais. Chinês com lanternas vermelhas nunca passou na minha cidade, mas basta qualquer carinha fitar a câmera e dar gritinhos histéricos enquanto distribui golpes pra ganhar as salas daqui. Ai, ai. Depois tem leitor que me implora pra ver "Cidade dos Sonhos" pra ver se entendo alguma coisa. Eu gostaria. Mas sabe quando que um filme do Lynch estreará aqui? Nunca! Distribuidoras, provem que estou errada, pelamordedeus. Tá, susto 2: estas são as produções boas passando nos EUA. O mês de férias escolares deles só começa em maio. Por enquanto, com as crianças nas aulas, o cinemão manda filmes adultos como... "Escorpião-Rei", ou qualquer coisa que pica. Logo, na total falta de opção, fui prestigiar "Os 13 Fantasmas".

Este terror começa num ferro-velho de onde, aliás, nunca deveria ter saído. Rapidinho vai pra uma mansão modernex cheia de vidros com frases escritas em latim. Vai por mim: a história não importa. Quer dizer, há uma família composta por pai, filha adolescente, gurizinho e babá, que herda uma casa. Casa em filme de horror é mal-assombrada, então prepare-se pra um desfile de mostrengos mal-encarados. A vantagem é que eles entram mudos, saem calados, e não assustam nem uma mosca, mas desconfio que a intenção não era essa. Aí chega uma hora que uma mulher diz pro pai: "Esta casa não é uma casa. É uma máquina". Não, querida, é uma geringonça. E está em vias de expor o olho do inferno. Olha, seja lá o que for, não pode ser pior do que já está na tela.

A filha moça tem sorriso Colgate e o exibe nas horas mais impróprias. Até seus berros são calculados pra mostrar o máximo de dentes brancos. Não sei o nome da atriz. Imagino que deve ganhar uma grana preta na TV. Não adianta me mandar email dizendo que ela é famosa, porque não vou acreditar em você. E o menino que anda de patinete só pra provar que o diretor deste terror morto-vivo viu "O Iluminado"? Felizmente, ambos somem depressa. Os filhos já foram pra Seção de Achados e Perdidos e tem mais de uma hora que ninguém os menciona, quando o pai exclama: "Não paro de pensar neles". Ah, sim, deu pra notar.

Há também o mistério do fotograma perdido. Sinta o drama: um cara tá encurralado entre paredes de vidro, enquanto a babá, de óculos, o ensina a esquivar-se de um gasparzinho. De repente, corta pro cara lá fora e de óculos. Este, aliás, é o único momento existencial do filme: você preferiria ser retalhado usando óculos especiais para poder enxergar seu algoz ou sem ver nadica de nada? Não que "13 Plufts" levante esta hipótese. A produção alma-penada está mais empenhada em fazer com que a babá imite a Whoopi Goldberg em "Ghost". Há várias gracinhas, mas qual a probabilidade de uma pessoa correndo risco de vida afirmar: "Droga! Acabei de pintar as unhas!"? Numa afirmação engraçadinha, mas creio que involuntária, a Whoopi pergunta: "Isto é metade do advogado?".

Se eu soubesse latim, poderia jurar que uma das escrituras no vidro continha a palavra "otária". Ia tomar isso como uma ofensa pessoal quando decidi centrar toda minha atenção no Matthew Lillard. O rapaz é um dos vilões de "Pânico" e ele tem muitos dentes, mais ainda que a estrelinha da TV. Este jovem de olhos arregalados é hiperativo, grita, se descabela, e, pelo bem ou pelo mal, acaba roubando o filme. É mais histriônico que os efeitos especiais.

A VOLTA DO VELHO OSCAR

Anunciaram as indicações ao Oscar 2002 sem grandes surpresas nem enormes favoritos. Agora temos até o dia 24 de março para fazer todas as conjeturas possíveis e procurar assistir aos filmes. Tomara que eles estréiem aqui. A única chance de ver produções de qualidade, pelo menos em cidades do interior, é nesta época, quando as distribuidoras tentam capitalizar em cima da estatueta. Agora, é triste que a Academia enfrente seu segundo ano seguido de uma safra tão chinfrim. Responda rápido: quem levou o Oscar do ano passado? Lembra ainda de “Gladiador”? 2001 foi péssimo pro cinema americano. Além do atentado terrorista de 11 de setembro, houve a ameaça da greve de atores e roteiristas, que não aconteceu. Foi uma era truncada E, mesmo assim, recordes de bilheteria foram batidos. Só pra provar que qualidade e quantidade não caminham juntas... Olha, não quero parecer nostálgica, mas, só pra provocar, sabe quem foram os indicados ao Oscar de trinta anos atrás? “Laranja Mecânica” e “Conexão França”. Há duas décadas, tínhamos “Caçadores da Arca Perdida” e “Atlantic City”. Em 1941, concorriam Welles, Hitchcock, Ford, Hawks e Wyler. Foi quando “Cidadão Kane”, até hoje tido como o melhor filme da história, não ganhou.

