Lázaro Ramos vai ao dentista em O Cobrador. Aqui eu falo do conto, mas ilustro com fotos do filme de 2007.
Esses dias deu vontade de reler, pela enésima vez, “O Cobrador”, do Rubem Fonseca. É um conto curtinho, de menos de vinte páginas, narrado em primeira pessoa pelo sujeito que se intitula cobrador. Não sei por que a vontade em reler o conto, se foi pela minha discussão sobre a pasta de dente ou das cenas de estupro (estou escrevendo mais sobre isso, apenas não finalizei, ainda). Aí notei que O Cobrador tá comemorando trinta anos. É de 1979. Eu nem lembro quando li o livro (que tem vários contos, todos excelentes, além do que leva o título) pela primeira vez. Mas sempre fui fascinada por Rubem Fonseca. Ele é o máximo. E sou do time que prefere seus contos a seus romances. Mas vou deixar uma análise mais detalhada do conto pra outra hora. Por enquanto só queria compartilhar algumas coisinhas.
Tipo, adoro a obsessão do personagem/protagonista por dentes. Não por acaso, o conto começa no dentista, onde o Cobrador aguarda, com dor, sua vez de ser atendido. Os trechos em itálico eu tirei do conto:
Ele [o dentista] olhou com um espelhinho e perguntou como é que eu tinha deixado os meus dentes ficarem naquele estado.
Só rindo. Esses caras são engraçados. (p. 165)
Quando o dentista tenta cobrar por ter arrancado seu dente, ele diz que não tem dinheiro. O dentista bloqueia sua saída, o Cobrador tira sua arma e destrói o consultório:
Eu não pago mais nada, cansei de pagar!, gritei para ele, agora eu só cobro!
Dei um tiro no joelho dele. Devia ter matado aquele filho da p***. (166)
Eu tinha certeza absoluta, das outras vezes que li o conto, que na lista de itens que constam da dívida da sociedade para com o Cobrador, estava inclusa pasta de dente. Mas não tá. Uma das relações: Estão me devendo comida, buc***, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo (166). Dentes, não pasta de dente. Sobre duas moças que o protagonista observa na praia, ele conta: Elas riem, riem, dentantes (175). Esse dentantes é tudo pra mim. Porque o narrador já mostrou o quanto dentes são importantes pra ele. Não precisa falar mais nada. Com esse simples adjetivo inventado, ele passa a imagem que essas moças são lindas (pra ele), e que elas têm todos os dentes. Esse é um dos meus trechos preferidos do conto:
Fico na frente da televisão para aumentar o meu ódio. Quando minha cólera está diminuindo e eu perco a vontade de cobrar o que me devem eu sento na frente da televisão e em pouco tempo meu ódio volta. Quero muito pegar um camarada que faz anúncio de uísque. Ele está vestidinho, bonitinho, todo sanforizado, abraçado com uma loura reluzente, e joga pedrinhas de gelo e sorri com todos os dentes, os dentes dele são certinhos e são verdadeiros, e eu quero pegar ele com a navalha e cortar os dois lados da bochecha até as orelhas, e aqueles dentes branquinhos vão todos ficar de fora num sorriso de caveira vermelha. Agora está ali, sorrindo, e logo beija a boca da loura. Não perde por esperar. (168)
Lendo isso, hoje em dia, eu não consigo não lembrar do Coringa. Ainda bem que não pode mais comercial de bebidas alcóolicas fortes na TV. Nunca vi um comercial de uísque que não fosse elitista. Eu me identifico com a passagem. Não que eu sinta ódio de classe (acho que eu não tenho mais ódio contra nada e ninguém), mas entendo perfeitamente como a TV pode fomentar o ódio de classe. A TV está toda hora dizendo “Compre. Compre. Compre” - inclusive pras pessoas que não têm dinheiro pra comprar nada. E talvez o garoto pobre também ache que sua identidade só estará completa com o tênis da moda. Por que só o garoto rico pode sofrer lavagem cerebral pra acreditar nessas besteiras? A propaganda também atinge os pobres. Acho fácil ver TV e concluir “estão me devendo”.
Quer dizer, quando foi a última vez que você viu escrito “ódio de classe”, “luta de classes”, esses termos? Parece que, desde que o pensamento único decidiu que o comunismo está morto e enterrado, os conflitos de classe deixaram de existir. É como o pessoal decretar que direita e esquerda são conceitos batidos, sem utilidade nos dias atuais (curiosamente, quase todo mundo que diz isso é de direita). Por isso, talvez, “O Cobrador” pareça datado hoje. Ou não, não sei. Cidade de Deus mostrou um tiquinho que não. Mas ele também fala do passado.
