segunda-feira, 30 de maio de 2022

JOHNNY DEPP E A MÁQUINA DE MOER A REPUTAÇÃO DE AMBER HEARD

Esta semana deve sair o veredito de um julgamento que diz tudo sobre os dias atuais: o caso Johnny Depp vs Amber Heard. Eles foram casados pouco mais de um ano, Heard pediu o divórcio (ambos assinaram um acordo no valor de 7 milhões de dólares) e uma medida protetiva pouco depois, e no final de 2018 publicou um artigo no Washington Post em que se coloca como vítima de violência doméstica, sem mencionar o nome do ex-marido. O super astro a processou por difamação, pedindo a quantia astronômica de 50 milhões de dólares, e ela processou de volta, pedindo o dobro.

O que temos visto (aliás, eu não vi, só li uma ou outra coisa) foi um julgamento ao vivo comentado por todos, um gigantesco festival sensacionalista. Só na sexta-feira, mais de um milhão de pessoas assistiram ao argumentos finais dos advogados.

Muito do que foi dito nessas últimas seis semanas é uma reprise de um julgamento de 2020, em que Depp processou o tabloide britânico The Sun por chamá-lo de "espancador de esposa". Ele perdeu. O juiz considerou que as afirmações de Heard em relação a 12 dos 14 abusos denunciados eram "substancialmente verdadeiras". Aquele julgamento não foi televisionado. 

Confesso que nunca tinha ouvido falar de Amber Heard antes de 2016, quando apareceram os primeiros boatos sobre ela ter sido vítima de Depp. Até agora, este é o segundo post que escrevo sobre o assunto. O primeiro foi um post de seis anos atrás, em maio de 2016, que se chamava "Sobre Johnny Depp e outras atrocidades", em que eu contava que estava na praia e mencionava três coisas desconectadas. Numa delas, publiquei o comentário de uma leitora sobre Heard e Depp (que foi quando o caso começou a vir à tona): "podem observar a quantidade enorme dos comentários no mundo todo dizendo que 'ele é inocente até que se prove o contrário', mas apressando-se rapidamente em dizer que a Amber Heard 'se maquiou' e é interesseira". Isso há seis anos! Imaginem agora... 

Lógico que este julgamento é um sonho tornado realidade para os mascus e misóginos em geral. Obviamente Depp se tornou um símbolo dos homens falsamente acusados e de homens que são vítimas de violência. A tag pedindo justiça para Johnny Depp foi vista 17.7 bilhões de vezes até ontem. A que pede justiça para Heard, 59.1 milhões (menos de 1%). Não tem a menor chance de Heard ganhar, mesmo se ela ganhar. Ela já perdeu. E, por tabela, o combate à violência doméstica também. 

De acordo com a professora de Direito de Stanford Michelle Dauber, "Um homem poderoso usou seu julgamento televisionado para publicamente expor uma mulher que meramente contou sua experiência sob sua perspectiva -- sem citá-lo, sem dar detalhes, simplesmente caracterizando sua própria experiência subjetiva de ter se tornado uma 'figura pública' sobre violência doméstica. É uma catástrofe para sobreviventes em todo o mundo". 

A promotora Silvia Chakian diz: "O que mais chama a atenção é o altíssimo engajamento nas redes sociais de pseudoanalistas comemorando fatos que desconstruam a 'verdadeira vítima de violência'. Há um regozijo quase pornográfico nisso, que é revelador da misoginia latente em relação a mulheres que se levantam contra homens poderosos".

"Pense na mensagem que Mr. Depp e seus advogados estão mandando para Amber e, por extensão, para qualquer vítima de abuso doméstico em qualquer lugar. Se você não tirou fotos, não aconteceu. Se você tirou fotos, elas são falsas. Se você não contou pros seus amigos, você está mentindo. E se você contou pros seus amigos, eles fazem parte da farsa", disse o advogado de Heard na sua arguição final. 

"Os comentários online sobre o julgamento rapidamente deixaram de ser um roteiro dramático de 'ele disse, ela disse' para se tornar uma campanha cibernética para difamar Heard", diz Amanda Hess num artigo no New York Times. Ela aponta que, além das milhões de fãs que Depp conquistou durante décadas, a campanha contra Heard também atraiu ativistas pelos direitos dos homens (mascus), figuras da mídia de direita, manifestantes do "Boicote a Disney", conspiracionistas de abuso sexual, detetives de sofá, qualquer um que desconfie da mídia tradicional, e muitos oportunistas querendo captar um pedacinho de atenção. 

