sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

"ESTOU APAIXONADA PELA MINHA AMIGA MENOR DE IDADE"

A C. me escreveu:

É a primeira vez que lhe escrevo, aliás, primeira vez que escrevo para um blog a fim de contar a minha história e falar sobre a minha dúvida. Minha situação é um pouco delicada. Eu tenho 22 anos e sou universitária. Há cerca de dois anos eu conheci um grupo de meninas em um evento de anime e logo descobrimos muitas coisas em comum. Lembro que, dentro deste grupo, eu era uma das mais velhas. Geralmente as meninas eram dois ou três anos mais novas do que eu. 
Tinha, no entanto, uma menina que me chamou atenção e logo ficamos muito amigas. Demorou semanas para que eu descobrisse que ela era muito mais nova do que eu. Ela tinha 14 anos. Não me importei muito, a princípio, porque não vejo porque uma pessoa mais velha não possa ter uma relação de amizade com alguém mais nova, e eu sempre vi essa menina como uma irmã mais nova, e passei a ver nela a possibilidade de cuidar e aconselhar como minhas irmãs mais velhas fizeram comigo. 
Mas o problema estava só começando. Nós passamos a conversar muito, sempre andando juntas e nos tornamos muito boas amigas. Até que aconteceu. Não vou dizer que foi súbito, porque eu creio que já tinha me dado conta, mas em determinado momento eu percebi que estava gostando dela. Me afastei, relutante, porque o que eu menos queria era gostar dela, e depois de muita conversa e muito chororô (da minha parte, confesso), eis que voltamos a nos falar.
Voltamos a nos dar bem e a andar juntas, mesmo que eu soubesse que não devia, até que um dia, no meio de uma brincadeira, nos beijamos.
E é aí que fica a questão.
Eu a adoro. Ficar perto dela é incrível. Eu gosto de estar com ela, de conversar com ela e de beijá-la, mas não consigo evitar a tremenda culpa que sinto. Não é bem culpa, eu nem sei ao menos como classificar isso. 
Eu sinto como se, sendo mais velha, eu a estivesse influenciando. Mesmo sabendo que ela já teve outros relacionamentos com meninas, mesmo sendo ela quem sempre toma as iniciativas para um beijo, eu sinto como se a estivesse forçando. E isso me dá arrepios. 
No ano passado ela me pediu em namoro. Eu fiquei petrificada. Quero dizer... agora ela tem 16 anos. Isso ainda é pedofilia, não é? E se eu for uma dessas pessoas doentes que é capaz de atos horríveis? E se ela estiver se sentindo coagida? Eu a acho uma pessoa muito madura e centrada, mas temos uma diferença de idade muito grande que parece assustar mais a mim do que a ela. 
E toda vez que eu paro para pensar nesse assunto, como agora que estou escrevendo esse email -- chorando de novo e sem ter a certeza se vou mesmo enviar isso ou não -- eu me sinto surtar completamente. Eu não tenho mais ninguém com quem falar sobre isso, será que você pode me dar um help?

Minha resposta: Olha, se ela ainda tivesse 14 anos, eu diria pra você ser apenas amiga da menina. Mas 16 é diferente, e é bem comum rapazes de 22 anos namorarem meninas de 16. O problema é que, se alguém quiser confusão, vai dizer que o que vale para relacionamentos héteros não vale para homossexuais. Existem casos em que a família da menina menor de idade faz um escarcéu porque ela está namorando/saindo com uma menina um pouco mais velha. É óbvio ululante que se a filha estivesse saindo com um cara um pouco mais velho, não haveria problema algum. 
Enfim, é por conta dessa homofobia que vocês precisam ter um pouco de cuidado, serem discretas, até que ela faça 18 anos. Mas, né, se ela quer, se ela consente, nada de você se sentir culpada, né? Namora sim! Como você disse, essa diferença de idade está assustando mais você do que ela. Se ela é madura e centrada, vá em frente. Nada de culpa. 
E não, 16 anos não é considerado pedofilia de jeito nenhum!
Clique aqui para ver a idade de
consentimento para héteros
e lésbicas de cada país
Nem 14 anos é considerado pedofilia; aí  pode ser visto como "estupro de vulnerável". Mas isso não se aplica com 16 anos, ok? (e claro que essas definições são polêmicas, porque retira-se qualquer poder dxs menores de 14 anos. E se um ou uma adolescente de 13 quiser namorar um ou uma de 18? Antes que me joguem pedras, gostaria de avisar que não tenho opinião formada sobre o assunto, e que o país europeu com a menor idade de consentimento -- 12 anos -- é... o Vaticano).
Você acha que a sua culpa ou a sua dúvida se de repente você é "uma dessas pessoas doentes capazes de atos horríveis" é realmente referente à diferença de idade? Será que você não está se sentindo assim por estar entrando num relacionamento lésbico? Analise melhor essa sua culpa.
Converse com sua amiga, diga como você se sente... e aceite o pedido de namoro dela, oras!

