Fortaleza como é hoje, exceto sem preferencial para obesos
Na última quarta, a Câmara Municipal de Fortaleza aprovou o projeto de lei 0097/2014, do vereador Carlos Dutra (Pros). O projeto diz que todos os assentos de ônibus e vans na cidade devem ser preferenciais para mulheres, idosos, obesos e pessoas com deficiência.
Se o projeto for sancionado pelo prefeito, as empresas terão um mês para, logo na entrada do ônibus, colocando uma placa avisando que todos os assentos são destinados, de preferência, para esses grupos.
Como vocês podem ver, é uma medida pra lá de polêmica. O vereador autor do projeto diz que o caráter é educacional, e que a intenção é coibir abusos sexuais dentro dos coletivos.
Carlos Mazza, repórter do jornal O Povo, me procurou para uma entrevista, que republico aqui.
1) A reserva de assentos de coletivos para mulheres é uma forma adequada de combater abusos sexuais nos ônibus e vans? Caso sim; por quê? Caso não; que medidas seriam mais adequadas?
Eu: Não tenho opinião formada sobre isso. A questão de, por exemplo, vagões e ônibus especiais para mulheres, é polêmica entre as feministas. A maior parte dos coletivos feministas são contra, porque não são a favor da segregação. Além do mais, em lugares onde há vagões exclusivos, como nos trens do Rio de Janeiro, a lei não é respeitada.
Quanto aos assentos preferenciais, creio que uma medida mais adequada seria fazer campanhas institucionais, com a colaboração da grande mídia, principalmente das redes de TV, contra os abusos sexuais. Muita gente ainda não sabe que esses abusos são crimes. Seria interessante ter uma campanha explicando isso, encorajando as mulheres a denunciar e a reagir, pedindo a colaboração da população em geral para coibir isso.
O objetivo seria conscientizar as pessoas que esse tipo de comportamento é totalmente inaceitável socialmente. Também seria interessante que houvesse treinamento de motoristas e cobradores para que eles soubessem como agir quando um abuso é detectado. Porém, sem a melhoria do transporte público de modo geral, a situação não mudará a contento. É fácil abusar num ônibus lotado.
Sem falar que com as leis de hoje já há muita gente que não respeita. Uma pesquisa da revista Pais e Filhos mostrou que 61% das mulheres entrevistadas ficam em pé no ônibus, porque ninguém cede lugar. Apenas 27% disseram ter a sorte de encontrar um lugar para sentar do início ao fim da gravidez. 24% das pessoas fingem dormir para não ceder lugar às grávidas.
Não há dúvida que o abuso sexual é uma constante no transporte público, e algo traumático para milhares de mulheres todos os dias. Mas não sei se reservar assentos é a solução. Há mulheres que são abusadas mesmo sentadas, com homens que se esfregam (e até ejaculam) nelas. E também não sei como fica a questão do assento preferencial. Se uma pessoa com deficiência quiser sentar num assento ocupado por uma mulher, a mulher deve ceder, certo?
Certamente uma mulher grávida precisa muito mais do assento que uma mulher não grávida. Um idoso deve ter prioridade sobre uma mulher sem deficiências. Essas prioridades estão previstas no projeto? É estranho também um projeto que não prevê sanções.
2) Você, como autora de um blog feminista de grande visibilidade, costuma receber reclamações ou denúncias sobre este assunto, de assédios em coletivos? Por que esses casos acabam sendo tão comuns?
Eu: Sim, muitos. Casos de abuso são muito comuns, se bem que, desde que comecei o blog, em 2008, fiquei sabendo de um tipo de abuso que sequer imaginava: abuso sexual de meninas e mulheres que dormem em longas viagens de ônibus, como em viagens intermunicipais.e interestaduais. E acordam com um homem que as bolina ou que está se masturbando do lado delas.
Não sei por que casos de abuso são tão comuns. Acho que é porque a impunidade reina. Ainda há uma aceitação social grande acerca disso, ainda é tratado como piada -- é só ver o quadro do programa humorístico Zorra Total, que há anos mostra duas amigas num metrô, uma delas dizendo pra outra "aproveitar" por estar sendo encoxada, já que é uma oportunidade pra ela.