Na minha opinião, Heard não parece ser nada simpática. Nem Depp. Mas dane-se a minha opinião. O fato é que não os conhecemos pessoalmente, não somos seus amigos, tudo que sabemos sobre eles é através dos papéis que fazem e de sua persona (sua imagem pública, na maior parte das vezes construída por publicistas que cobram milhares de dólares). Do pouco que vi sobre o caso, pra mim ficou cristalino que ambos viveram um relacionamento abusivo. Ambos foram agressores e vítimas. 

Uma das cenas mostradas no julgamento (gravada por Heard durante o casamento) é inconteste: Depp berrando e batendo portas de gabinete na cozinha. Praticamente todas as vítimas de violência doméstica contam que, antes de serem diretamente agredidas, o agressor destrói e joga coisas, bate portas, aterroriza. Depp também acusa Heard de ter jogado uma garrafa em sua direção, que decepou parte de seu dedo mindinho (um médico que testemunhou disse que essa versão era improvável, pois a unha permaneceu, e os estilhaços de vidro teriam atingido outras partes da vítima; apoiadores de Depp encheram as avaliações de dois médicos que serviram como testemunhas especialistas com uma estrela). 

Mas é o seguinte: se o júri decidir que ambos cometeram violência um contra o outro, Heard será absolvida, porque fica provado que ela não mentiu, não difamou. O processo é de difamação, não de quem foi o pior cônjuge ou de quem é mais popular. 

liberdade de expressão é bastante absoluta nos EUA. Para um advogado, astros de cinema mundialmente conhecidos precisam ter uma carga muito alta de provas antes de obterem indenização de quem os critica. Pela definição que a lei americana dá à difamação, a lei favoreceria Heard. Os advogados de cada um quiseram mostrar quem é mais explosivo, mais agressivo, mais vítima. Mas especialistas da lei (nos EUA) clamam que essas alegações não deveriam ser o foco num processo de difamação. O advogado de Heard disse aos jurados que a lei não pede que eles sirvam como árbitros do casamento imperfeito de duas estrelas de cinema. Em vez disso, os jurados deveriam levar em conta o primeiro mandamento da Constituição dos EUA: "a liberdade de expressão e o primeiro mandamento dão a Amber Heard o direito de dizer as palavras que ela disse". 

As leis de difamação nos EUA baseiam-se num caso de 1964 na Suprema Corte, do New York Times contra Sullivan. A corte unanimemente decidiu que criticar figuras públicas é um direito permitido pela liberdade de expressão e liberdade de imprensa. Essas figuras públicas só podem receber indenização quando mentiras forem ditas ou escritas sobre eles com "actual malice" (malícia). Ou seja, que a pessoa sabia que as afirmações eram mentirosas. No caso Depp vs Heard, os advogados de Depp precisaram provar que o que Heard disse no seu artigo de 2018 é falso, e que ela sabia que era falso. Além disso, Heard não precisava provar que houve violência doméstica o tempo todo. Só uma vez já seria suficiente. Depp teve que provar que ela inventou o abuso. 

Ao que me parece, é uma tarefa difícil para ambas as equipes, mais fácil para a de Heard. A torcida para Depp certamente nivelou as forças. Uma reportagem estimou quanto custou a defesa de cada um. Depp tem sete advogados. Supondo que cada um cobre 600 dólares a hora, mais os assistentes e viagens durante o julgamento de seis semanas, calcula-se que ele tenha gastado US$ 5.5 milhões. Como Heard conta com uma equipe menor, pode ser que ela tenha gastado 3 milhões, mais 200 mil nos especialistas. Não são valores de meros mortais. De todo modo, independente do veredicto, é praticamente certo que a parte que perder irá recorrer.

Podem crer que haverá várias teses acadêmicas sobre o julgamento, sobre como os fãs de um astro interpretam e deturpam afirmações complexas. Ativistas lembram que processos por difamação são muito comuns para que os agressores possam controlar e coagir sobreviventes. "Este caso não é a exceção. É a regra", diz uma pesquisadora. O caso fará com que vítimas se calem, não denunciem. Imaginem uma vítima vendo como seus amigos e sua família falam de Heard. 

Mesmo que Heard esteja mentindo, seria justificativa pro carnaval que a mídia faz? Justifica as ameaças de morte e estupro que ela vem recebendo? Heard tem tido que usar escolta, pois é ameaçada de morte várias vezes por dia, todos os dias.

Em 2016, provavelmente depois de Heard pedir medidas restritivas contra Depp, ele escreveu: "Ela está implorando por humilhação global. E ela vai receber". Inspirado por Depp, o roqueiro Marilyn Manson, acusado de estupro e agressão física pela atriz Evan Rachel Wood e outras seis mulheres, também está processando sua ex-noiva (Evan) por difamação. Pode ser um bom negócio pro agressor: ele estupra, a vítima denuncia, não dá em nada, a vítima, desesperada, sem poder contar com a justiça, fala sobre isso nas redes sociais, e o estuprador a processa. Às vezes, processa também quem se solidariza com a vítima. É uma forma de tentar limpar seu nome e ainda ganhar uma grana.