E o que temos agora? “O Senhor dos Anéis”, com 13 nomeações, “Moulin Rouge” e “Uma Mente Brilhante”, com 8 cada. Não é preciso ser um gênio pra verificar a decadência da sétima arte. Deve ser por isso que, atualmente, ninguém em sã consciência se refere ao cinema como arte. Virou comércio, puro entretenimento, escapismo. Ainda não vi os outros dois indicados a melhor filme, “Assassinato em Gosford Park” e “Entre Quatro Paredes”. Espero que sejam um pouco mais dignos. Não perco a esperança.

Como funciona o Oscar? Assim: se você é indicado pra alguma coisa em algum momento da sua vida, você se torna um membro da Academia e ganha o direito de votar pra sempre. Se você não tem mais paciência pra ver os arrasa-quarteirões, tudo bem – seu filho ou sua mulher pode votar por você (perdão pelo machismo, mas a imensa maioria dos membros é homem). Ninguém ficará sabendo. Este caráter vitalício explica a alta média de idade dos eleitores e o gosto pelo conservadorismo. Nas indicações, cada categoria nomeia cinco filmes – ou seja, ator indica atores (e atrizes), maquiadores indicam maquiadores, etc. Quando a lista das nomeações fica pronta, aí vira um pega pra capar. Todo mundo vota em todo mundo. Bom, menos em filme estrangeiro, que tem regras mais rígidas. Neste caso, você deve provar que viu os filmes. Nos outros, você vai na onda.

Hoje existem uns 6 mil membros. E existe um lobby imenso também. Os estúdios enviam presentinhos e fitas de vídeo pros votantes, pra que eles não tenham que cumprir a desagradável missão de ir ao cinema. A Miramax é conhecida pelos seus métodos de persuasão. Por isso, deve estar decepcionada de não ter conseguido promover o francês “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain” para mais categorias. Tampouco colocou o italiano “O Quarto do Filho” e o brasileiro “Abril Despedaçado” na lista dos estrangeiros, o que é surpreendente. A comédia bósnia “Terra de Ninguém” levou o Globo de Ouro, mas o favorito absoluto na categoria é mesmo o francês. Vamos torcer pro argentino “O Filho da Noiva”?

Não vamos fingir, no entanto, que alguém liga pro Oscar de filme estrangeiro. Na categoria principal, “Uma Mente Brilhante” sai na frente por causa do Globo, mas “O Senhor dos Anéis” pode ser impulsionado pelas 13 indicações. A favor de “Senhor”, tem o fato de que ele custou milhões, de ser um épico, de ser baseado num clássico da literatura, e de não ter palavrões ou sexo, priorizando o lado “família” da Academia. Contra ele: o filme não termina, é infanto-juvenil demais, e grande parte de sua equipe é neozelandesa. E os votantes são americanos, lembre-se. “Mente” tem a vantagem de contar a vida sofrida de uma pessoa real. Parece mais oscarizável que “Senhor”. “Moulin Rouge” é outro épico, mas, por seu diretor não ter sido indicado, tem bem menos chances.

É possível que Russell Crowe leve seu segundo Oscar consecutivo. Este é um ano atípico: dois negros foram indicados (Will Smith e Denzel Washington). Sean Penn é aclamado pela associação de atores, e este ano interpreta alguém com problemas mentais. Ou seja, tá no páreo. Mas a força de “Mente” favorece o Russell. E atriz? 2001 foi todinho da Nicole Kidman. Ela ganhou manchetes ao se divorciar do Tom, e altos elogios por suas interpretações em “Os Outros” e “Moulin”. E é só conferir pra ver que a década premiou atrizes jovens (Julia, Gwyneth, Hillary). Ela tem que tomar cuidado com a veterana Judi Dench – que faz uma escritora com mal de Parkinson – e com a Sissy Spacek, que também ganhou o Globo de Ouro. Mas Nicole é favorita.

