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Olha só a coincidência: no mesmo dia (sexta-feira) fiquei sabendo de duas medidas arbitrárias, imagino que comandadas por dirigentes esportivos homens (aliás, uma coisa que me chateia é como tem treinador, técnico, dirigente homem pra comandar equipes femininas em qualquer modalidade esportiva, enquanto a gente nunca vê uma técnica mulher numa equipe masculina). Ambas envolvem uniformes femininos usados nos esportes. A primeira foi esta: a Federação Mundial de Badminton agora está obrigando as jogadoras a vestir saia ou vestido durante as partidas, e não mais shorts, como a maior parte costuma usar. Os dirigentes admitiram que a medida visa atrair mais público (os comentários no artigo da Folha são, pra variar, os piores possíveis: além do racismo característico –- causado porque as duas fotos escolhidas na matéria são de atletas asiáticas -–, vem um bando de marmanjo dizer que atleta mulher tem que usar saia mesmo, “de preferência sem calcinha”). As atletas reclamaram, e tentarão recorrer da decisão unilateral (update: a medida foi anulada, mas voltará à pauta em dezembro, quando serão ouvidos "os interessados", que não são as jogadoras, mas os fabricantes de roupas esportivas!). Ainda na sexta, o Daniel Neves, do UOL Esportes, me enviou um email perguntando o que eu achava sobre a federação europeia de basquete feminino exigir que todas as atletas da Euroliga adotassem um modelo de uniforme colado ao corpo. Sim, você adivinhou certo: a razão é pra chamar mais atenção pro campeonato (pelo menos eles nem disfarçam mais os motivos). A verdade é que a sexualização dos uniformes femininos tem piorado bastante nos últimos tempos. Se analisarmos uniformes masculinos e femininos das Olimpíadas de 1984, por exemplo, veremos que há poucas diferenças entre o que homens e mulheres vestiam. Com o backlash, a reação conservadora que teve início nos anos 80, a situação mudou, e atletas mulheres tiveram que voltar a ser, antes de tudo, objetos sexuais. Escrevi um post há três anos falando de alguns uniformes ridículos para mulheres. É lógico que se o critério de adoção para os uniformes justos e diminutos usados por equipes femininas fosse a melhora do desempenho esportivo, os homens também os usariam. Só que não tem nada a ver com performance. Tem a ver com fazer as atletas mulheres se encaixarem num padrão palatável para o olhar masculino. Em outras palavras: é o olhar masculino que rege como atletas mulheres devem se comportar, o que vestir, como jogar, como posar para fotos de autopromoção... Não sei se você lembra, mas no basquete feminino a seleção australiana era das poucas que utilizava o uniforme colado, aquele estilo macaquinho. As brasileiras o usaram durante 2000 e 2006, mas não gostaram e os dirigentes tiveram que voltar atrás.Pra mim não resta dúvida: é um claro sinal de machismo que as atletas tenham de pagar este tipo de “pedágio” para poder competir. Pelo jeito, se elas não forem atraentes pros homens, elas não podem jogar. É revoltante que essas profissionais, que vivem para treinar e competir, tenham que se sujeitar a serem sensuais para atrair público. Não deveria ser a beleza ou a “femininidade” das atletas que está em questão, e sim seu talento para o esporte que praticam (e isso vale para todas as profissões).Para os homens que não veem nada de mais em exigir que atletas usem roupas menores, mais justas, mais sexy, fica a pergunta: e se fosse com eles? Por exemplo, mulheres vão muito pouco a estádios de futebol. E se de repente, para atrair mais o público feminino, a FIFA obrigasse os jogadores a usar sunga? Seria justo? PS: A matéria para a qual fui “entrevistada” foi publicada no UOL no sábado, e Daniel utilizou uma boa parte do que falei. Ficou boa. Só não gostei de um trecho do que disse um especialista em marketing esportivo, que é contra os uniformes colados porque “nem todas as jogadoras têm um corpo legal” e, assim, poderiam ficar envergonhadas em usá-los. Ahn, o que é um “corpo legal”? Ainda mais pruma atleta? Devemos lembrar que atletas, e pessoas em geral, vêm numa variedade grande de formatos.Até agora há poucos (e melhores) comentários.