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

GUEST POST: VÍDEO DE SEXO VAZADO COM HOMEM É REVENGE PORN?

Foi a Ana que me mandou este email sobre um assunto totalmente desconhecido pra mim (tipo, o que é Saimon? Um tipo de peixe com problemas de fala?). Mas o assunto pode render um bom debate.

Lola, não sei se ouvistes, mas teve um jogador do Grêmio, o Saimon, que teve um vídeo de sexo vazado na internet.
Sinceramente, eu sinto muito pelo Saimon. Sinto mesmo. Mas apesar de me sentir péssima pelo o que houve com o rapaz, acho muito interessante. Porque como você pode ler na notícia, Saimon não está sendo apedrejado como as mulheres geralmente são. 
O emprego dele, como jogador de futebol, está seguro. Não só o clube entende que isso não tem nada a ver com o perfil profissional dele, como vai dar apoio jurídico a Saimon. E não só vai apoiá-lo, como está divulgando isso. O Grêmio defende Saimon, e quer que todos saibam disso. O julgamento popular também está a seu favor -- os comentários que vi até agora são em maioria de pessoas orgulhosas de Saimon, porque vejam, vejam todos! SAIMON FEZ SEXO! COM DUAS MULHERES! VEJAM, QUE LINDO! TODOS OS HOMENS GOSTARIAM DE ESTAR NO SEU LUGAR!
Veja bem, eu estou feliz que Saimon esteja recebendo apoio. Eu não acho que ele devia ser xingado ou perder o emprego, nenhuma bobagem dessas. Só não entendo por que as mulheres tem que ser tratadas como lixo quando isso acontece com a gente, enquanto um cara é apoiado e glorificado por ter feito exatamente a mesma coisa. É impossível ler a notícia e não pensar no julgamento injusto que recebemos.
Se Saimon fosse mulher, já não teria mais emprego. Nenhum lugar iria lhe respaldar. Com seu comportamento, ele mancharia a reputação da empresa toda e de todos os seus colegas. 
Mesmo que não lhe tirassem o emprego, seria arriscado sair por aí, porque Saimon seria muito assediado. Talvez até os outros jogadores sofressem -- poderiam, quem sabe, receber convites para fazer programa. Afinal, se o Grêmio tem um jogador que fez uma sex tape, todos os outros devem ser garotos de programa!
Não estou exagerando -- afinal, da última vez que um vimos um vídeo privado de uma mulher vazar, ela precisou abandonar o emprego de vendedora e suas colegas relataram ter recebido inúmeros convites para programas. Estou falando da Fran, de Goiânia, que teve vídeos vazados pelo Whatsapp ano passado.
Se Saimon fosse mulher, sua carreira estaria em grande risco. Onde já se viu! Um jogador de futebol! As crianças o admiram! Oh não! O que será das crianças! Que péssimo exemplo! Demitam-no, em nome da moral e dos bons costumes! Demitam-no, em prol da família brasileira! Ele é depravado por ter filmado o sexo! Ele é promíscuo, por ter feito sexo com duas outras pessoas! 