Quanto à direção, bom, admito que estou praticamente torcendo pelo Peter Jackson (de “Senhor”), que deve ter suportado meses de sofrimento e inúmeros emails de admiradores fanáticos do livro comentando cada detalhe das filmagens. Esta legião é gigantesca, e só perde, na internet, para o fã-clube de “Guerra nas Estrelas”. Coitado do Peter, tendo que convencer o pessoal de que John Huston não estaria em condições de interpretar o papel que foi parar com o Ian McKellen, por ter morrido há um tempão. Porém, é improvável que Peter vença. Ron Howard (de “Mente”) tem maiores chances. Ele é muito conhecido e admirado em Hollywood – já foi ator, produtor, diretor... Só faltou ser autor. Por isso, não será inusitado se Robert Altman receber a estatueta. Nos últimos três anos, o melhor filme não agraciou o melhor diretor. Altman é tido por muitos (não por mim) como o maior diretor americano vivo, e nunca recebeu um Oscar. Hitchcock, Kubrick e Welles tampouco, mas, no caso deles, está um pouco tarde pra corrigir a injustiça. Pode ser o jeito da Academia recordar seus anos dourados, aqueles que não voltam mais.


P.S.: Desculpe o estilo acadêmico. É que cansa escutar leitor que não entende nada de ironia dizer que não entendo nada de cinema.

O DOCE SABOR DAS FRAMBOESAS

Um dia antes da lista das indicações do Oscar, saiu a das Framboesas de Ouro, os populares Razzies, concedidas às piores produções do ano. Confesso que fiquei decepcionada com ela, por não ter visto quase nenhum dos filmes. Pensava que houvesse assistido a todas as bombas de 2001, mas não. Sempre há galinhas-mortas a me surpreender. Então, num esforço descomunal de preparação para este artigo, fui até a locadora e tentei alugar as películas nomeadas. Elas não existem. Acho que é por isso que os Razzies já não atraem a mesma atenção. Mas vou passar a lista pra que você tire suas próprias conclusões. Uma comédia acéfala chamada “Fora de Casa!”, veículo (só se for carro bomba) pro humorista Tom Green, recebeu oito indicações. “Alta Velocidade”, com o Stallone passando-se por piloto de corrida, tem sete. Assim como “Glitter”, primeiro (e último?) filme da popstar Mariah Carrey. “Pearl Harbor” está no páreo, e “Graceland”, com Kevin Costner, idem. Perdão, antes que eu receba email dizendo que algumas destas tragédias podem, sim, ser encontradas na locadora mais próxima, confesso que loquei “Alta Velocidade”. Viu o sacrifício que faço pelos meus leitores?

As Framboesas de Ouro comemoram 22 anos de tradição em apontar os piores. Não é uma associação de críticos, já que os Razzies são engraçados, e os críticos não têm graça. Hoje os Razzies contam com uns 500 membros que, numa noite de março, distribuirão os prêmios aos vencedores. Estes agraciados nunca aparecem mesmo, ô pessoalzinho ingrato. O problema é que os votantes adquiriram vícios ao longo do tempo. Eles têm seus preferidos. Por exemplo, o Stalla coleciona 29 nomeações em duas décadas. Foi eleito por eles como o pior ator do século. Uhm, pior que o Schwarzza? É difícil decidir. Só predileção pra explicar por que vivem incluindo John Travolta e Keanu Reeves. O Ben Affleck tudo bem, que ele merece. Madonna é outra queridinha desta academia: se ela dá um espirro, ganha uma indicação. Ano passado, como ela não fez nada, outra cantora virou favoritíssima na categoria pior atriz: Mariah. Tá com 93% dos votos. Não perde mais. O restante só enfeita a lista – Penelope Cruz, pelo conjunto da obra em 2001 (“Vanilla Sky”, “Profissão de Risco” e “Capitão Corelli”); Angelina Jolie (“Tomb Raider”); Jennifer Lopez e Charlize Theron.

A gente pode ver o senso de humor dos Razzies em categorias como “pior dupla”. No ano passado tinha o Schwarzza interpretando o papel principal e o coadjuvante em “Sexto Dia”, já que havia dois dele na tela. Foi uma experiência traumática pra você também? Desta vez, o mais cotado é “Tom Green e qualquer animal que ele abusa em ‘Fora de Casa’”. Aparentemente, há zoofilia no pedaço. Outro indicado pra pior dupla foi Ben, O Aflito e a moça que faz seu par romântico em “Pearl Harbor” OU Ben e seu coleguinha de guerra no mesmo filme, tanto faz. Pelo jeito, o Ben é o Cigano Igor deles. Quer mais uma gracinha das Framboesas? Pra pior dupla, ainda foi lembrado o decote da Mariah e o que se insinua por baixo dele, só pra esculhambar.