Gabourey Sidibe, estrela de Preciosa, é branqueada em capa de revista Quando a Natalia no Twitter me enviou uma mensagem perguntando se eu tinha visto o artigo de uma revista explicando “objetivamente” por que negras são menos atraentes que mulheres brancas, eu respondi no ato que isso daí tinha a maior pinta de ser mais uma das teorias malucas da psicologia evolucionista. E não é que eu tava certa? O post, intitulado “Por que Mulheres Negras São Fisicamente Menos Atraentes que outras mulheres?”, foi publicado no dia 15 de maio no site da conceituada (pelo menos entre os títulos pop) Psychology Today que, aparentemente, não viu nada de racista em fazer uma pergunta dessas. A revista deve até ter se surpreendido com o volume de emails e tweets que chegaram, e logo tirou o artigo do ar. Mas, claro, alguém já o havia copiado, então você pode ler esse pedaço de cocô (pra ser delicada) aqui, em inglês. Não se preocupe não que vou resumir já já. O que não me surpreendeu é que o autor do post racista é um velho conhecido meu, Satoshi Kanazawa. Já falei das incríveis descobertas do Satoshi: ele crê que os homens realmente preferem as loiras, e isso desde o tempo das cavernas, quando a gente nem sabia que loiras existiam (ou, se é pra usar nossa evidência empírica, como fazem os psicólogos evolucionistas, você já viu algum desenho de uma mulher das cavernas loira?). Isso porque, segundo Satoshi, todo mundo nasce loiro, só que, com o passar dos anos, nosso cabelo vai escurecendo. Portanto, o cabelo loiro seria a prova irrefutável que a mulher é jovem (nenhuma palavra sobre o homem loiro). E todo homem quer uma mulher o quanto mais jovem possível, porque ela teria uma vida reprodutiva mais longa, e isso, ao contrário do que juram os mascus, é tudo que um homem quer: espalhar sua sementinha. Os psicólogos evolucionistas, também chamados, não com muito respeito, de evo psychs (vou traduzir pra psiquevas) e de fundamentalistas científicos, explicam tudo com base na reprodução de nossos genes. Não existe cultura pra eles, só biologia (e desconfio que eles existam antes de Darwin, a julgar por essas pérolas de 1500 e bolinha sobre mulheres). Tudo que fazemos é em busca do nosso instinto para uma melhor reprodução (eugenia feelings pra você também). Por isso, homens procuram jovens lindas e loiras, enquanto mulheres selecionam o macho mais poderoso (nisso os mascus concordam). E danem-se os homossexuais, né? Ou quem é infértil. Ou as pessoas que preferem adotar a ter bebês. Ou essa aberração da natureza que eu represento, a mulher que não quer ter filhos. Nós não existimos. Vamos nos recolher a nossa insignificância, ô legião de desqualificados!Significante mesmo é o Satoshi, um psiqueva que dá aulas numa universidade britânica. Não é um carinha que acordou um dia e decidiu explicar por que, pra ele, que é hetero, as mulheres são atraentes e os homens não. Nada disso. Ele é um cientista. Tem pelo menos um livro publicado, com o científico nome de Por que as Pessoas Bonitas Têm Mais Filhas (note: filhas). Os leitores que chegam aqui pedindo que eu respeite essa ciência machista, racista e homofóbica (e não à toa, a mais divulgada pelos meios de comunicação nas últimas três décadas, desde o início da reação conservadora nos anos 80), e pregando que existem psiquevas sérios, me lembram os mascus que pedem que eu leia blogs mascus respeitáveis. Só que eles são todos iguais. Pode haver diferença no tom, na linguagem, mas não no que eles querem passar: que o homem é superior à mulher e que isso é absolutamente natural (mais um ponto de convergência entre esses dois grupos machistas). E que as feministas estão prestando um desserviço à humanidade ao lutarem contra o “é assim que as coisas são”. Como pega mal (até pra um psiqueva!) afirmar categoricamente que ele está certo em não achar mulheres negras bonitas, Satoshi menciona todo um estudo pra mostrar que o seu gosto é justificado. Ele enche o post de gráficos e também joga no meio da receita uma dose de gordofobia (já que mulheres negras em geral tem um Índice de Massa Corpórea um pouco maior que o de brancas). E finalmente ele arrisca uma explicação: negras teriam mais testosterona que outras