Também acho que as mulheres deveriam reagir mais. Sei que a primeira reação é se culpar e ficar com vergonha, mas é preciso criar um ambiente de solidariedade feminina. A esmagadora maioria das mulheres já passou por isso, então por que se calar? Tem que botar a boca no trombone!
Eu gostei que um coletivo feminista fez um ato numa estação de metrô de SP por causa da onda de "encoxadores", e distribuiu apitos para as mulheres. A ideia é ótima: é que todas as mulheres comecem a apitar quando houver um abusador num ônibus.
3) Nas redes sociais, muita gente comenta que a lei pode ter “efeito inverso”, gerando mais atitudes de preconceito contra usuárias de transporte público. Você concorda com essa opinião?
Eu: Não concordo. Essa "ameaça" do efeito inverso sempre é feita quando se tenta corrigir alguma injustiça. Na questão das cotas raciais para ingresso nas universidades públicas, por exemplo, falou-se muito em "efeito inverso", que as cotas gerariam ainda mais racismo, e não foi isso que aconteceu. Qual seria o efeito inverso no caso dos assentos preferenciais para mulheres? Alguns homens passariam a abusar ainda mais delas? Não creio.
O que pode acontecer é que a lei não seja respeitada. De todo modo, acho que há uma falta de campanhas de conscientização sobre diversos assuntos, entre eles como se comportar no transporte público. Aqui em Fortaleza há o costume de se oferecer para segurar as bolsas ou pacotes de quem está em pé ao seu lado? Eu não sei porque não pego muito ônibus. Tenho o privilégio de poder ir andando pro trabalho.
Como eu demorei pra responder, Carlos teve que publicar a matéria sem as minhas respostas. Depois ele editou e incluiu parte do que falei.
Não fiquei satisfeita com as minhas respostas, então perguntei à ativista Ana Eufrázio como os coletivos aqui de Fortaleza têm se posicionado sobre o assunto, e ela respondeu:
"A tendência dos coletivos é de achar que a medida é uma espécie de machismo. No entanto, ainda não há nada fechado com relação a isso. As meninas questionam a medida porque acham que isso não se tornará fator impeditivo ao assédio. Além disso, o pessoal está dizendo coisas como 'é como se eles colocassem a mulher como deficiente", "mas na real a medida não vai evitar o assédio, os caras se esfregam nos nossos braços, não acho que assim resolva alguma coisa mesmo, só faz reforçar o estereótipo da mulher que precisa ser cuidada, por ser frágil', 'tal atitude não evita e tampouco diminui abuso e/ou assédio sexual, pelo contrário, gera um forte recorte de gênero. É muita conversa pra boi dormir achar que essa atitude irá combater opressões no transporte coletivo', 'O que eles precisam entender é que queremos direitos iguais e não uma palhaçada dessas'."
Ana continua: "minha opinião a respeito é que esse projeto é um desserviço ao movimento feminista. Cria privilégios para a mulher e reacende a discussão sobre as diferenças entre os gêneros (tipo fragilidade, protecionismo, incapacidade de se defender sozinha). O que ocorre é que o setor de transporte não quer resolver o problema das lotações nos transportes públicos e através dessa manobra tenta resolver um problema cultural.
"Uma manobra como essa não resolve o problema do assédio no transporte público, até mesmo porque sabemos que a medida não vai provocar uma mudança cultural desse porte. Acho que os homens não vão se sentir obrigados a ceder os assentos para as mulheres, nem se sentirão constrangidos de se masturbarem ou se exibirem para nós.
"Esse tratamento desigual abre margem para outras medidas que, de repente, a partir da construção desses estereótipos, podem provocar a cassação de direitos femininos (como por exemplo a inserção ou participação feminina na construção civil), ou a acirrar a briga entre os sexos. A questão pode ser usada como um privilégio feminino em detrimento aos direitos masculinos."
Como vocês veem, não há qualquer tipo de consenso. É preciso discutir muito mais o assunto. E eu insisto na necessidade de conscientização e educação. É preciso mudar a cultura.