Os Razzies também oferecem um troféu pra pior refilmagem. Com a falta de criatividade de Hollywood, nunca faltam candidatos. Tem “Planeta dos Macacos”, “Jurassic Park 3”, “Pearl Harbor” (ou, como a atendente do cinema insistia em pronunciar, Pié), e “Doce Novembro”. O quinto nome fica por conta de “Crocodilo Dundee em Los Angeles”. Você sabia que esta desgraça existia? Eu não. E tenho quase certeza que poderia continuar vivendo numa boa sem saber.

Bom, se um dos seus filmes de cabeceira está nesta lista, e você fica furioso com esta gentalha que detesta arrasa-quarteirões como “Pié” e “Planeta dos Macacos”, calma. Em 1980, adivinha quem as Framboesas nomearam pra pior filme? “O Iluminado”, hoje um clássico absoluto do terror. Talvez um dia “Alta Velocidade” entre pra história do cinema. Nunca se sabe. Se até um épico meia-boca (“Senhor dos Anéis”) quebra o recorde de indicações pro Oscar, tudo pode acontecer.

CLÁSSICOS: CANTANDO NA CHUVA / Nada mais divino

É triste como certos gêneros de arte vivem seu apogeu e morrem. Hoje os musicais são renegados. Quais musicais recentes você lembra? Eu só me recordo de "South Park", "Evita" e "Moulin Rouge". Atualmente, gostar de musical virou sinônimo de apreciar cafonices. Pior ainda, homem gostar de musical é um atestado gay, como admirar a carreira da Barbra Streisand. Homem que é homem, a gente sabe, não assiste musical, não chora, não dança, não liga pra roupa... Ih, a lista é imensa. Lembra do Zeca Bordoada, figuraça do "TV Pirata"? Aquele sim era homem com h. Aposto que, enquanto Zeca coçava e arrotava, ele preferia curtir o tradicional cine-porrada a ver pessoas dançando.
Zeca era uma caricatura, uma paródia do machão. Mas hoje um conceituado apresentador pode declarar em off que "balé é coisa de viado" e tudo fica por isso mesmo. Pessoalmente, nunca associei falta de virilidade a homens de collant, uma roupa que ressalta partes instigantes da anatomia masculina. Mas tem quem pense assim. É uma pena que essa gente perca, por puro preconceito, gênios como Fred Astaire e Frank Sinatra cantando músicas de outros gênios como Cole Porter e Gershwin.
Ah, mas tem gente que odeia musicais não por medo de ser associado à cultura gay, e sim porque esse tipo de filme não costuma ter enredo. Musicais, afinal, só intercalam números de dança com historietas sem importância. Bom, pode-se argumentar que todos os filmes, sem exceção, contêm unicamente uma ou duas cenas memoráveis no meio do rolo, e a maioria nem isso. Ah, e tem quem tem ojeriza a musicais porque os personagens não falam, eles cantam, e isso não é real. Sim, claro, realidade a gente encontra no cinema de ação, com todas aquelas explosões mirabolantes... Finalmente, há os adolescentes, que detestam musicais pelo mesmo motivo que mantêm distância dos clássicos – é tudo velharia. Pois é, nada que nasceu antes de mim tem algum valor, de Shakespeare a Beatles. Deve ser tão cansativo reinventar a roda a cada nova geração...
Porém, pra quem tem a alma livre, pra quem gosta de entretenimento de verdade, não dá pra deixar passar em branco a comemoração dos 50 anos de "Cantando na Chuva". Esse clássico não é apenas o supra-sumo dos musicais, mas um dos filmes mais divertidos do cinema. Ele bate todos os recordes de cenas memoráveis. Não sei se você via o programa para cinéfilos "Cinemania", no começo da década de 90. Nele, Wilson Cunha reprisava seqüências marcantes de filmes marcantes. Acho que não houve um só episódio em que pelo menos uma cena de "Cantando" não era exibida.
Por ironia suprema do destino, em 1952 "Cantando" nem sequer foi indicado ao Oscar. Ganhou "O Maior Espetáculo da Terra". E eu que achava que o maior espetáculo da terra era ver o Gene Kelly sapateando... Ou mesmo o Donald O'Connor cantando "Make'em laugh" ("Faça-os rir"). Ou então Gene e Donald juntos tirando sarro dos professores de fonética. Ou a deliciosa interpretação de Jean Hagen como loira burra. Os espectadores da época provavelmente pensavam que o maior espetáculo era a Cyd Charisse. Até hoje ela detém o título das mais belas pernas da história do cinema. Claro que, pros padrões atuais, ela e todas as outras mulheres de "Cantando" seriam consideradas obesas e mandadas imediatamente pra um spa.
Opa! Tem quem só se lembre do Gene Kelly dançando encantadoramente no meio da chuva, com um sorriso no rosto. Ô memória curta, hein? "Cantando" é também um dos grandes exemplos de metalinguagem. Ele narra uma história fascinante: a passagem do cinema mudo para o falado, em 1927. Se você quer saber o choque que isso causou em Hollywood e como essa simples invenção destruiu carreiras, veja "Cantando". Se você quer saber como nossos antepassados (os dinossauros) se vestiam na década de 20, "Cantando" é uma ótima pedida. Se você quer só se entreter e se sentir bem no final da sessão, idem. "Cantando" é o tipo de arte que faz a humanidade sair-se melhor na foto, se é que você me entende.

