Visualize a cena, que é bastante comum: uma mulher é estuprada. Ela engravida. Ela quer abortar.
Pode substituir "uma mulher" por "uma menina". Isso também -- meninas de 10, 12 anos que são estupradas e engravidam, quase sempre do pai ou padrasto -- acontece direto. Nesses casos, há ainda outro agravante para ter que interromper a gravidez: o corpo da menina não está formado. Prosseguir com a gestação pode colocar a vida da vítima em risco.
Nos casos de gravidez decorrente de estupro (o que ocorre com frequência: a estatística é que 7% das mulheres estupradas acabam engravidando), o aborto é permitido no Brasil. Aliás, é numas. O Código Penal de 1940 não diz que aborto em caso de estupro "não é crime". Diz apenas que "não se pune", se praticado por médico. O que mais vemos é pedirem alvará para que a mulher ou menina estuprada possa realizar um aborto. E enquanto isso, a gestação vai avançando...
Ou seja, na teoria a mulher ou menina que foi estuprada e engravidou pode abortar, sem sequer precisar fazer boletim de ocorrência. Na prática, a realidade é completamente diferente. Apenas alguns poucos hospitais em todo o Brasil realizam o aborto legal. O que mais se vê é médico alegando que não quer realizar o procedimento porque a sua consciência não permite, mulher sendo tratada como bandida, alvarás que só chegam meses depois.
Pra resumir: 67,4% das brasileiras que engravidam por conta de um estupro não conseguem abortar. Quer um dado ainda mais chocante e desumano? 80% das meninas até 12 anos que engravidaram não fizeram aborto legal. Apenas 5,6% conseguiram fazer.
Já deu pra perceber o circo de horrores que é tentar fazer um aborto legal no Brasil. E isso que, cada vez mais, abortos podem ser realizados através de medicamentos. Nem sempre é preciso uma cirurgia. Ainda assim, em nome da religião, dificulta-se ao máximo que mulheres e meninas possam interromper sua gestação.
Mas vamos ampliar esse cenário de horror. Visualize que a mulher ou menina que engravidou após ser estuprada consiga encontrar a tempo um médico e um hospital que faça um aborto (o que é seu direito). Antes de poder abortar, a vítima de estupro deve ver imagens do feto mês a mês. Está visualizando? A menina ou mulher, traumatizada pelo estupro, é forçada a ver várias imagens de fetos mostradas por gente que já a encara não como vítima, mas como criminosa.
É ou não é uma sessão de tortura?
Pois é isso o que prevê o projeto de lei 1465/2013, aprovado esta semana na Câmara Legislativa do Distrito Federal. O projeto, de autoria da deputada Celina Leão (PPS), foi encaminhado para o governador Rodrigo Rollemberg (PSB), que tem 21 dias para vetá-lo ou sancioná-lo.
O projeto prevê também mostrar alternativas de adoção à mulher estuprada e passar informações sobre o risco de abortar. Não é preciso ser muito inteligente para deduzir que o propósito real é um só: fazer com que a vítima desista do aborto. Esse tipo de procedimento já faz parte da rotina de vários estados dos EUA, onde o aborto é legal há mais de quatro décadas. Como lá os conservadores não conseguem voltar a proibir o aborto, eles criam cada vez mais dificuldades para as mulheres que desejam abortar.
A nota do Juntos! explica melhor o que está acontecendo:
Desde 2014, a CLDF [Câmara Legislativa] é conhecida e marcada por uma das atuações mais conservadoras do país – como a autoria do Projeto de lei da Escola sem Partido e recentemente a derrubada do Projeto de Lei que criminalizava a homofobia no Distrito Federal --, ao passo que é recorrentemente foco de diversas manchetes nos jornais por inúmeros escândalos de corrupção. Essa é mais uma das ações que mostram como os políticos que hoje ocupam o cargo de deputados distritais nessa câmara possuem claras intensões de retroceder nos direitos de nossas mulheres, juventude, LGBTs e trabalhadores.
A crueldade desse projeto se mostra em mais uma vez a atuação do legislativo ir no sentido de culpabilizar mulheres vítimas de estupro, as submetendo a situações de violência psicológica para duvidarem se devem ou não exercer um direito que já lhes é assegurado por lei. A luta das mulheres no último período nas chamadas “primaveras feministas” ia também no sentido de fortalecer a luta por mais direitos.
Hoje no Brasil, cerca de 50 mil mulheres morrem pela realização de abortos clandestinos. O movimento feminista tem se mobilizado no sentido de avançarmos no direito ao próprio corpo das mulheres. esse projeto vai na contramão das recentes lutas travadas pelas mulheres no Brasil. Se as mulheres derrubaram Cunha, agora é preciso unificar forças e exigir que o governador do Distrito Federal, Rodrigo Rollemberg, vete esse projeto, e assegure que o pouco que já temos garantido em lei pelo direito aos nossos próprios corpos seja assegurado.
#VetaRollemberg #ACulpaNãoÉDaVítima #NaoAoPL1465/2013
Será que mostrarão esta imagem? Saco gestacional, 6 semanas de gravidez. Não é possível ver um embrião nesse estágio |
Pra quem acha que nós feministas estamos fazendo alarde, que a lei só vale para o Distrito Federal, não sejam tolinhos. O Congresso mais reacionário e corrupto da nossa história tem dezenas de projetos para não apenas garantir que o aborto jamais seja legalizado e descriminalizado no Brasil, como também para proibir o aborto definitivamente em casos de estupro, risco de vida pra gestante, e fetos anencéfalos. É a agenda deles. Isso e retirar todos os direitos das trabalhadoras e trabalhadores, como direitos trabalhistas e aposentadoria.
E eles está fazendo a festa. Enquanto a gente faz greve geral e grita Fora Temer (e temos mais é que fazer greve e gritar mesmo), eles vão passando as aberrações que quiserem.
UPDATE em 4/7/17: Felizmente, hoje o governador Rodrigo Rollemberg vetou o projeto que havia sido aprovado na Câmara Legislativa do DF. No Twitter, o governador afirmou que a aprovação seria uma barbárie: "Algo macabro para qualquer mulher que já foi vítima de um crime". Ele disse ainda: "Respeito os direitos das mulheres, sou solidário às suas lutas e ao combate a qualquer tipo de violência, inclusive aquela que vem em forma da lei. Vetarei integralmente o projeto de lei que obriga profissionais da saúde a mostrar imagens do feto às gestantes vítimas de estupro".
UPDATE em 4/7/17: Felizmente, hoje o governador Rodrigo Rollemberg vetou o projeto que havia sido aprovado na Câmara Legislativa do DF. No Twitter, o governador afirmou que a aprovação seria uma barbárie: "Algo macabro para qualquer mulher que já foi vítima de um crime". Ele disse ainda: "Respeito os direitos das mulheres, sou solidário às suas lutas e ao combate a qualquer tipo de violência, inclusive aquela que vem em forma da lei. Vetarei integralmente o projeto de lei que obriga profissionais da saúde a mostrar imagens do feto às gestantes vítimas de estupro".