A parte que eu mais odeio do conto é a do estupro, em que o protagonista finge ser um bombeiro (?) para entrar num apartamento, daí tranca a empregada e estupra a patroa. O que mais detesto é que, apesar d'ela resistir (“Não tiro”), ele diz que no final ela gosta: Como já não tinha medo de mim, ou porque tinha medo de mim, gozou primeiro do que eu (174). A cena é curta, e não há muita descrição. E, além do mais, a narração é só dele, e é uma narração um tanto econômica, que pula qualquer filosofia. Então só porque o narrador/protagonista acha que ela goza não significa que ela goza. Não sabemos nem a reação dela quando ele termina. No entanto, quantos leitores param pra pensar? A maior parte tende a ver como verdade absoluta a única narração que nos é apresentada.
Eu estava procurando algum artigo na internet que falasse das três décadas de “O Cobrador” (nadinha), e encontrei uma análise acadêmica do conto, escrita por uma aluna de um curso (paranaense) de especialização em Literatura Brasileira. E co-assinada por uma doutora. Já ouvi falar como funciona isso: o orientador(a) exige que seu aluno coloque seu nome na publicação, para render a ele, orientador, um número maior de publicações. Vergonhoso. Felizmente meus orientadores são profissionais éticos e nunca exigiram isso. Claro, pode haver casos em que o orientador realmente colabora e seja co-autor do artigo. Mas prefiro acreditar que uma doutora não redigiria um trecho assim, como está presente no terceiro parágrafo, em que a análise descreve o estupro em “O Cobrador” como parte do “envolvimento amoroso” do protagonista. Segundo essa análise, a vítima é uma moça da classe média-alta “que a princípio reluta em se entregar, mas acaba demonstrando que sentiu prazer com o estupro”. Primeiro, “envolvimento amoroso”? Como assim? Desde quando estupro tem a ver com amor? “Reluta em se entregar”?! É uma descrição interessante para uma moça que é surpreendida de manhã em seu apartamento por um sujeito que, apontando-lhe um revólver, a manda tirar a roupa, ela recusa, ele lhe dá uma coronhada, rasga sua roupa e a estupra. Quem diz que ela sentiu prazer? O narrador-estuprador. Acredite nele se quiser. Mais tarde essa análise diz que “os atos sexuais são meticulosamente descritos”. Uai, leram um conto diferente do que eu li.
Falo um pouquinho mais do “Cobrador” aqui.
Tipo, adoro a obsessão do personagem/protagonista por dentes. Não por acaso, o conto começa no dentista, onde o Cobrador aguarda, com dor, sua vez de ser atendido. Os trechos em itálico eu tirei do conto:
Ele [o dentista] olhou com um espelhinho e perguntou como é que eu tinha deixado os meus dentes ficarem naquele estado.
Só rindo. Esses caras são engraçados. (p. 165)
Quando o dentista tenta cobrar por ter arrancado seu dente, ele diz que não tem dinheiro. O dentista bloqueia sua saída, o Cobrador tira sua arma e destrói o consultório:
Eu não pago mais nada, cansei de pagar!, gritei para ele, agora eu só cobro!