raças. É apenas um jeito infeliz de dizer que negras seriam mais másculas, e que Satoshi gosta de suas mulheres bem femininas. Não há dúvida que mulheres negras (e homens negros também, mas como ser bela é uma imposição pras mulheres, e apenas um bônus pros homens, o peso é diferente) são desvalorizadas na nossa sociedade ― em todos os campos, inclusive no estético. Aqui onde moro, no Ceará, as estatísticas dizem que 64% da população é negra ou parda. No entanto, quando eu ligo a TV, abro uma revista, ou vejo um outdoor, tenho a impressão de estar na Suécia. De modo geral, tem muito mais loiro de olho claro na mídia que negro. Isso se repete em todo o Brasil, e é um dos sinais que sim, somos um país muito racista. Pele escura não tá dentro do padrão de beleza. As raríssimas modelos e atrizes negras que porventura aparecem na mídia têm traços brancos ― são mais claras, têm nariz fino, cabelo liso. Duvido muito que quando alguém considera feia uma negra ele tá pensando, “Hmm, testosterona demais, eca!”. O que a gente considera bonito e feio é ensinado, muda de lugar pra lugar, e de época pra época. Não tem nada de universal nisso (e o que os psiquevas tentam provar é que há inúmeras coisas universais). Ninguém nasce achando que olho azul é mais bonito que olho castanho. Aliás, se houvesse qualquer fundamentação biológica nessa preferência, a gente defintivamente não acharia olho claro bonito, já que geneticamente ele tem mais chance de ser míope (ou seja, seria uma desvantagem evolutiva). Pele escura seria uma vantagem evolutiva, pois o risco de câncer de pele é muito menor! Mesmo no campo estético, pele escura deveria ser tido como qualidade, não defeito, pois costumamos associar beleza à juventude, e quem tem pele escura está menos exposto aos danos do sol e têm menos rugas. Eu tô chutando tudo isso, não sou bióloga, mas pelamor, é muito óbvio que achar traços negros pouco atraentes é uma construção social. E só porque esse padrão racista existe faz séculos não o torna mais natural e menos cultural.Só um exemplo que está na minha cabeça: este anúncio de creme da Dove. Perceba como a mulher negra está no campo do “antes” (de usar o tal creme), enquanto as brancas estão no “depois” (e claro que a negra é mais cheinha que as brancas, lembrando a gente do típico antes e depois da propaganda das dietas). Não venha me dizer que foi sem querer, que o anúncio passou por centenas de publicitários e clientes e ninguém percebeu. Racismo é lucrativo, e a indústria cosmética é uma das que mais ganham dinheiro com isso. Todas as marcas de cosméticos vendem cremes para clarear a pele. Você conhece muitos cremes pra escurecer a pele (bronzear é outra coisa)? Cremes branqueadores rendem bilhões em países com mulheres marrons e amarelas, como Japão e Índia. Todas essas marcas ganham os tubos vendendo alisadores de cabelo. Em outras palavras: fazer que mulheres não-brancas sejam mais brancas dá muito dinheiro. Só que, pra fazer com que mulheres não-brancas queiram ser brancas, é preciso espalhar a mensagem que white is beautiful. E só white.Por coincidência, no mesmo dia em que Satoshi fez (mais) esta pataquada, meus alunos de Poesia leram e interpretaram um lindíssimo poema de Langston Hughes, escritor americano nos anos 1920 que foi peça fundamental na Renascença Negra. Chama-se “I, Too” (Eu também). As últimas linhas são: “Eles verão quão lindo eu sou / e ficarão com vergonha. / Eu também sou América” (leia e ouça o poema aqui, é curtinho. Na maior parte das versões o "verão como sou lindo" está escrito no singular). Algum dia, espero, o pessoal que faz parte da classe dominante entenderá que ter um só padrão de beleza é limitador, sinônimo de ignorância. Este padrão é construído e, como tal, pode ser desconstruído. Depende de nós. Logo logo vocês se sentirão envergonhados, senhores.
