Ainda não tive o prazer de conhecer o Vitor na vida real. Cinéfilo, ele participa do meu tradicional bolão do Oscar há quinze anos, e é sempre um adversário à altura (você pode participar também!).
Ele escreveu este post para falar de um filme que se tornou um divisor de águas na representatividade LGBT: Brokeback Mountain. Assim como Filadélfia em 1993, Brokeback foi fundamental por trazer protagonistas gays para perto do público mainstream. E agora faz dez anos que Brokeback perdeu o Oscar de melhor filme para Crash, o que até hoje é visto como um dos grandes erros da Academia.
Leia o texto do Vitor, que também tem um blog:
Acompanho premiações de cinema desde a infância. Especialmente o Oscar, que é a única delas, até hoje, que passa (aos trancos e barrancos) em TV aberta no Brasil. E até 2000, pouquíssima gente tinha TV por assinatura. A primeira vez que meus pais me permitiram assistir à cerimônia completa foi em 1997, quando eu tinha 11 anos. A Rede Globo de televisão só começou a transmitir depois de uma hora de evento, como de costume. De lá pra cá eu já vi muita coisa acontecer nesses eventos. Acertos, equívocos, resultados curiosos, previsíveis, surpreendentes e duvidosos. Um dos resultados que causou mais controvérsia até hoje foi o Oscar de 2006, onde Brokeback Mountain perdeu o Oscar de melhor filme para Crash.
Brokeback Mountain, no começo de 2006, tornou-se o filme mais premiado na história do cinema mundial. Ganhou o Leão de Ouro do Festival de Veneza, todos os prêmios da crítica especializada, meios de comunicação e sindicatos de artistas dos EUA, entre diversos outros prêmios. O tema do filme [veja o trailer legendado] obviamente lhe rendeu muitos opositores e resistência. Países árabes, muçulmanos e orientais proibiram sua exibição, além de outras organizações religiosas (a direita cristã, especialmente) em todo o mundo reagirem violentamente contra.
Brokeback chegou ao Oscar como favoritíssimo, mas, na semana final, pesquisas com os votantes já mostravam um crescimento em popularidade de Crash, que havia sido lançado no início de 2005, época considerada pouco adequada para filmes competirem ao Oscar. Sua distribuidora distribuiu DVDs para os votantes e montou uma agressiva campanha de marketing para colocar o filme em suas mentes. No fim das contas, Crash levou o prêmio. A repercussão foi imensa e rendeu acalorados debates.
Esse foi o primeiro ano em que eu havia visto acontecer um resultado tão inesperado, sem contar 1999, quando Shakespeare Apaixonado, A Vida é Bela, Gwyneth Paltrow e outras bobagens foram premiadas, mas, nesse caso, a premiação inteira foi desastrosa. Então eu decidi colocar aquela máxima em prática: o tempo dirá. Esperei 10 anos se passarem para rever Brokeback Mountain e Crash, avaliar qual o legado de cada um dos filmes e qual deles suportaria o desgaste do tempo. E, com mais maturidade, poder tecer comentários mais embasados (uma crítica bem bobinha que fiz na época está aqui. Francamente, não tenho vontade de escrever sobre Crash de novo). [Nota da Lola: Também escrevi sobre Crash e Brokeback Mountain na época, mas falta coragem para reler o que escrevi].
O filme
Ang Lee levou a estatueta de melhor diretor. Foi um dos três Oscars que Brokeback recebeu, além de roteiro adaptado e trilha sonora |
Brokeback Mountain originou-se, na verdade. de um conto de Annie Proulx, publicado na revista The New Yorker em 1997. Larry McMurtry, romancista e roteirista vencedor do Oscar de melhor roteiro adaptado por Laços de Ternura em 1984, e Diana Ossana expandiram o conto para um longa metragem. O taiwanês Ang Lee, que já havia feito alguns filmes prestigiados em língua inglesa, como Razão e Sensibilidade, e do sucesso de bilheteria O Tigre e o Dragão, ficou responsável pela direção. Com um tema delicado e controverso, o filme só conseguiu ver a luz do sol de forma independente, como um baixo orçamento (o que até comprometeu a maquiagem dos atores, que não envelhecem muito convincentemente).