Sim, eu me atrevi a fazer essa análise: Saimon é jogador de futebol, portanto, ele é um ídolo para os meninos. Se a história fosse sobre uma mulher que é um modelo para meninas, ela estaria na rua e essa seria a primeira desculpa. Como é sobre um homem, casualmente parece que isso não importa -- na verdade, importa, mas ninguém vai reclamar de um ídolo masculino que faz sexo. Porque, novidade, homens devem fazer sexo, ao contrário das mulheres...
Esta imagem com Ronaldinho Gaúcho
circulou recentemente;
ele alega que é montagem
Se Saimon fosse mulher, as pessoas o xingariam na internet, haveria milhões de comentários insultando seu caráter. As pessoas a odiariam tanto, mas tanto, que ela teria que trocar de endereço, de telefone, de aparência. Todos diriam, "Se Saimon não quisesse seu vídeo na internet, não teria feito o vídeo em primeiro lugar!".
Eu não acho que preciso continuar. Se uma mulher tem um vídeo de sexo vazado, ela é odiada; se um homem tem um vídeo de sexo vazado, ele não só é apoiado, como idolatrado. Se alguém ainda duvidava, aí está Saimon para provar. Exemplos para as mulheres infelizmente não faltam.
Nisso, Lola, compartilhei o link no facebook e apontei o problema. "Se fosse mulher, será que seria apoiado? Geralmente vamos para a rua."
Os comentários que recebi... Pérolas. Diziam que Saimon está sendo bem tratado porque é jogador (!). Porque o vídeo é velho (!!). Que eu devia mesmo era falar da representação das mulheres na mídia, que a "liberdade sexual" que dizem que temos é escravidão. Que o problema mesmo é que o Brasil não tem moral, só isso. Que o comportamento do público é injusto até, mas que eu devia comentar o comportamento das duas mulheres no vídeo (!!!).
Jogador argentino Banega teve
vídeo vazado se masturbando em 2008
Existem poucas coisas mais dolorosas do que ter pessoas amadas que reproduzem o machismo e não sabem. Eu não sei qual parte desses "argumentos" me entristece mais. Note as desculpas negando que o problema seja machismo, e como me cobram satisfações porque há duas mulheres no vídeo. "Elas agiram bem como objetos", me disseram. O que isso tem a ver com o tratamento dado às mulheres vítimas de vazamento de vídeos privados, até agora não consegui descobrir. 
Claro que nada disso me surpreende, não de verdade, porque não é exatamente assim que costumam reagir quando falamos de feminismo? Como é difícil, mesmo com exemplos gritantes, convencer as pessoas de que o feminismo é necessário. Você pode demonstrar por A mais B que o tratamento é desigual, e sempre tem quem vá dizer que não é bem assim, não é uma questão de gênero, imagina... 
O vazamento do vídeo do Saimon é um crime, uma covardia, sem dúvida. Mas também é uma ótima chance para refletirmos sobre a desigualdade. E não sei se o que houve com Saimon é pornografia da vingança, visto que o revenge porn tem como objetivo humilhar, e pelo senso comum o sexo é humilhante para mulheres, não para homens. Mas quem vazou o vídeo pode ter feito isso com a intenção de atrapalhar a carreira do jogador e prejudicar sua imagem, e isso seria revenge porn. Não...?