Diálogo da semana passada entre eu e o maridão:Eu: Não te contei o que aconteceu. Eu tava voltando pra casa andando e fui atravessar a rua perto da igreja, sabe? Aí um motoqueiro quase me atropelou. Ele não tava olhando pra mim ou pra rua, esses detalhes. Sabe o quê ele tava olhando? Ele: O quê?Eu: A igreja! E ele tava dirigindo com uma mão só. Com a outra ele fazia o sinal da cruz. Porque saudar um ser invisível e possivelmente imaginário é mais relevante que se importar com a pessoa bem na frente dele.Ele: Viu? E vocês dois sobreviveram, graças a deus!Eu: Mas se ele estivesse olhando pra rua, e não pra igreja, ele...Ele (interrompendo): Aleluia, irmã! Mais diálogos altamente românticos: beijos, apelidos, exercício, loteria, herança, cheiros, educação, sensualidade, mais sensualidade, engano, energia, nova fonte de energia, dominó, mini-kabongs, autoestima, reflexos, fidelidade, comunicação, efeito isidoro, desejo ardente.
A Suzana, muito querida, me enviou um printscreen (eu também sei fazer! Evoluí muito do começo do blog, em janeiro de 2008, pra cá. No início eu, ahn, literalmente tirava fotos da tela do computador, até que o Pedrinho, leitor que se auto-intitulava "meu melhor fã" antes de me abandonar, disse: "Por favor, diga pra mim que você não tirou uma foto da tela do computador". O quê?! Vai dizer que você nunca fez isso?) de um jornal carioca que publicou uma notinha sobre meu blog. É do Destak que, segundo a Suzana, é um “jornal ultra popular e megalido aqui no Rio -– tiragem de 100 mil exemplares que se esgota antes da 9h de toda manhã”. Legal, né? Infelizmente, isso não resultou em aumento de visitas pro blog, mas pelo menos o jornal não publicou nenhuma informação errada (tirando a que o blog tem espaço pra comentários, porque, se depender da vontade do Blogger ultimamente, não tem não. Mas não desistam, leitor@s querid@s! Voltou ao normal no meio da semana?). Havia potencial pra ser muito pior. Vi um exemplo desse potencial num blog ou site ou tumblr (até agora não sei o que é, e não sei a diferença entre essas três categorias) que me faz chorar de rir. É a capa do Tails (Caudas, daquelas que se mexem, não as de colocar em cima da comida, porque aí seria com L). Não sei quem é Rachael Ray, mas ela foi capa desta revista sobre animais de estimação. A pessoa que fez a matéria achou que vírgula é uma futilidade, e escreveu: “Rachael Ray finds inspiration in cooking her family and her dog”. Com as vírgulas seria (porcamente traduzido): “Rachael Ray encontra inspiração em cozinhar, sua família, e seu cachorro”. Sem as vírgulas a pobre Rachael é uma canibal e o cão na capa é apenas uma breve lembrança.Até que eu saí no lucro.
Viu como rimou? Então, este sábado e domingo, a partir das 9 da manhã, tem o 1o Encontro de Blogueiros Progressistas do Ceará. Será no Cuca Che Guevara, na Barra do Ceará, e você pode conferir a programação aqui. Se você é de Fortaleza, dê um pulo lá, mesmo que não tenha feito a inscrição. Continua sendo de graça. Se você não é daqui, acho que é possível acompanhar o evento ao vivo por este link. Eu farei o possível pra ir lá hoje. Amanhã vou com certeza. É que perdi minha carona pra hoje. O maridão ia comigo, mas na última hora ele se lembrou que todo último sábado do mês promove xadrez nas praças, num evento do Sesc. Só sei que o Cuca Che Guevara é meio longe, e eu nunca fui lá. Mas me disseram que passa um ônibus perto da minha casa que leva até lá, e é por ele que eu vou tentar ir. Oremos. Acho que o encontro será interessante. Infelizmente, a pessoa que eu mais queria ouvir, que era a Luiza Erundina, não poderá ir. Mas é assim mesmo: a gente começa com um plano, e um montão de coisas acontecem no caminho. No final, acabou tendo pouquíssimas mulheres palestrantes, o que é sempre lastimável. Vi que não foi intencional. Participei de algumas (poucas) reuniões da organização do Encontro, e acompanhei todo o esforço do Daniel, do Blog (não oficial) da Dilma. Vamos torcer para que, apesar da ausência da Erundina, tudo dê certo.