A história se expande num período de 20 anos, de 1963 a 1983, e conta parte da vida de Ennis Del Mar (Heath Ledger) e Jack Twist (Jake Gyllenhaal), dois “cowboys” que iniciam um difícil relacionamento que, entre idas e vindas, perdura por décadas. Eles se conhecem e se envolvem emocionalmente no verão de 63, em um trabalho sazonal pastorando ovelhas em uma montanha (a tal Brokeback Mountain), e tomam caminhos opostos ao encerrar o trabalho. Ambos se casam e constituem família, mas depois de alguns anos se reencontram e passam a se rever esporadicamente, vivendo seu caso proibido.
O enredo toca em temas muito pertinentes na discussão sobre a homossexualidade, seus impactos nas vidas pessoais e sociais das pessoas. Impossível elaborar interpretações sem revelar o enredo, então deixo meu aviso de spoilers a partir daqui.
Jack Twist sempre se entregou aos seus desejos e enfrentou riscos da forma mais anônima que podia. Já Ennis Del Mar, traumatizado desde a infância com a imagem do corpo de um gay assassinado na sua vizinhança, reprimia todos seus impulsos. Um dos sinais de como uma sexualidade abafada pode afetar toda uma vida.
Ennis era naturalmente desmotivado, sem objetivos. Sua única motivação era autocensurada. Sua vida profissional era improdutiva e medíocre, um dos motivos de seu casamento com Alma (Michelle Williams) ter falhado. Seus romances com outras mulheres e sua relação com suas duas filhas também não evoluíram devido a seu desinteresse e desânimo. Jack casa-se com Lureen Newsome (Anne Hathaway), uma amazona de família rica, e têm um filho juntos. Jack passa a ter uma vida confortável e cuidar dos negócios da família da esposa junto a ela.
Ennis sentia ciúmes de Jack apenas com outros homens. Era como se um houvesse um pacto velado entre eles onde relações com mulheres eram só uma forma de mascarar para o mundo, e até para eles mesmos, o amor que havia entre eles. Mas mesmo com a insistência de Jack, Ennis resistia à ideia de viverem juntos. Essa resistência frustrava Jack, que acabava sempre por se arriscar mais e mais ao buscar satisfazer seus desejos com outros homens, normalmente em locais de prostituição. Ao ficar sabendo da morte de Jack, Ennis logo imaginou que havia sido devido às suas escapadas.
Ennis se vê, então, sem família e perspectivas de futuro e percebe como nunca fez nada de fato da sua vida. Ao ser convidado para o casamento de sua filha mais velha Alma Jr. (Kate Mara, irmã da Rooney, que está sendo festejada por Carol), ele quase recusa o convite devido a um trabalho à toa, mas logo cai em si e confirma sua presença, reacendendo a relação. Sozinho em seu trailer semi-vazio, só lhe restam duas velhas camisas sujas, sua e de Jack, e um postal da Brokeback Mountain, para lembrá-lo de tudo que sua vida poderia ter sido e não foi. [Fim dos spoilers!]
Além da sutileza e franqueza ao lidar com o tema proposto, muitos são os outros méritos da obra.
O filme foi uma forma de consolidar o trabalho de Lee no mercado estrangeiro, de estabelecer o jovem elenco com importantes atores dramáticos e catapultar nomes desconhecidos nos créditos técnicos. A comunidade da música country, notoriamente conservadora, tanto politica quanto socialmente, surpreendetemente contribuiu com a trilha sonora, e nomes importantes dessa indústria como Emmylou Harris, Linda Ronstadt e Willie Nelson se fizeram presentes.
Todos do elenco principal hoje são grandes nomes da indústria. Heath Ledger, australiano que já tinha feito o “clássico” adolescente 10 Coisas que Odeio em Você e A Última Ceia, veio a falecer em janeiro de 2008, antes de desfrutar o sucesso que sua interpretação em O Cavaleiro das Sombras lhe proporcionaria, incluindo um Oscar póstumo de ator coadjuvante. Jake Gyllenhaal ganhou fama de galã e fez vários filmes de sucesso.
Anne Hathaway ganhou o Oscar por Os Miseráveis (sua cena de I Dreamed I Dream é memorável) e fez filmes populares como O Diabo Veste Prada. Michelle Williams, que casou-se com Ledger e se divorciou pouco antes de ele falecer, fez filmes como Blue Valentine e Sete Dias com Marilyn, que lhe renderam outras indicações ao Oscar, além da indicação por Brokeback.
Da equipe técnica destaca-se o argentino Gustavo Santaolalla, que despontou no mercado cinematográfico criando as trilhas incidentais, e hoje tem duas estatuetas do Oscar na sua prateleira. Já o mexicano Rodrigo Prieto, diretor de fotografia, tinha alguns créditos no mercado como 21 Gramas, Frida e 8 Mile, e tornou-se “A list” desde então, fazendo filmes como Argo e O Lobo de Wall Street posteriormente.
