Ligia Moreiras Sena, Ana Lucia Keunecke, Carolina Pombo e Raquel Marques escreveram este lindo texto defendendo o que deveria ser bastante óbvio: que existem inúmeras pautas feministas, e que a maternidade, o parto humanizado, a violência obstétrica, estão entre elas.
O texto que elas escreveram é bem mais longo, e você pode lê-lo aqui. Gostaria que o post não fosse visto como um grito de oposição ou de polarização, e sim como um chamado à luta coletiva. À mais uma luta feminista.
Recentemente, um grupo de mulheres fundou a Artemis, organização não governamental que tem entre seus objetivos a erradicação da violência obstétrica no Brasil. A Artemis tem promovido atuação efetiva, com presença decisiva no Fórum Mundial de Direitos Humanos e junto à Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
No início do mês de dezembro, por ocasião do IV Ciclo de Conferências da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, as ativistas deste grupo foram duramente atacadas, não virtualmente mas presencialmente, por pessoas que afirmavam não ser a maternidade uma causa feminista. A Conferência é um espaço da sociedade civil, onde todas as 90 propostas apresentadas devem ser de extrema importância para a sociedade em geral e para o Estado de São Paulo.
Ali estavam propostas importantíssimas para a questão da mulher: funcionamento das delegacias da mulher 24 hs/dia, inclusive finais de semana; acolhimento de mães puérperas em situação de rua; criação de casas de passagem e abrigo especializado para mulher em situação de violência; criação de Juizados Especializados em Violência Doméstica; proteção à identidade de gênero; campanhas pela legalização do aborto; atuação na questão da violência obstétrica, entre outras de igual importância.
É facilmente perceptível a grande relevância de todas as propostas, as quais, certamente, estão dentro do escopo dos movimentos feministas. E a inserção da violência obstétrica como mais um tema a ser trabalhado e a ser combatido na sociedade é prioritário num contexto do Poder Judiciário onde pouco ou quase nada tem sido feito sobre o assunto.
Após a defesa da proposta, duas delegadas de movimentos feministas da capital paulista se manifestaram contrariamente à inserção da violência obstétrica como violência contra a mulher: uma sugerindo que a questão da maternidade não agrega o feminismo, já que a maternidade, segundo ela, seria “uma forma de controle do patriarcado sobre o corpo da mulher”, e outra sugerindo que as delegadas deveriam votar em questões sérias e não em “questões que ainda estão no imaginário e não acontecem de fato”.
Tais manifestações de negação da violência obstétrica como causa feminista nos causaram perplexidade. Não apenas pelo caráter discriminatório para com milhares de brasileiras que estão sendo violentadas durante o nascimento de seus filhos, como também pelo desconhecimento e desatualização de ambas as delegadas a respeito do tema.
Não é possível ignorar dados de pesquisas brasileiras realizados nos últimos três anos e amplamente divulgados nos cenários científico e midiático brasileiros, os quais já mostraram a toda sociedade civil a gravidade da questão. Muito menos desmerecer a violência sofrida por uma a cada quatro mulheres que dão à luz no Brasil, atribuindo a essa violência caráter de “invenção”, de “imaginário”, ignorando mulheres e suas dores.
Não sabemos se nesse contexto ou fora dele, alguns dias depois foi publicado no coletivo Blogueiras Feministas o texto “O ativismo materno para além do parto”.
Ao começarmos a leitura do referido texto, sentimos algo como o que sentimos quando ouvimos alguém dizer: “Não sou racista, mas...” ou “Não sou machista, mas...”, ou “Acho que mulheres têm direitos, mas...”, à semelhança do cartoon ao lado. O “mas” que veio em seguida foi muito parecido com os “mas” mencionados anteriormente e o tom do texto se assemelhou em muito ao ataque sofrido pelas ativistas da Artemis em função do suposto não pertencimento da maternidade à pauta feminista.