Estou publicando uma série de quatro textos sobre como a cultura do automóvel, predominante no nosso país e no mundo, é prejudicial a todos. Foi o Tiago (Nefelibata), um ciclista inveterado, que a escreveu. Esta é a terceira parte do seu belo guest post (leia ou releia as partes um e dois), um trabalho de fôlego feito pra balançar com a gente. Carros utilizam de maneira ineficaz o espaço público, provocam impactos negativos em termos de urbanismo, degradando as cidades, consomem espaços que poderiam ser utilizados para parques e árvores, e poluem muito, tanto de forma direta (este link mostra como, no caso de São Paulo, o ar vem ficando cada vez pior; e dou uma balinha pra quem acertar quem é o vilão) quanto de forma indireta (não consigo nem imaginar o quanto de energia é gasta, o quanto de recursos naturais são consumidos e o quanto de poluição é emitida no ar e no solo pela cadeia mundial de produção de carros, acessórios, combustíveis, materiais para construção de pistas, etc. Apenas em 2009, mais de 61 milhões de veículos foram produzidos; significa que a cada segundo, 1,9 carros foram fabricados). Tentar defender o uso de carro usando medidas como rodízio ou inspeção veicular não adianta, porque são meros paliativos. Quem mais gostou do rodízio não foram ambientalistas, mas as concessionárias, que passaram a vender mais carros -– quem usava carro agora tem dois, um para dias normais, e outro com placa de último número diferente para os dias do rodízio. Já a inspeção veicular diminui a poluição provocada pela queima de combustíveis fósseis, mas para uma frota de milhões de carros, isso não serve. Teremos um ar menos poluído, mas ainda muito poluído. E isso perde todo o sentido quando nós sabemos que há, efetivamente, opções mais limpas.Carros também são perigosos, responsáveis por muitas mortes; o novo Mapa da Violência, publicado no fim de fevereiro último, mostra que a outrora violenta capital paulista conta recentemente com quase tantas mortes no trânsito quanto por outras formas de violência. Em 2008, o último ano de levantamento completo, foram 1.558 óbitos contra 1.622; 4,2 mortes por dia ocorridas no trânsito (o mapa separa homicídios de acidentes de trânsito, definição técnica que consta de um protocolo chamado C-10, o qual não consegui abrir, e, assim, não descobri se casos de atropelamentos dolosos ou mortes provocadas por briga de trânsito entram em um ou outro). Se o número de mortos é alto, o de feridos é maior ainda, e isso sem nem considerarmos os danos indiretos à saúde, como os causados pela própria poluição do ar, pelos níveis elevados de estresse e até mesmo pelo maior índice de sedentarismo. E os danos psicológicos? Eu só consigo atribuir como dano psicológico a mudança que algumas pessoas sofrem -– para pior -– quando sentam num banco de carro de frente para um volante.Se considerarmos o perigo ao qual o motorista se expõe em outras formas de violência urbana (nomeadamente assaltos), a coisa fica ainda pior. Carros não são seguros, pelo menos não em comparação com outros meios de transporte, e até mesmo em comparação com quem anda a pé. Se você está andando na rua e sofre a abordagem de um assaltante, talvez nem arma ele tenha; você não reage e ele provavelmente só vai levar sua carteira e o celular. Mas se você sofrer abordagem de um assaltante no carro... dessa vez não precisa nem se preparar para a encrenca, porque é melhor não perder tempo e já começar a rezar, rezar para que não aconteça uma tragédia. Primeiro que dificilmente será um assaltante só. Segundo que as chances de eles estarem armados é muito mais alta. Terceiro que mesmo que você não faça nada de perigoso ou impensado, um simples desapertar do cinto ou acionar o freio de mão pode fazer um deles te matar achando que você vai tentar reagir. Na melhor(?) das hipóteses, você talvez seja vítima de um sequestro-relâmpago. Ah, e cuidado ao tirar e guardar o carro na garagem... mesmo se morar em apartamento. Seu lindo sedã normalmente é muito mais chamativo do que um celular dentro da bolsa. A armadura que envolve o motorista, somada com a possibilidade de fugir, dá nesse caso uma falsa sensação de segurança.Carros também são caros. Já foram mais caros, e sua compra já foi mais difícil, mas ainda é gritante a diferença de custo do transporte coletivo (mesmo o de São Paulo, cujas tarifas de R$ 3,00 para ônibus e R$ 2,90 para metrô foram inexplicavelmente encarecidas no começo deste ano) e do carro (um popular custa entre R$ 20 mil e R$ 30 mil. E ainda tem o combustível. E o IPVA. E o licenciamento. E o seguro. E os alarmes. E os estacionamentos. E os pedágios. E a manutenção. E as eventuais multas. E os eventuais prejuízos em acidentes...). É um