sexta-feira, 29 de novembro de 2002

CRÍTICA: O ÚLTIMO SUSPEITO / Mui suspeito

Antes de mais nada, quero esclarecer que adoro o Robert De Niro, sempre aclamado como o melhor ator de sua geração, o que deve deixar o Al Pacino meio zangado. De Niro – Bob pros íntimos – esteve fabuloso em “O Poderoso Chefão 2” e em todos os filmes do Scorcese, de “Caminhos Perigosos” a “Cassino”, passando por “Taxi Driver” e “Touro Indomável”, lógico. De uns tempos pra cá, no entanto, Bob vem se especializando em comédias meia-boca como “Máfia no Divã”, onde ele só precisa fazer careta. Tudo bem, talvez a auto-paródia seja mesmo o destino dos grandes atores da década de 70. Isso depõe mais contra a atual safra cinematográfica do que contra o próprio astro. Mas não é triste que, até quando busca um papel sério, Bob vá parar num troço tipo “O Último Suspeito”?

No início de “Suspeito”, surgem umas legendas mostrando Long Beach, praia perto de Nova York, com cenas e músicas de outra época. Enquanto eu pensava “será que eles ficaram sem verba pra começar?”, o filme corta pra uma praia decadente, e logo vem uma briga mal-filmada em que um traficante é morto. O pimpolho-assassino-por-acidente é o filho de um policial interpretado pelo Bob. O pimpolho em si quem faz é um tal de James Franco, o melhor amigo de Peter Parker em “Homem-Aranha”. James não está mal como viciado em drogas, e admito que gostei mais dele ao descobrir que o ator não era o Jedi de “Ataque dos Clones”. Os dois devem ser irmãos gêmeos, mórbida semelhança.

Daí o personagem do Bob fala pra Frances McDormand (a maravilha de “Fargo”), a vizinha com quem ele transa mas evita compromisso: “Meu pai recebeu a pena de morte, eu batia na minha mulher e abandonei meu filho, e o guri agora é um viciado procurado por assassinato”. Isso que é inferno astral! A perplexa Frances pergunta, “Tem mais alguma coisa que você quer me dizer?”, e eu esperava que o Bob falasse, “Sim, eu só aceito declamar diálogos assim pelo dinheiro”. Na verdade, nem prestei atenção na resposta dele, já que o público tava rindo após essas revelações. Bom, como o filme é americano, você sabe que pai e filho que não se falam há 14 anos vão se reencontrar numa cena comovente. O filho estará, é claro, sendo perseguido por toda a força policial de NY, e o pai já terá brigado com seu chefe e deixado o distintivo na delegacia. Tudo é previsível. Desde o momento em que o conflito é exposto, você já sabe que o Bob vai se regenerar e que o filme vai indicar um vilão pra gente vibrar com a morte dele. E adivinha quem vai matá-lo? Ué, como você acha que pai e filho fazem as pazes? Nos EUA, família que mata unida permanece unida.

Antes que isso aconteça, Bob recebe broncas de todo mundo por ter abandonado o filho. Minha bronca preferida vem de uma moça que lhe rouba a carteira e larga o bebê pra sair e comprar drogas. Ela já chega pedindo 60 dólares pra pagar o táxi, e Bob lhe assegura que dinheiro não é problema. Tudo isso é fascinante, mas o que eu queria mesmo saber é se ainda há vaga pra policial em NY. Outra cena legal ocorre quando Bob busca um criminoso. Ele vai a um bar e grita, “Se aquele desgraçado maderfãquer quiser falar comigo, eu estarei no hotel tal”. E o cara, sabendo que o Bob é um tira, vai! Por que a polícia do Rio não adota essa prática? A gente tem tanto que aprender com os americanos...

