Está sendo consolidado no Senado um processo que rompe com os requisitos mínimos da democracia (uma presidenta eleita pelo voto é deposta, sem crime de responsabilidade) e que limpa o caminho para a derrocada dos direitos sociais construídos nos marcos da Constituição de 1988.
A Constituição não estabeleceu garantias que superassem o peso relativo do poder econômico, nem da influência direta de elites políticas locais que têm sua condição de reprodução nas desigualdades socioeconômicas, no controle sobre os meios de comunicação, na baixa porosidade das instituições à participação popular e no acesso restrito da maior parte da população à educação.
Estamos vivenciando as rachaduras de um sistema político no qual a fragilidade da democracia ficou claramente exposta. A acomodação entre um regime democrático e a concentração da influência e do controle sobre os recursos públicos nas mãos de poucos cobra seu preço no momento em que os que sempre tiveram maior acesso ao Estado consideram que as regras do jogo não são suficientes para a manutenção das suas vantagens.
A carta constitucional, que encarna o estado das disputas políticas no momento da transição do regime ditatorial de 1964 para o regime democrático nos anos 1980, foi uma espécie de ajuste no terreno em que as disputas dos anos seguintes se dariam. Foi esse o terreno em que conseguimos alguns avanços (no direito à saúde e à educação, nos direitos das mulheres e das trabalhadoras, para lembrar de alguns), foi esse também o terreno em que se revelou sistematicamente o teto de vidro de várias lutas pela afirmação de direitos de grupos e pela democratização efetiva do poder político.
O golpe pode ser lido como um processo de estreitamento no terreno das lutas dos últimos 28 anos. Tanto no plano da institucionalidade democrática em seu sentido eleitoral mais restrito, quando no das garantias para indivíduos e grupos, teremos que lutar, a partir de agora, em um ambiente ainda mais hostil.
Pela lógica destes dias, depois da cassação da Dilma, o passo seguinte óbvio seria condecorarem o Eduardo Cunha, o herói do impeachment.
Depois da provável cassação da Dilma pelo Senado, ainda falta um ato para que se possa dizer que la commedia è finita: a absolvição do Eduardo Cunha. Nossa situação é como a ópera “Pagliacci”, uma tragicomédia, burlesca e triste ao mesmo tempo. E acaba mal. Há dias li numa página interna de um grande jornal de São Paulo que o Temer está recorrendo às mesmas ginásticas fiscais que podem condenar a Dilma. O fato mereceria um destaque maior, nem que fosse só pela ironia, mas não mereceu nem uma chamada na primeira página do próprio jornal e não foi mais mencionado em lugar algum.
A gente admira o justiceiro Sérgio Moro, mas acha perigoso alguém ter tanto poder assim, ainda mais depois da sua espantosa declaração de que provas ilícitas são admissíveis se colhidas de boa-fé, inaugurando uma novidade na nossa jurisprudência, a boa-fé presumida. Mas é brabo ter que ouvir denúncias contra o risco de prepotência dos investigadores da Lava-Jato da boca do ministro do Supremo Gilmar Mendes, o mesmo que ameaçou chamar o então presidente Lula “às falas” por um grampo no seu escritório que nunca existiu, e ficou quase um ano com um importante processo na sua gaveta sem dar satisfação a ninguém. As óperas também costumam ter figuras sombrias que se esgueiram (grande palavra) em cena.
O Eduardo Cunha pode ganhar mais tempo antes de ser julgado, tempo para o corporativismo aflorar, e os parlamentares se darem conta do que estão fazendo, punindo o homem que, afinal, é o herói do impeachment. Foi dele que partiu o processo que está chegando ao seu fim previsível agora. Pela lógica destes dias, depois da cassação da Dilma, o passo seguinte óbvio seria condecorarem o Eduardo Cunha. Manifestantes: às ruas para pedir justiça para Eduardo Cunha!
Contam que um pai levou um filho para ver uma ópera. O garoto não estava entendendo nada, se chateou e perguntou ao pai quando a ópera acabaria. E ouviu do pai uma lição que lhe serviria por toda a vida:
— Só termina quando a gorda cantar.
Nas óperas sempre há uma cantora gorda que só canta uma ária. Enquanto ela não cantar, a ópera não termina.
Não há nenhuma cantora gorda no nosso futuro, leitor. Enquanto ela não chegar, evite olhar-se no espelho e descobrir que, nesta ópera, o palhaço somos nós.