totem caro, como podem ver. Dependendo do caso, até mesmo um táxi sai mais em conta.Tem também outro mito muito popular sobre carros: há quem diga que é bom ter um para o caso de alguma “emergência”. Algum parente cai azul no chão de casa e, com um automóvel, podemos levá-lo correndo ao hospital (e quando quem tem o mal súbito é a pessoa dirigindo um carro? Isso aumenta ou diminui suas chances de sobrevivência?). Primeiramente, eu acho curioso notar que todas, absolutamente todas as pessoas que conheço e que usaram esse argumento para ter um carro, na prática, rodam com ele todos os dias para os destinos menos emergenciais do mundo. Parece que o motorista vai para um lado, a coerência passeia para outro. Segundo, esse uso do carro é muito perigoso; eu pelo menos dirigiria bem nervoso com alguém morrendo no banco de trás, e minha pressa no trânsito poderia provocar um acidente e somente vitimar mais pessoas. Isso se eu não fechar algum macho alfa que interrompa meu curso para sair na porrada (ou no tiro) comigo. No caso de metrópoles, esse uso do carro não é apenas perigoso como às vezes é também desnecessário; existem ambulâncias, resgate, 193 para isso. Às vezes, esses recursos salvam vidas. Se a gravidade do mal súbito é tal que o doente não possa resistir até chegar o socorro, então é bem provável que ele não resistisse de qualquer forma indo para o hospital de carro. Por fim, novamente, em muitos casos um táxi também resolve.E sempre depois desse rol de desvantagens do uso do carro, as pessoas, sem ter mais o que defender, tentam se valer da desculpa de que o transporte público é impossível de se usar. De fato, em alguns lugares, a cultura de adoração dos carros é tão presente ou o desenvolvimento urbano é tão atrasado que não há espaço nenhum ou iniciativa nenhuma para outra coisa, nem mesmo transporte coletivo. Não há muita saída nessa situação, realmente. Nesse caso, o que resta ao cidadão forçado a usar carro é tomar alguma iniciativa. Mas uma iniciativa que consista em algo mais substancial do que negociar com banco/concessionária as parcelas do automóvel, ou algo um pouco mais socialmente engajado do que a realização de um consórcio. Senão, a cidade vai ter alma de roça para sempre. Pois a verdade é que não é que usam carro porque as alternativas são precárias; as alternativas é que são precárias porque a demanda por carro, que é social, política e econômica, é muito maior. Por outro lado, se pensarmos a realidade das metrópoles em geral (ou seja, para a maioria absoluta das pessoas que botam o carro na rua), veremos que essa alardeada precariedade do transporte coletivo tem lá seus exageros. Muitas vezes ouvi gente dizer que transporte público é uma porcaria. E muitas vezes essas mesmas pessoas ficaram gagas ou mudas depois que eu perguntei quando tinha sido a última vez em que havia tomado ônibus ou metrô, ou qual era o nome da linha e do destino, quanto tempo de viagem durava exatamente. Não sabiam responder. Não é estranho que elas sequer conheçam o transporte coletivo, mas saibam com certeza que ele não presta? Mas a resposta é bem simples: usam esse mito para justificarem (perante si mesmas ou outros) o uso do carro, que elas sabem que é problemático (do contrário, não se dariam ao trabalho de justificarem-no). Jamais se darão ao trabalho de experimentar linhas diferentes de ônibus, horários alternativos de metrô, consultar na Internet itinerários, etc. Botam o carro na rua antes de tentarem as outras opções, todas a princípio mais racionais.Isso quando não desqualificam todo esse discurso na velha desculpa do “eles é que são folgados” (leia-se: pedestres, ciclistas, motoqueiros). Vamos com calma aqui. Antes de tudo, é bom saber que essa desculpa apenas contribui para difamar ainda mais a reputação dos motoristas em geral (entre os não-motoristas, lógico). Não há número que diga com certeza quem é mais mal-educado -- carro, bike, moto ou sola, mas como os automóveis são os veículos mais letais dentre esses, é preciso entender que os motoristas não podem fugir da responsabilidade de estarem conduzindo uma potencial arma. Querer afastar isso é abominável (e também rigorosamente ilegal). Agora, raciocinando