Recebi um livro que parece formidável (ainda não li inteiro) de Karine Döll, doutoranda em Letras pela UFRGS, e mestre pela Universidade Estadual de Ponta Grossa.
Pedi pra ela escrever sobre seu livro, e publico seu relato como guest post aqui, na esperança que você se interesse e compre Gatilho: o estupro na ficção brasileira (Editora Letramento). E divulgue também!
Demorei a voltar a falar sobre o tema da minha pesquisa. Demorei a voltar a falar sobre o crime que possivelmente mais desperta as paixões e perversões humanas. Desde que terminei o mestrado, em 2019, muita coisa aconteceu. Desde que comecei minha pesquisa, em 2017, mais coisa ainda. Não fazíamos ideia do que estava por vir. E veio. Demônios, impotência, pandemia. No entanto, muita gente falou. Muitas mulheres falaram e, de repente, a palavra “estupro” não apareceu mais como um assunto colocado sempre para debaixo do tapete. Será?
Acompanhei de longe o que houve
em Belo Horizonte, algumas semanas atrás. De longe mesmo, pois moro e sou do Paraná. E posso dizer que o que houve naquela rua, àquela noite, também me chocou (logo a mim que, pressupunha, tive contato com as mais variadas narrativas de estupro ao longo de todos esses anos). Penso ser este o retrato de nossos tempos. A moça escapou de um, de dois, de três homens, mas não escapou do quarto. Houve avanços. Em outro momento, muito provavelmente ela teria sido estuprada pelo primeiro. Ou, talvez, por todos. Porque é inevitável. Somos todas reféns. Lembro de uma menina, em minha cidade, que também saiu para se divertir com amigos, foi drogada, estuprada por vários homens e se matou algumas semanas depois. Disseram que ela era viciada.
Lembro de mim, que saí certa vez com um amigo e “passei do ponto”, tendo bebido pouco, pouquíssimo, mas também apaguei, sendo que este meu amigo me salvou (que sorte a minha, não é mesmo?). Demorei para entender que aquilo (que não foi nada) também não foi culpa minha e nunca mais saí na balada com um copo sem tampa. Lembro de uma amiga que me contou recentemente que fora drogada por um primo enquanto bebiam na casa dele e alguns meses depois descobriu que estava grávida, sem nem saber ainda que já havia perdido sua virgindade.
Não quero simplesmente
divulgar um livro e não tenho por intenção propagar um discurso de autoridade sobre assunto tão desafiador e dilacerante, para todas nós. Mas quero lembrar, para além dos martírios, que continuamos lutando, e continuamos existindo, e continuamos escrevendo e pensando. Este livro, para mim, é só a ponta de um iceberg que por vezes afunda completamente, mas por outras reaparece, sólido, imponente, interrompendo a travessia daqueles que cogitaram já estarmos navegando por mares mais ermos. Belo Horizonte nos lembra que não. Cada cidade, em cada canto desse Brasil, certamente tem um relato que, da mesma forma, nos lembra que não. Desconhecidos, conhecidos, aproveitadores, oportunistas... estupradores. Por que o corpo da mulher precisa sempre estar à disposição, afinal? Alguns mais que outros, é verdade.
Meu livro, intitulado
Gatilho: o estupro na ficção brasileira, trata deles, esses “monstros” tão encobertos de suposta humanidade, sob a ótica de duas escritoras brasileiras (ou quase) contemporâneas:
Paloma Vidal e
Sheyla Smanioto, que corajosamente trouxeram o discurso do estuprador à baila. Impregnaram suas páginas de dor, mas também de evidências. Ao expor seus escritos, tenho por intenção mostrar que para ser possível realizar a análise das narrativas de estupro na literatura, é preciso desmembrá-las de um certo sistema de ambiguidades no qual elas parecem estar sempre imbricadas, sistema esse que trato como “retórica do estupro”.
Penso ser importante esclarecer que, em meu livro, especifiquei o trabalho com o estupro partindo de duas delimitações: a narrativa de estupro enquanto verdade histórica, a qual se impõe como única, sendo traduzida, porém, em diversos mitos (como, por exemplo, “é impossível estuprar uma mulher que resiste”; “o 'não' às vezes quer dizer 'sim'”; “os homens correm o risco de serem injustamente acusados de estupro”, etc) e as narrativas de estupro enquanto verdades literárias, as quais podem ser apresentadas de diferentes formas partindo, contudo, de uma mesma singularidade imposta pela verdade consagrada historicamente.
Por vezes, na literatura, associa-se o estupro a uma suposta prática sexual e vemos, então, inscrever-se uma narrativa que mascara a violência sexual cometida, deixando figurar em primeiro plano uma noção rasa de prazer masculino em concomitância com um presumido desejo feminino. Por não se apresentarem enquanto violência propriamente, estas narrativas fazem parecer que a imposição de vontade tida pelo homem coincidiria com um certo tipo de desejo tido pela mulher, ou seja, as mulheres permitiriam uma tal violência e, inclusive, até a desejariam. O grande problema que aqui se delineia é que, uma vez não sendo difícil reconhecer que a própria concepção moderna de sexualidade por vezes parte também de uma retórica do estupro, a qual traça um determinado script no que diz respeito a práticas sexuais heteronormativas, essas narrativas tornam-se quase irreconhecíveis enquanto narrativas de estupro por serem colocadas lado a lado de uma certa concepção de literatura erótica.
O resultado disso é que a violência em si, de fato, acaba por desaparecer, tornando-se assim uma violência dupla: a real e a ficcionalizada. Bem, não é o caso dos romances que fundamentam minha análise, mas como eu disse, trata-se de autoras contemporâneas (e muitas mais narrativas vieram depois delas, como, por exemplo, o romance Vista Chinesa, de Tatiana Salem Levy, publicado em 2021, algum tempo depois de já concluída esta primeira etapa de meu trabalho).
Hoje, enquanto doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFRGS, sigo nessa empreitada, vasculhando mais e mais exemplos de narrativas consideradas por mim como problemáticas, para dizer o mínimo, partindo da metade do século XIX para cá.
De Machado de Assis a Clarice Lispector, de Adolfo Caminha a Olavo Bilac, de Rachel de Queiroz a Guimarães Rosa, de Jorge Amado a Marçal Aquino, a literatura brasileira parece ter se empenhado em trazer para dentro de suas histórias o crime de estupro, ao mesmo tempo em que parece ter se empenhado também em borrar um pouco os limites que separam a narrativa de estupro da narrativa erótica ou sexual, dificultando a compreensão daqueles que a leem (embora tal dificuldade jamais seja explicitada) e deixando que a violência maior torne-se despercebida: a imposição de um discurso por trás de uma narrativa que a qualifica enquanto estupro ou enquanto sexo, sendo que cada uma tem limites bastante precisos e estes devem ser respeitados.
Por fim, uma vez que só conseguimos comunicar o estupro através do texto (texto aqui entendido como qualquer manifestação de linguagem), é importante que nos atentemos a ele em toda a sua extensão. Dentro e fora dos livros.