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

A SEGREGAÇÃO DOS BANHEIROS

A J. me fez esta pergunta já há vários meses:

"Estava numa boate com meu namorado e resolvi ir ao banheiro. Só havia fila para o banheiro feminino. Um cara, vendo aquilo ao sair, ofereceu uma 'vaga' no banheiro masculino afirmando que não tinha ninguém lá. A primeira da fila disse que o xixi dela não desce em lugares 'estranhos'. Como as meninas ficaram se entreolhando, eu resolvi ir. Ainda ouvi um: 'Menina, aqui é o banheiro masculino' (peraí, não tinha ninguém).
Meu namorado entrou bem na hora em que saí e perguntou o que eu estava fazendo. Ele ficou irritado comigo justificando sua revolta com o fato de que não quer que a namorada dele seja alvo de gracinhas. Eu disse apenas 'Não vejo nada de mais nisso'. Fiquei envergonhada de mim mesma porque foi uma situação boba e eu não soube argumentar. Será que é tão absurdo assim eu invadir um espaço que não me é destinado para atender a uma necessidade física?"

Minha resposta: J., seu namorado não tem nada que ficar dando bronca em você. Como você mesma já notou, banheiros são só... banheiros. Lugares onde fazemos nossas necessidades fisiológicas. Nunca foi um assunto que me interessou muito, se bem que lembro quando, no meu primeiro curso superior, uma turma fez um trabalho analisando o que estava escrito nas portas dos banheiros femininos da instituição. Aquilo foi muito bacana.
Tenho algumas historinhas desconexas sobre banheiros, se alguém quiser ouvir. No departamento da UFC onde fica o meu escri há apenas dois banheiros. E o departamento tem cerca de 45 professorxs, fora o pessoal da secretaria. É pouco banheiro pra muita gente, e dá fila.
Um dia recebi um email com a reclamação de que um professor estaria às vezes usando o banheiro feminino, quando o masculino estava ocupado. Para resolver esse "problema", cada professora deveria ter sua própria chave pro toalete feminino. Todas as professoras concordaram, menos eu (a gente precisa mesmo de mais uma chave?). Alguém acabou falando com aquele professor, que nunca imaginara estar incomodando, e se comprometeu a não mais usar o banheiro feminino. Fim do problema.
Nossos banheiros não são assim
Pra ser franca, nunca engoli bem essa segregação em banheiros masculinos e femininos. Afinal, num banheiro público, a gente tem portinhas. Eu não faço o que tenho que fazer na frente de todo mundo, nem vejo ninguém fazendo xixi ou cocô na minha frente. Portanto, eu não dou a mínima pra quem está no banheiro ao meu lado.
Uma amiga me contou recentemente que "nós mulheres" íamos ao banheiro juntas não para fofocar, como reza a lenda urbana, mas para nos proteger. Eu achei incrível aquilo, porque ela falou como se fosse uma verdade absoluta, e pra mim não é. Eu não vou ao banheiro com ninguém, nem fofoco lá. Mas, principalmente -- e talvez eu seja uma privilegiada -- eu nunca, em toda minha vida, me senti ameaçada dentro de um banheiro. Claro, ouço falar de casos hediondos (como este, de uma jovem que, em 2000, foi estuprada e morta na faculdade particular de Fortaleza em que faria o vestibular), mas estão longe de ser a regra.
Quando eu já era professora da UFC, algumas alunas me relataram que, uma tarde, havia um tarado no banheiro feminino de um dos blocos. A segurança foi chamada, e o cara conseguiu fugir (foi uma semana difícil no campus; tivemos um assalto lá também; houve protestos por mais segurança).
Antes disso, uma professora me contou que um grupo de alunas foi reclamar com ela porque uma travesti estava usando o banheiro feminino, e elas se sentiam incomodadas. Não sei o que a professora fez, e suponho que esse episódio lamentável já tenha alguns anos, porque no nosso curso temos uma aluna tão popular e simpática, que ela foi diretora do DCE.
Ela é transexual (e imagino o quanto sua simples presença já tenha sido responsável por demolir vários preconceitos na universidade. Não consigo imaginar alguém falando pra ela que não pode usar o banheiro feminino, até porque a pessoa ouviria um monte -- Silvia, você é o máximo! Só que aí, procurando imagens para ilustrar o post, encontrei a notícia que Silvia já foi expulsa do banheiro feminino da biblioteca!).