a folga dos outros, se pensarmos primeiro nas motos, eu digo que o motorista que pensa desse jeito parece esquecer que os motoqueiros na verdade são seus filhos: é porque o trânsito se entupiu de carros que motocicletas passaram a ser úteis, e mesmo necessárias para serviços que exigem agilidade. É uma demanda de mercado. O motoboy que se expõe ao perigo sabe o risco que corre, mas à parte de toda a inconsequência que possa ter, ele também faz isso pela mesma razão que caminhoneiros rebitados: para cumprir prazos insanos estabelecidos por quem lhe encomenda o serviço –- e pra eles vai ser assim mesmo, senão, não tem trampo. Portanto, motoristas, antes de xingarem ou ameaçarem motoqueiros, pensem que talvez vocês estejam descontando a raiva na pessoa errada, e que há chances muito boas de o maior culpado ser um patrão que usa carro como vocês. Claro, nada disso dá o direito do motoqueiro ser folgado –- assim como a folga dele não legitima o motorista a dar o troco. Do contrário, não terá fim o círculo vicioso que existe, por exemplo, em São Paulo: muitos motoqueiros são folgados para se vingar da folga dos motoristas, e vice-versa (mas quem leva a pior? O número de motociclistas mortos aumentou 754% na última década, e o risco de um motociclista morrer no trânsito é 14 vezes maior que o do ocupante de um carro). Parece que tem algo semelhante acontecendo, em menor escala, com pedestres e ciclistas também. Mas aí entra aquele detalhe: quem é que tem mais a perder com essa rixa? Motoristas, por favor, pensem: vale mesmo a pena não levar desaforo para casa mesmo quando o risco aí é a vida de outra pessoa? Esse orgulho é tão importante assim? Entendam que qualquer ameaça que fizerem contra o outro no trânsito só construirá uma relação social nociva, seja de medo, seja de ódio, e isso só fará da cidade um ambiente mais insuportável de se viver -- para todos, você incluso. E mais: ainda que encontrem folgados por aí, por que devolver desrespeito com desrespeito? Se o outro pedestre, ciclista ou motoqueiro (ou mesmo motorista) não exerce sua cidadania exemplarmente, porque jogar no lixo a nossa também?
Bullying contra gays nas escolas? Nah, isso não existe No final de semana passada a Record, ligada à Igreja Universal do Reino de Deus, exibiu uma das reportagens mais tendenciosas que eu já vi. Foram nove minutos ininterruptos (veja aqui) batendo no kit de combate à homofobia. Uma vergonha. Não havia outro lado, como ao jornalismo convém adotar. Todos os “outros lados” (por exemplo, um ativista gay) eram igualmente contra. Ficou parecendo que o governo inventou a campanha sozinha, só por falta do que fazer, como se ela não fosse uma grande reivindicação dos movimentos LGBTTT. É fácil ser contra o que Bolsonaro, aquele misto de deputado ultrareaça com Tiranossauro Rex, apelidou de “Kit gay”, ainda mais se repórteres te param na rua perguntando: “O que você acha deste vídeo com um desenho animado de dois rapazes se beijando ser exibido na escola pro seu filho de cinco anos?”. Olha, nesses termos, acho que até eu seria contra! E é mais fácil ainda ser contra quando nos escondemos por trás do manto sagrado da ignorância. É sério que a gente compra o que a mídia fala do projeto, sem nem sequer tentar descobrir o que ele representa? (Recomendo que você veja os três vídeos e julgue por si mesm@: vídeo um, vídeo dois, vídeo três. Agora me diga se eles têm o potencial de converter um hétero pra homossexualidade ou pra discutir o bullying?). Uma canjinha: o kit representa apenas uma tentativa de educar os professores de escolas públicas para lidar com o enorme problema da homofobia. Seria usado com alunos do ensino médio, a partir dos 15 anos de idade (longe de serem criancinhas indefesas). O material incluía três vídeos bastante didáticos e nem um pouco explícitos (qualquer novela das seis mostra cenas cem vezes mais calientes, mas entre casais heterossexuais ― então pode?) e uma cartilha com sugestões de exercícios para o professor levantar na sala de aula. Só. Poderia ser usado, por exemplo, em aulas de educação sexual para que se discutisse a diversidade e a tolerância à diferença. Mas parece que vivemos num tempo de trevas (eu me