Quem dirigiu esta joça foi Michael Caton-Jones, de “Rob Roy” e “O Despertar de um Homem”. O nome dele não parece comercial de cigarro? Michael Caton-Jones, um raro prazer. Ah, o título em inglês é “Cidade à Beira-mar”, mas o tradutor não gostou da referência a Long Beach e inventou um título nada a ver. Assista ao filme e você também sairá perguntando: que mané último suspeito é esse? O maridão tentou uma explicação. Ele disse que tem filmes que você vai ver apenas por confiar no ator. Falei que aí seria “O Último Insuspeito”, mas ele me ignorou. Continuou dizendo que o Al Pacino é outro que não faria filme ruim. Eu o lembrei que Al esteve em “O Novato”, e ele falou: “Então o Bob é o último mesmo”.

CRÍTICA: O PIANISTA / Na ponta dos dedos

Ok, eu admito. Dos cinco filmes indicados ao Oscar, “O Pianista” era, tirando o dos hobbits, claro, o que eu menos tinha vontade de assistir. A razão era simples – pô, mais um sobre o Holocausto?! Na realidade, não suporto mais produções sobre a Segunda Guerra desde a safra de 98 (“Resgate do Soldado Ryan”, “Além da Linha Vermelha”, e “A Vida é Bela” no mesmo ano é overdose), então fui ver “Pianista” sem muita vontade. E, surpresa! Este drama que concorre a sete estatuetas (e deve sair de mãos abanando, ou quase) é o melhor dos cinco. Ainda perde pra “Fale com Ela”, mas é um filmaço.

Em tamanho também: duas horas e meia. Porém, não há uma só cena sobrando em “Pianista”. Começa em 1939, expondo o duro cotidiano dos judeus na Polônia ocupada. No início, só há leis ridículas – um judeu não pode ir a praças públicas ou guardar mais que uma pequena quantia de dinheiro em casa. Logo vem a obrigação de usar a estrela de Davi pra se identificar, e o confinamento em guetos, e o extermínio nos campos de concentração, num crescendo de horror e irracionalidade. Convenhamos, o holocausto é mais que uma tragédia judaica. É um tema universal. Como qualquer genocídio, mostra bem que o ser humano é o mais cruel dos animais.

Mas o original de “O Pianista” é trazer o ponto de vista sem muita emoção de um personagem que não é heróico. O cara existiu de verdade. Szpilman, brilhantemente interpretado por Adrien Brody, foi um pianista polonês que teve sua família dizimada e sobreviveu à guerra. Como sobreviveu? Bom, quando ele ia ser enfiado num trem que o levaria pra Treblinka pra nunca mais voltar, um oficial judeu o mandou correr de lá. Aliás, isso de citar que havia soldados judeus a mando dos nazistas pra cometer maldades contra outros judeus já é tabu. Outra crítica pouco ouvida é a de que os banqueiros americanos, judeus, não se empenharam em fazer com que os EUA entrassem na guerra antes. Compare um depoimento desses com o papel do soldado americano no final de “A Vida é Bela”, e você verá que a intenção de “O Pianista” não é edificar ou levar às lágrimas.

Se bem que eu chorei um monte. Mas foi uma sensação diferente da que tive em “A Lista de Schindler”, quando me senti manipulada. Em “Pianista”, os terrores vão se acumulando. Minha primeira válvula de escape foi acionada ao ver uma moça receber um tiro na cabeça por perguntar a um oficial, “Aonde vão nos levar agora?”. Já o maridão se rendeu quando o protagonista pula um muro e encontra Varsóvia completamente destruída, um esqueleto de cidade. Mas o pranto imenso, magnânimo, veio pra mim na cena em que um nazista pede ao pianista que toque. Juro que nunca me emocionei tanto com um piano. Todas as pausas, todos os cortes, todos os closes estão em perfeita sintonia com os sentimentos dos personagens. E, ao mesmo tempo, o tom é frio, meio distante até.

Polanski é um mestre, e a cena desse encontro entre algoz e vítima, de salvação através da arte, ilustra isso (e é audaz também, já que ele entrega o papel mais cativante pra um oficial nazista, mas isso “Schindler” já fez). Uma palavrinha ou duas sobre o diretor. Eu adoro Polanski. Adoro “Repulsa ao Sexo”, adoro “O Bebê de Rosemary”, adoro “Chinatown” (eu e o resto do mundo). O fato de “Pianista” ser seu primeiro grande filme em, sei lá, três décadas, não tira seus méritos. O fato de Polanski ser um judeu polonês que viveu nos guetos de Varsóvia, ou de que foi usado pra brincar de tiro ao alvo por nazistas quando criança, ou de que teve sua mãe morta num campo de concentração, não faz dele um diretor melhor ou pior. Tampouco importa se, mais tarde, Polanski passou por outra tragédia – o assassinato de sua mulher, Sharon Tate, por discípulos de Charles Manson. E é relevante que o diretor tenha queda por menininhas e que esteja proibido de entrar nos EUA? Acho que não. Quem vai julgar Polanski mesmo, mesmo é a história do cinema. Se o baixinho faz grandes filmes, ele é um grande diretor. Simples.