As cenas de afeto entre Ennis e Jack são um dos tópicos que mais renderam discussões e curiosidade. A “ousadia” nunca foi feita por outros filmes mainstream que tinham personagens ou temática LGBT, como Filadélfia, que trata direitos humanos e de um protagonista aidético, mas se esquiva de exibir demonstrações de afeto entre Tom Hanks e Antonio Banderas. Até hoje são raros os filmes que tenham sido tão francos quanto a este tipo de conteúdo. Neste aspecto, a TV americana está muito mais à frente, com seriados como Will e Grace, Queer as Folk, The L World e Looking. No Brasil, o caso é inverso, e o nosso cinema (apesar de sua notória limitação) é muito mais afeito a pioneirismos.
Brokeback Mountain, a ópera |
Como legado, Brokeback Mountain deixou as infindáveis discussões sobre homoafetividade. É objeto frequente de estudos acadêmicos e rodas de discussões entre estudantes e profissionais LGBT mundo afora. É referenciado em uma imensidade de obras posteriores da cultura pop, incluindo o livro Beyond Brokeback, relatando os impactos culturais do filme. Em janeiro de 2014 estreou a adaptação para ópera do conto e filme no Teatro Real de Madrid.
Oscar
A Academia sempre foi conservadora. Os votantes da Academia são 94% de homens héteros, brancos e com idade média acima dos 60 anos, pessoas que costumam preencher o demográfico das camadas sociais mais reacionárias. Basta ver que, neste ano de 2016, assim como o ano passado, todos os concorrentes aos prêmios de atuação são brancos. Isso levou diversos artistas negros a decidirem não comparecer ao evento, entre eles Spike Lee, Will Smith e Jada Pinkett Smith.
Repercussão tão negativa, tanto na imprensa americana e internacional, quanto nas redes sociais e no próprio meio artístico, que a Academia, encabeçada por sua presidenta (negra) Cheryl Boone Isaacs, foi forçada a tomar medidas drásticas para mudar de imediato o demográfico de seus votantes, incluindo mais mulheres, pessoas de outras etnias e nacionalidades e jovens no seu corpo para os eventos futuros.
Sean Penn em Milk |
O resultado desse Oscar de 2006 leva à, pelo menos, uma conclusão óbvia: todo movimento por direitos civis e de representatividade de minorias enfrenta percalços e obstáculos. Desde o fim dos anos 60 com os confrontos em Stonewall, a ascenção de Harvey Milk em São Francisco, nenhum romance centrado na temática LGBT tinha chegado tão forte à cultura mainstream. Eram sempre fitas de nicho, “de arte”, ou filmes B. Brokeback Mountain foi um confronto às normas padrões. E toda ação causa uma reação.
Até hoje os movimentos LGBT, negros e feministas sofrem com as reações conservadoras. O Brasil só veio ter um líder aos moldes de Milk hoje em dia, mais de 30 anos depois, com o deputado Jean Wyllys. Não é dificil imaginar que Wyllys é alvo de todo tipo de deslegitimação e afronta da população conservadora diariamente, que se empenha em mostrar oposição a qualquer proposta sua, só por ter partido dele, sem maiores reflexões ou debate.
Nada que os reacionários de outrora não tenham feito também com Milk, Martin Luther King, Malcolm X, as sufragistas, líderes feministas, entre tantos outros. A história costuma se repetir. Pessoas, principalmente reacionárias, não gostam de confrontar seus próprios valores, recalques (no sentido real da palavra) e preconceitos.
O Oscar ser a última das premiações de Brokeback Mountain permitiu o fortalecimento do backlash conservador influenciar o resultado. Na privacidade do voto secreto, é mais cômodo demonstrar seu honesto desconforto, de dizer “estamos cansados de ver esse filme ganhar tantos prêmios e fingir que isso não nos incomoda”. Isso já podia ser sentido no anúncio das indicações, quando foi ignorada a canção original "A Love That Will Never Grow Old", composta por Santaolalla e Bernie Taupin, antigo parceiro de Elton John, que havia vencido todos os prêmios da temporada.
Crash era a desculpa perfeita, por ser um filme que fala sobre racismo (de forma grosseira, superficial e caricata, convenhamos -– nem todo filme bem intencionado é bom), e se passar em Los Angeles, onde a maioria dos votantes residem. Dessa forma ninguém poderia acusar a Academia de discriminação, certo? Errado...