senti em plena Idade Média durante a condenação à legalização do aborto durante a campanha presidencial do ano passado), em que ensinar tolerância é algo negativo. Putz, então eu tenho uma noção equivocada da educação. Pensei que educar fosse ensinar a pensar com senso crítico, a respeitar as diferenças, a conviver harmoniosamente em sociedade. Essas coisinhas básicas que eu adoraria que os pais ensinassem. Mas não, não ensinam. Se ensinassem, não haveria tanta gente preconceituosa no planeta. Por isso é absurdo ouvir quem é contra o kit anti-homobofia dizer que “só a família deveria tocar nesses assuntos com os filhos”. Tradução do que isso significa: “ninguém deve falar pro meu filho sobre homossexualidade, porque assim quem sabe dá pra fingir que essa depravação não existe”.E aí, quem vai ensinar um ser em formação a não ser preconceituoso? Os pais, contaminados por uma geração ultrapassada de preconceitos? As diversas igrejas e religiões? Não me faça rir. As igrejas adotaram a bandeira contra a homossexualidade como se fosse sua única missão na vida. Ah, quem sabe a mídia possa educar? Desculpe, mas agora passei mal. Essa mídia que sobrevive de programas humorísticos que só perpetuam o preconceito? Que passa suas opiniões disfarçadas de jornalismo neutro e imparcial? (porque este texto que vos fala é uma opinião. Eu não finjo que sou objetiva). Talvez os amigos possam educar... Não, acho que não. Sobra a escola. Uma escola que é feita de pessoas, pessoas tão preconceituosas como as da família, da igreja, da mídia.Mas por que seria necessário que se combatesse a homofobia (e tantos outros preconceitos)? Porque o ódio mata entre 200 e 400 gays, lésbicas, travestis e transgênero por ano. São brasileiros que são assassinadas unicamente pela sua orientação sexual. O Brasil é um dos países mais homofóbicos do mundo e, apesar do governo do PT ter sido o mais acolhedor às causas homossexuais na história, os números da violência permanecem inalterados. Nas escolas, os casos de bullying contra meninos “afeminados” e meninas “másculas” são altíssimos. Nossa sociedade é tão cruel com os adolescentes que se descobrem homossexuais que há incontáveis suicídios entre eles (nos EUA, existe uma campanha que promete que a vida melhora pro gay caso ele sobreviva à adolescência). É isso mesmo que a gente quer como sociedade? Desde quando não aceitar o diferente faz com que ele vire “normal”? Desde quando ser “normal” é necessariamente bom? “Normal”, pelo jeito, é aquele ser burrinho que dói que pensa que, se o seu filho conversar sobre homofobia, ele se transformará num homossexual. Pô, é que nem achar que se posicionar contra o racismo faz um branco virar negro. Ou que um homem que seja a favor dos direitos iguais pras mulheres deixa de ser homem. Não faz o mínimo sentido, mas é nisso que os “normais” creem. O “normal” é aquele que pensa que defender um mundo sem intolerância é querer endoutrinar alunos. Ahn, sinto ser eu a contar isso pra você, mas endoutrinados eles já estão. Senão não precisariam da escola para ensinar-lhes a se ver livres dos preconceitos. Pra ser franca, não sei se uma campanha de combate à homofobia nos moldes do kit teria resultados, mas sei que é preciso tentar. Por isso é extremamente desolador que o governo tenha voltado atrás e aposentado o kit anti-homofobia antes mesmo de tê-lo lançado. Diz-se que houve pressão da bancada evangélica, que teria ameaçado abrir uma CPI pra investigar o Palocci se o governo não desistisse da campanha. Se for verdade, é muita deceção. Porque, né? Dane-se o Palocci! Ele nem deveria estar nessa administração pra começar. Mas é assim que o governo pretende se comportar? Trocando fidelidade partidária por direitos humanos?É óbvio que os gays, e a causa dos direitos humanos em geral, estariam em lençóis piores se a direita houvesse vencido as eleições. Mas é muito decepcionante ver um governo recém iniciado como este recuar num ponto tão importante. E mais decepcionante ainda é perceber o comportamento de manada de boa parte da população, que fala sem querer ouvir e insiste em perpetuar preconceitos. E que não tem pudor em informar-se através de uma mídia nada interessada em informar.