O texto “O ativismo materno para além do parto” foi explicitamente direcionado a um blog, o Mulheres Empoderadas. Arriscamos dizer que 90% das mulheres que curtem e “fazem” a página Mulheres Empoderadas não se intitulam empoderadas porque defendem e vivem a autonomia da mulher para parir de cócoras, na piscina, sem intervenções ou porque amamentam seus filhos no peito por tantos anos. Intitulam-se assim porque venceram muitas lutas pessoais -- e coletivas -- para conseguirem fazer isso, lembrando que tudo isso aí representa grandessíssimas exceções no Brasil.
O texto tem razão quando diz que mulher empoderada vai muito, mas muito além de parir. E é exatamente isso que queremos dizer aqui: essas mulheres não podem ser resumidas a um corpo que pariu, mas a mulheres que, sim, venceram um sistema violento e degradante. São mulheres que travaram grandes lutas para conseguirem parir do jeito que queriam e amamentar. Muitas delas foram demitidas por incompatibilidade entre a bombinha de extrair leite e o cartão-ponto. Então não, não são empoderadas porque paririam assim ou assado ou deram o peito, mas por terem enfrentado um modelo cruel, machista e patriarcal para fazer isso. E muitas vezes enfrentaram e desafiaram a si próprias, gente que nunca pensou que fosse capaz de dar conta desse tipo de enfrentamento.
E se, à semelhança dos exemplos citados no texto mencionado, houvesse um blog chamado MULHERES EMPODERADAS escrito por mulheres que escolheram não ser mães? E se houvesse um blog chamado MULHERES EMPODERADAS escrito por mulheres que nasceram com pênis? E se houvesse um blog chamado MULHERES EMPODERADAS escrito por quem nasceu com ovários e vagina mas não se reconhece como mulher? E se houvesse um blog chamado MULHERES EMPODERADAS escrito por mães de plantas, mães de gatos, mães de projetos? Faria mais sentido? Seriam empoderamentos mais bem vistos no contexto do “feminismo”? Essa crítica ao uso do “empoderadas” ainda seria feita? Sejamos sinceras: não seria.
Mulheres mães brasileiras vivem em péssimas condições. Pelos rankings internacionais, feitos por diferentes instituições de pesquisa, como a Save the Children, o Brasil tem péssimo desempenho no que se trata do bem estar materno. Enquanto Cuba aparece com a melhor posição da América Latina, em 33o lugar, nosso país permanece na 78a posição, atrás da Ucrânia (país mais pobre da Europa) e da África do Sul.
Mas o que os rankings não mostram é que os melhores desempenhos, medidos por variáveis como saúde gestacional, mortalidade materna e infantil, renda, emprego, educação, dentre outras, foram construídos ao longo do tempo, principalmente por políticas públicas focadas no bem estar das mães, pais e crianças. A Suécia, por exemplo, que figura há muito tempo entre a primeira e a segunda posição em diferentes rankings como esse, construiu políticas sociais focadas nas famílias, sob influência de um feminismo forte e preocupado com as condições de vida das mães -- casadas ou não.
Uma das medidas mais antigas e importantes nesse país foi o financiamento de creches acessíveis e de qualidade para as crianças de famílias monoparentais. Sabendo que em 90% dessas famílias quem se responsabilizava pelo sustento e cuidado das crianças eram as mulheres, os movimentos feministas do início do século 20 já cobravam medidas especiais para acolhê-las. Com o tempo e o aumento da consciência da desigualdade de gênero nas famílias e no mercado de trabalho, e com a preocupação crescente com os direitos das crianças, a Suécia desenvolveu um sistema de pré-natal totalmente baseado na prática das enfermeiras obstetras, doulas e casas de parto, concomitante a uma política de licença parental remunerada de até 13 meses, a ser desfrutada por homens e mulheres, e que assim contribui para uma das melhores taxas de amamentação da Europa.