Então vou voltar à pergunta da J: "Será que é tão absurdo assim eu invadir um espaço que não me é destinado para atender a uma necessidade física?" É esquisito usar esse termo, invadir, quando estamos falando de um espaço público. E sobre o espaço não ser destinado a você, acho que todo cronista já escreveu sobre as placas de toaletes. Essas tão criativas que mostram qual o espaço pras damas e pros cavalheiros, pra quem veste azul e pra quem veste rosa, pra quem mija em pé e pra quem mija sentado.
Mas será que elas são criativas mesmo? O que há de tão original em reforçar estereótipos de gênero, em separar pessoas em sexos "opostos", em insistir num binarismo forçado em cima de diferenças construídas?
Protesto no Shopping Center 3:
pelos direitos das pessoas trans
Hoje é Dia da Visibilidade Trans. Se você, J., entrar num banheiro masculino, recebe bronca do namorado machista. Mas pra pessoas trans usarem um banheiro público é muito mais complicado. Se uma travesti optar pelo toalete feminino, as mulheres chamarão os seguranças (aconteceu num shopping em SP, o que gerou um lindo protesto) ou farão um abaixo-assinado (aconteceu num shopping em Salvador, e a trans em questão era funcionária de uma loja no shopping, ou seja, colega da turma que fez o abaixo-assinado!). Se a travesti usar o toalete masculino, ela pode apanhar ou até ser morta.
E aí, o que fazer? Milhares de pessoas trans passam por isso diariamente. Muitas chegam a ter problemas urinários por terem que conter por horas seguidas a necessidade de ir ao banheiro. E não estou só falando da funcionária do shopping (que trabalha lá, passa horas lá, e não pode usar o banheiro sem que colegas protestem), mas também de crianças e adolescentes que não se identificam com o sexo designado a elas ao nascer, em escolas.
A criação de um terceiro banheiro não é uma solução. Afinal, é mais uma segregação. Assim como boa parte das mulheres (cis e trans) não querem vagões exclusivos em trens, ônibus e metrôs (a gente prefere que os homens aprendam a respeitar, obrigada), pessoas trans não pedem banheiro exclusivo. Pedem apenas que possam usar o banheiro que quiserem. Aliás, muitas querem acabar com o binarismo. Querem banheiros mistos.
E por que não? Se todxs nós vamos ao banheiro fazer a mesma coisa, por que precisamos ter banheiros separados? Ah, porque os homens fazem xixi em pé, em mictórios? Sério? Então homem não consegue mijar se não for num mictório? Você tem mictório em casa, ou um simples vaso sanitário?
O argumento de que mulheres (cis e trans) poderiam correr perigo se os banheiros fossem mistos é mais plausível. Mas em várias boates e bares existe a prática de banheiros mistos, e a gente raramente ouve falar de crime. E também, deixa eu te contar um segredo: mulheres já correm perigo. Tipo, em todo lugar. Inclusive dentro de suas próprias casas (28% das mulheres mortas no Brasil são assassinadas dentro de casa. Mais de 70% dos estupros acontecem no ambiente familiar. Imagino que esses dados devem superar o perigo de qualquer banheiro público).
Porém, se abolir banheiros separados de uma vez soa radical demais pra você, vamos começar a aceitar numa boa que travestis e mulheres trans usem o banheiro feminino. Eu já escutei argumentos ridículos como "O cara vai se vestir de mulher pra poder entrar no banheiro feminino e estuprar mulheres". Não vai não. Isso é meio como pensar que brancos vão se declarar negros para poder se valer das cotas. Sabe, homens cis e brancos já têm privilégios. Eles não vão abrir mão desses privilégios pra tentar se passar por uma minoria historicamente oprimida. E o curioso é que, segundo a ativista Daniela Andrade, quem mais vocifera contra mulheres trans usarem banheiro feminino são os homens.
Se a enorme maioria cis (gente que nunca teve dúvida sobre sua identidade de gênero) não é capaz nem de integrar as pessoas trans no seu direito mais básico -- usar uma droga de um banheiro público (e público quer dizer para todxs) -- vamos incluí-las em que situações? Ou a decisão dessa maioria tão democrática é que não iremos incluí-las, e que está tudo ótimo em continuar sendo o país que mais mata trans no mundo?
Vamos assumir que marginalizamos pessoas trans. É preciso ter consciência dessa discriminação. Só assim podemos lutar conscientemente contra ela. E é uma luta que deve ser lutada por todxs.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