CRÍTICA: POR UM FIO / Desculpe, é engano

Imagina a cena: você tá lendo isto aqui. O telefone toca e uma voz diz que, se você parar de ler, receberá um tiro que te matará na hora. O que você faz? Você mede os prós e os contras e decide que, se continuar lendo, a dor pode ser maior. Um tiro é mais rápido: morte instantânea. É mais ou menos essa a trama de “Por um Fio”, só que não tem nada a ver com leitura. É sobre um cara que atende uma ligação numa cabine telefônica, e alguém imitando o Hannibal Lecter lhe dá instruções. Ih, mas vou começar pelo começo. Ou seja, pelo título. “Por um Fio” é um nome clichê que define bem a relação filme-espectador e cai como uma luva pra 90% das produções hollywoodianas atuais (os outros 10% poderiam chamar-se “Paciência Tem Limites” e “Eu Não Agüento Mais!”), mas o título original é muito pior. Traduzido pro português, seria “Cabine Telefônica”. Olha, um filme iraniano se chamar “O Chaveiro” ou “O Bode” eu até entendo. É o tipo de cinema que eles fazem (e eu gosto). Agora, um título descritivo desses nos States é pura preguiça. O que virá a seguir, “Batedeira Elétrica”? Desculpe o preconceito, mas não consigo fantasiar o seguinte diálogo: “O que você tá indo assistir?”. O outro responde: “Cabine Telefônica”. E o primeirão: “Oba! Posso ir junto?!”.

O carinha que fica preso na cabine não é um qualquer. É o Colin Farrell, que esteve em “Demolidor” e “O Novato”. Ele é bom, mas minha preocupação é: todos os filmes daqui pra frente serão com ele? O Colin faz um agente ou empresário, não sei a diferença, que tem um celular, mas se mete numa cabine telefônica pra fazer uma ligação pra uma paquera. E o tal psicopata (voz do Kiefer Sutherland) imitando o Hannibal liga, diz que está apontando um rifle pra ele e que, se ele desligar, é um homem morto. O que o Colin precisa fazer pra se safar? Contar a verdade pra amante e pra esposa, humilhar-se em público e tornar-se uma pessoa íntegra. No fundo, no fundo, quais são os pecados dele? Ele é um chato arrogante, ele mente (Uau! Agente mente?! Depois dizem que não se aprende nada no cinema), e ele NÃO traiu a esposa – que aí seria caso pra pena de morte mesmo – mas PENSOU em traí-la. Vejamos: eu já pensei em trair o maridão? Não, acho que hoje ainda não. Mas vou parar de ser sarcástica porque, de repente, eu entro numa cabine e o Hannibal, digo, o Kiefer, liga me ameaçando. Pode acontecer com qualquer um.

Lógico que este suspense de Joel Schumacher (que não, não é o irmão menos esperto do Michael, e sim o diretor dos dois piores “Batman”) não é só isso. Prostitutas histéricas querem ocupar a cabine (elas gritam, o que me fez torcer pra que o atirador usasse seu rifle), e o Forest Whitaker entra na jogada como o detetive mais carente do mundo. A polícia do filme, por sinal, é um monumento à incompetência. Há um atirador de elite à solta, certo? Aí um homem passa com um baita de um estojo de couro, e a polícia nem pra perguntar se ele tá carregando um violoncelo ou uma bazuca?! Como o suspense não se segura, eu fiquei imaginando maneiras do filme ser melhor. Por exemplo, o atirador ameaça liquidar um rapaz se ele não ligar pra namorada, conforme prometido. Ou, sei lá, o cara que invade a cabine só aceita sair dela com a negociação do Alckmin. Ah, e se fosse um terror com a cabine telefônica como protagonista? Cansada de ter sido vandalizada 40 vezes nos últimos seis meses, a Diabólica Cabine decide mastigar o próximo mané que rabiscar “se chifre fosse flor, sua cabeça seria um jardim”. Também fiquei lembrando dos áureos tempos das cabines telefônicas no cinema. Pensei em “Os Pássaros”, no Super-Homem trocando de roupa... Não é à toa que o roteirista teve a idéia de “Por um Trim” vinte anos atrás. De fato, o filme já começa datado. A cabine do título é a última de Manhattan, e Colin será o último a usá-la. Pois é, sei que é um momento histórico, mas eu preciso acompanhar TODA a gloriosa história americana? A vantagem é que o filme tem 82 minutos, é curtinho. Principalmente das idéias.