Dei um tiro no joelho dele. Devia ter matado aquele filho da p***. (166)
Eu tinha certeza absoluta, das outras vezes que li o conto, que na lista de itens que constam da dívida da sociedade para com o Cobrador, estava inclusa pasta de dente. Mas não tá. Uma das relações: Estão me devendo comida, buc***, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo (166). Dentes, não pasta de dente. Sobre duas moças que o protagonista observa na praia, ele conta: Elas riem, riem, dentantes (175). Esse dentantes é tudo pra mim. Porque o narrador já mostrou o quanto dentes são importantes pra ele. Não precisa falar mais nada. Com esse simples adjetivo inventado, ele passa a imagem que essas moças são lindas (pra ele), e que elas têm todos os dentes. Esse é um dos meus trechos preferidos do conto:
Fico na frente da televisão para aumentar o meu ódio. Quando minha cólera está diminuindo e eu perco a vontade de cobrar o que me devem eu sento na frente da televisão e em pouco tempo meu ódio volta. Quero muito pegar um camarada que faz anúncio de uísque. Ele está vestidinho, bonitinho, todo sanforizado, abraçado com uma loura reluzente, e joga pedrinhas de gelo e sorri com todos os dentes, os dentes dele são certinhos e são verdadeiros, e eu quero pegar ele com a navalha e cortar os dois lados da bochecha até as orelhas, e aqueles dentes branquinhos vão todos ficar de fora num sorriso de caveira vermelha. Agora está ali, sorrindo, e logo beija a boca da loura. Não perde por esperar. (168)
Lendo isso, hoje em dia, eu não consigo não lembrar do Coringa. Ainda bem que não pode mais comercial de bebidas alcóolicas fortes na TV. Nunca vi um comercial de uísque que não fosse elitista. Eu me identifico com a passagem. Não que eu sinta ódio de classe (acho que eu não tenho mais ódio contra nada e ninguém), mas entendo perfeitamente como a TV pode fomentar o ódio de classe. A TV está toda hora dizendo “Compre. Compre. Compre” - inclusive pras pessoas que não têm dinheiro pra comprar nada. E talvez o garoto pobre também ache que sua identidade só estará completa com o tênis da moda. Por que só o garoto rico pode sofrer lavagem cerebral pra acreditar nessas besteiras? A propaganda também atinge os pobres. Acho fácil ver TV e concluir “estão me devendo”.
Quer dizer, quando foi a última vez que você viu escrito “ódio de classe”, “luta de classes”, esses termos? Parece que, desde que o pensamento único decidiu que o comunismo está morto e enterrado, os conflitos de classe deixaram de existir. É como o pessoal decretar que direita e esquerda são conceitos batidos, sem utilidade nos dias atuais (curiosamente, quase todo mundo que diz isso é de direita). Por isso, talvez, “O Cobrador” pareça datado hoje. Ou não, não sei. Cidade de Deus mostrou um tiquinho que não. Mas ele também fala do passado.
A parte que eu mais odeio do conto é a do estupro, em que o protagonista finge ser um bombeiro (?) para entrar num apartamento, daí tranca a empregada e estupra a patroa. O que mais detesto é que, apesar d'ela resistir (“Não tiro”), ele diz que no final ela gosta: Como já não tinha medo de mim, ou porque tinha medo de mim, gozou primeiro do que eu (174). A cena é curta, e não há muita descrição. E, além do mais, a narração é só dele, e é uma narração um tanto econômica, que pula qualquer filosofia. Então só porque o narrador/protagonista acha que ela goza não significa que ela goza. Não sabemos nem a reação dela quando ele termina. No entanto, quantos leitores param pra pensar? A maior parte tende a ver como verdade absoluta a única narração que nos é apresentada.
Eu estava procurando algum artigo na internet que falasse das três décadas de “O Cobrador” (nadinha), e encontrei uma análise acadêmica do conto, escrita por uma aluna de um curso (paranaense) de especialização em Literatura Brasileira. E co-assinada por uma doutora. Já ouvi falar como funciona isso: o orientador(a) exige que seu aluno coloque seu nome na publicação, para render a ele, orientador, um número maior de publicações. Vergonhoso. Felizmente meus orientadores são profissionais éticos e nunca exigiram isso. Claro, pode haver casos em que o orientador realmente colabora e seja co-autor do artigo. Mas prefiro acreditar que uma doutora não redigiria um trecho assim, como está presente no terceiro parágrafo, em que a análise descreve o estupro em “O Cobrador” como parte do “envolvimento amoroso” do protagonista. Segundo essa análise, a vítima é uma moça da classe média-alta “que a princípio reluta em se entregar, mas acaba demonstrando que sentiu prazer com o estupro”. Primeiro, “envolvimento amoroso”? Como assim? Desde quando estupro tem a ver com amor? “Reluta em se entregar”?! É uma descrição interessante para uma moça que é surpreendida de manhã em seu apartamento por um sujeito que, apontando-lhe um revólver, a manda tirar a roupa, ela recusa, ele lhe dá uma coronhada, rasga sua roupa e a estupra. Quem diz que ela sentiu prazer? O narrador-estuprador. Acredite nele se quiser. Mais tarde essa análise diz que “os atos sexuais são meticulosamente descritos”. Uai, leram um conto diferente do que eu li.
Falo um pouquinho mais do “Cobrador” aqui.