GUEST POST: A AMEAÇA DO RETROCESSO ESPANHOL

Thays estudou Comunicação na USP e Economia na Espanha, onde vive há 13 anos. Ela trabalha numa multinacional de tecnologia e participa de alguns grupos laicos. Por isso, e por outras coisas, está ativa contra a lei que poderá significar um enorme retrocesso na questão do aborto no país. 

Todos sabíamos: mudar a Lei do Aborto aprovada pelo Partido Socialista em 2010 [que ampliou a possibilidade do aborto, permitindo que adolescentes entre 16 e 18 anos pudessem abortar, mesmo sem o consentimento dos pais] seria uma das únicas promessas de campanha que o Partido Popular tinha a firme convicção de cumprir. 
Manifestação a favor da revisão da lei
Todos sabíamos também que a questão do aborto na Espanha era um assunto resolvido e que a maioria da população estava satisfeita com a lei vigente, lei que basicamente reconhecia o direito ao aborto dentro de prazos concretos. Foi a primeira que garantiu à mulher, e só a ela, a decisão de abortar, e eliminou o conceito de "supuestos" (estupro, risco físico/psicológico para mãe) que Felipe Gonzalez aprovou em 1985.
O Ministro da Justiça, Luis Gallardón, apresentou há algumas semanas a proposta da nova lei do aborto. A lei é um ataque aos direitos constitucionais das mulheres pelas seguintes razões:
· elimina o aborto como direito da mulher. O problema da nova lei não é apenas limitar os casos onde o aborto é autorizado (risco físico / psicológico / estupro), mas estabelecer que apenas médicos (dois médicos diferentes do que fariam o aborto, e independentes) poderão decidir realmente se esses casos se cumprem. A mulher não decide nada que os médicos não autorizem primeiro. 
· a lei se chama "Lei de Proteção da Vida do Concebido" e iguala juridicamente o Concebido à Mulher. Ou seja, cabe ao Estado decidir (através dos médicos independentes) em caso de conflito de interesses entre as duas partes. Importante lembrar que a Constituição espanhola não reconhece "Concebido" como figura legal -- e somente a mulher está equiparada ao Concebido. 
· A lei obriga a mulher a um período de reflexão de pelo menos sete dias (depois da aprovação dos médicos) onde deverá pensar se quer abortar ou não. A mulher ainda será obrigada a ouvir de um representante do governo todas as alternativas que possui além do aborto. Atrasar o processo e evitar que as mulheres abortem é um dos objetivos mais evidentes da nova lei. 
Felizmente, nada foi aprovado ainda. Desde o anúncio da proposta em dezembro, o Partido Popular enfrenta manifestações em todas as cidades espanholas. Editoriais nos jornais, internet, grupos feministas, laicos, ONGs e até membros do PP deixaram claro que não apoiam a nova lei.
É importante que fique claro que estamos fazendo várias manifestações nas cidades grandes, mas ao mesmo tempo, várias pequenas prefeituras estão votando e publicando textos pedindo a revisão da proposta -- por exemplo, Santa María de Cayón e Castro Urdiales --, ambas com maioria do Partido Popular. O PP tem maioria no Parlamento, mas nunca esteve tão sozinho quanto nesse assunto. Até Marie Le Pen, nada suspeita de esquerdista, disse que não aprovaria uma lei tão radical. 
Se existe uma coisa admirável na Espanha é a capacidade de mobilização das pessoas. Mulheres e homens de todas as partes e idades, estamos todos juntos nessa luta. Amanhã haverá uma manifestação no Parlamento Europeu, e, nos dias 1 e 8 de fevereiro, manifestações em Madrid e outras partes do país [e da Europa]. 

Aqui ninguém se esconde. O preço político que muitos não querem pagar é o de apoiar uma lei que retira direitos das mulheres. Um exemplo dessa união é o vídeo criado pelo grupo “Decidir nos hace libres” (com versões em espanhol, inglês e francês). 
Tenho participado de várias iniciativas deles. É inspirador ver tantos grupos trabalhando juntos, ver artistas, escritorxs, cantorxs dando a cara e apoiando a nossa causa. Não sabemos se a a proposta será alterada ou não, mas sabemos perfeitamente quem está do nosso lado, do lado das mulheres. 
¡No pasarán!

Meu comentário: Se esta reforma for aprovada na Espanha, o país europeu, que legalizou o aborto em 1985, terá uma lei tão restritiva quanto o Brasil e outros países pobres da América Latina e da África. Seria um retrocesso de trinta anos!
Ontem o Ministério da Justiça espanhol fez mais uma declaração desastrosa: disse que uma lei mais restritiva para o aborto seria positiva para a economia, pois aumentaria a natalidade. É muita ingenuidade pensar que só porque um governo elimina o direito ao aborto, o aborto deixa de acontecer! 
Nos países onde o aborto é criminalizado, como aqui, ocorrem tantos abortos quanto em países onde ele é legalizado. A diferença é que onde o aborto é legalizado, as mulheres não morrem quando o realizam. Tanto que um dos gritos de guerra de pessoas pró-escolha é: "Anticoncepcionais para não abortar. Aborto legal para não morrer".
Percebam como a "Lei de Proteção ao Concebido" é parecida com o nosso Estatuto do Nascituro. Essas leis visam dar a um óvulo fecundado, a um concebido, a um nascituro, mais direitos que a uma mulher adulta. Só que aqui, onde mulheres não têm direito ao aborto em quase nenhum caso, querem tirar o direito em todos os casos. É a velha visão de que mulher é apenas uma incubadora de bebês. E, como tal, precisa ser vigiada (e punida) o tempo todo.