CRÍTICA: O CRIME DO PADRE AMARO / Crimes e pecados

Não sei se você já viu um jornalzinho publicado pela Igreja Universal do Reino de Deus, que tem uma das maiores tiragens do país. Eu já o li umas duas vezes. Uma matéria falava dos padres pedófilos nos EUA, outra das taxas abusivas cobradas pela Igreja Católica para um casamento. Bom, “O Crime do Padre Amaro” deve ser o filme de cabeceira do Bispo Macedo. Tirando pedofilia, todos os podres da Madre Igreja estão expostos no drama mexicano dirigido por Carlos Carrera.

O romance de Eça de Queirós, escrito em 1875, é um velho conhecido dos vestibulandos. É também um belo livro, que se posiciona contra o celibato imposto aos padres e expõe a paixão que um jovem pároco sente por uma moça. Só que, no romance, uma das idéias mais fortes está no prazer que o padre tem em dominar sua amada. Ele, que passou toda sua vida baixando a cabeça e cumprindo ordens, pode controlar alguém pela primeira vez. No filme, esse contexto desaparece completamente. Ademais, no livro, a moça é corroída pela culpa, tem pesadelos, visões, imagina que arderá no fogo do inferno. Na versão cinematográfica, ela é bem mais nova e sem a menor consciência.

O filme transpõe a ação de Portugal do século XIX para o México do século XXI. É uma decisão acertada, eu acho, pois mostra que nada mudou na Igreja em 130 anos. Claro que o drama incorpora fatos novos, como os conluios com o narcotráfico e a influência da Teologia da Libertação – o único padre com real vocação pra coisa pertence a essa vertente. Mas os antigos dogmas continuam: nem uma palavrinha sobre métodos anticoncepcionais, por exemplo. O que, convenhamos, faz com que mulheres que tenham casos com padres engravidem com certa facilidade, né?

É normal que a gente ainda esteja meio sentida com o drama mexicano porque foi ele, provavelmente, que tirou “Cidade de Deus” da disputa do Oscar pra Melhor Filme Estrangeiro. E é até ridículo comparar as inovações de “Cidade” com a banalidade de “Crime”. No quesito Críticas à Religião, o britânico “O Padre”, de 94, é superior, só pra citar um caso. Mas “Crime” é bem feito, tem ótimas atuações, e não demoniza seus personagens. Só que também é ultra-convencional e, por isso, não é memorável. Não traz nada de novo pro front da guerra santa. Putz, a Igreja é corrupta? Ohhh, existe fornicação entre os homens santos? Vai dizer que alguém ainda não sabia disso? Se esses escândalos não eram novidade em 1875, imagina agora. Mas a Igreja Mexicana lançou campanha contra o filme e, talvez por causa disso, ele se transformou na maior bilheteria da história do país. Gael García Bernal, que faz o Padre Amaro e já era um ator quente, de repente foi alçado a ícone nacional. Porém, não dá pra ver “Crime” como um legítimo representante do novo cinema mexicano. Embora não seja melodramático, “Crime” está mais pra novelão do que pra vibração de “Amores Brutos” e “E Sua Mãe Também” – ambos, aliás, com Bernal no elenco. Pessoalmente, gosto muito do cinema mexicano. O que não gosto é que quase todos os atores têm três nomes.

Tal qual o livro, “Crime” é contra o celibato (se bem que não seja exatamente anti-clerical). Mas, apesar de todas as críticas, esta tradição da Igreja não vai cair tão cedo. Por que os padres não podem casar? Simples. Porque, com o matrimônio, vem também os herdeiros, os divórcios, as pensões... E a Igreja não quer repartir seu polpudo patrimônio com ninguém. Nem imagino como fazem outras religiões que aceitam o casamento de seus sacerdotes. Mesmo assim, eu nutro simpatia pelo catolicismo porque é a religião que menos se leva a sério. Pode ser que o Papa não concorde comigo, mas que outra crença tem fiéis tão pouco fiéis? Os católicos são os únicos que não se consideram o povo escolhido. Isso os torna menos bélicos, pelo menos hoje em dia. E quer saber o que mais: a religião que nunca pecou que atire a primeira pedra.