Em nosso país, parece ainda pairar uma ideia majoritária de que maternidade e paternidade são assuntos da vida privada, que nada têm a ver com movimentos sociais e políticas públicas. Esse abismo de políticas para as famílias acaba reforçando também a reprodução da desigualdade econômica e racial entre as mulheres. Sem garantia de vagas em boas creches, e sem licenças parentais razoáveis, a mão de obra de outras mães, pobres e geralmente negras e/ou migrantes, é explorada pelas famílias de classe média. Essas trabalhadoras ainda não têm seus direitos trabalhistas respeitados, na maior parte dos casos, e não encontram apoio público para o cuidado com suas próprias crianças.
Ao contrário do que parecem achar outras pessoas, não temos visto um culto exacerbado ao lugar da “mulher mãe” como sinônimo daquela que larga tudo para cuidar dos filhos em tempo integral. O que temos visto, isso sim, são milhares de mulheres em luta constante para satisfazer simultaneamente seu próprio desejo de cuidar de suas crias de perto e a necessidade de subsistência, o desejo de seu patrão de produzir, ou o próprio desejo de ter uma vida profissional ativa.
O que há é uma pluralidade de vozes e, entre tais vozes, há as das que decidem se dedicar exclusivamente ao cuidado com os filhos -- embora esteja muito longe de ser majoritário. A grande maioria das mães precisa contratar creches para poder trabalhar, e são poucas as que continuam a tirar leite do peito para amamentar. Ou vamos cair no erro de achar que os poucos gritos de “VAMOS VOLTAR PARA CASA!” que ouvimos nas redes sociais representam a maioria das brasileiras? O que algumas feministas têm chamado de privilégio representa também uma conquista árdua, a partir de tomada de consciência e desejo de mudança sobre as condições gerais de maternagem em nosso país.
Uma das críticas de alguns grupos à inclusão da maternidade como questão feminista é o fato de que isso reforçaria o estereótipo de que as mulheres são as únicas responsáveis pelos cuidados com as crianças. Não querer reforçar a ideia comum de que os cuidados com a criança é algo natural na mulher é diferente de negar que não apenas a maternidade, mas todas as funções de cuidados, são executadas majoritariamente por mulheres. Ao afastar isso das frentes de debates feministas perdemos a oportunidade de não apenas desnaturalizar estas associações, mas também de exigir políticas públicas que liberem a mulher de tal condição.
Como falar em cuidados compartilhados entre os pais se a licença paternidade é de apenas cinco dias enquanto a licença maternidade é de quatro a seis meses? A não criação de vínculo parental pelo pai da mesma forma como acontece com a mãe, pela ausência de tempo dedicado, leva a nefastas consequências, como o acúmulo de tarefas pela mãe que também trabalha fora de casa. Esse é um exemplo sobre como agregar questões de maternidade ao debate feminista, a fim de pleitear causas como aumento da licença paternidade, resultam em melhoria de condições para as mulheres, em especial maior possibilidade de escolhas em suas vidas.
O parto humanizado no Brasil, atualmente, está mesmo limitado a um recorte de mulheres da classe média. Fato. O que significa que todas as demais, financeiramente abaixo, estão atualmente fora dele -– com exceções como as que têm acesso ao Sofia Feldman (MG – SUS) ou ao Elpídio de Almeida (PB – SUS), ou a parteiras tradicionais nos confins do Brasil e outras poucas. E por conta disso, as mulheres da classe média que estão parindo dignamente são muitas vezes ridicularizadas ou chamadas de alienadas, umbiguistas, egotripistas, etc etc.
Porém, são essas mesmas mulheres da classe média que estão organizadas para lutar pelos direitos de todas por um parto sem violência e sem mutilação. É uma das poucas vezes que o Brasil vê uma mobilização da classe média espirrando na assistência básica à saúde, no SUS, na legislação.
Essas mulheres estão organizadas e estão se organizando -– vide a ONG mencionada no início do texto e outros tantos exemplos -- para que a mudança de cenário favoreça as mulheres brasileiras universalmente e se torne uma opção acessível independentemente de classe social ou qualquer privilégio ou sorte.
Sim, o feminismo é muito mais, muito mais mesmo. É autonomia para além de ser mãe.
Mas TAMBÉM para ser uma.