Concordo totalmente com Hess: "Como o Gamergate, que pegou uma controvérsia de uma comunidade gamer obscura e a inflou numa campanha cibernética de assédio antifeminista e num movimento maior da direita, este circo niilista é um evento potencialmente radicalizante. Quando o julgamento acabar esta semana, a campanha elaborada para difamar uma mulher vai continuar, agora com uma enorme massa de apoio pronta e um manual de operações testado e aprovado. Só vai precisar de um novo alvo". 

Este caso fará com que o enfrentamento à violência contra as mulheres retroceda vários anos. Uniu grupos antifeministas organizados e indivíduos misóginos, ensinou passo a passo como culpar vítimas, e recrutou adolescentes para criar memes e montagens para destruir pessoas. Não é à toa que mascus e a extrema-direita de todo o mundo estejam celebrando o carnaval fora de época. Lembrem-se: o que é bom pra eles é péssimo para as mulheres.

quinta-feira, 26 de maio de 2022

A POLÍCIA NÃO DEIXOU GENIVALDO RESPIRAR

Ontem marcou dois anos que um policial nos EUA matou George Floyd com um joelho em seu pescoço. As últimas palavras de Floyd foram "Não consigo respirar".

Ontem o Brasil de Bolsonaro produziu sua própria versão, que infelizmente não vai gerar a imensa onda de protestos que o assassinato covarde de Floyd gerou nos EUA. Em Umbaúba, Sergipe, três policiais rodoviários federais pararam Genivaldo de Jesus Santos, 38 anos, negro, que vinha de moto na BR101. 

Imagens gravadas por dezenas de pessoas que acompanharam toda a abordagem mostram os agentes gritando com Genivaldo, derrubando-o no chão, um deles com o joelho em seu pescoço. Enquanto isso, o sobrinho tentava explicar que Genivaldo sofria de transtornos mentais. Estava cheio de remédios para esquizofrenia nos seus bolsos.

Isso não comoveu os policiais, que amarraram um homem desarmado e o colocaram na viatura

Como se isso não fosse suficiente, lançaram algum tipo de gás dentro. Nas cenas, terríveis, é possível ver as pernas de Genivaldo se mexendo, é possível ouvir os gritos dele, é possível ouvir várias pessoas dizendo "Vão matar o cara", é possível ver dois agentes segurando a porta traseira do veículo para que a fumaça fique toda lá. Transformaram um camburão numa câmara de gás ambulante! 

Genivaldo foi torturado e assassinado à luz do dia, com um monte de gente assistindo e filmando. Os policiais provavelmente sabiam que sempre terão o apoio do presidente miliciano. Um dia antes, o genocida aplaudiu a chacina mais recente, que deixou 25 mortos. 

A nota divulgada pela PRF é um festival de cinismo. Fala da agressividade de Genivaldo (não da agressividade dos policiais!). Diz que "foram empregados instrumentos de menor potencial ofensivo" (o que seria maior potencial ofensivo? Matar com um tiro na nuca?!). 

Os agentes ainda tiveram tempo de registrar em boletim de ocorrência que Genivaldo morreu "possivelmente devido a um mal súbito", ou seja, sem qualquer relação com a ação deles. O laudo do IML já os desmentiu: foi morte por asfixia e insuficiência respiratória.

Será que esses agentes serão punidos? Quem os treinou? Por que, para a nossa polícia, as vidas humanas têm tão pouco valor? Por que, para eles, vidas negras não importam? 

Hoje moradores de Umbaúba fecharam a via para protestar. Mas é pouco, é muito pouco. 

Deveríamos ter protestos parando o país. Precisamos tirar Bolsonaro do poder urgentemente. É óbvio que não foi ele que inventou a nossa polícia que tortura e mata. Mas é óbvio que os policiais se sentem mais seguros para cometer atrocidades com ele distribuindo medalhas de mérito a quem mata mais. 

O Brasil precisa voltar a respirar. 

UPDATE: Já sabemos por que os policiais pararam Genivaldo: porque ele dirigia a moto sem capacete. Está no BO assinado por cinco agentes da PRF. Aquele mesmo BO em que eles descrevem uma "fatalidade" "desvinculada da ação policial legítima". Há duas menções indiretas a jogar gás dentro da viatura, descrito como "uso das tecnologias". Enquanto isso, o presidente miliciano participa de motociatas sem capacete dia sim, dia não. Sempre escoltado pela PRF.

quarta-feira, 25 de maio de 2022

PAOLA, CONDENAR O #ELENÃO É ATACAR QUEM LUTA

Hoje deve ser o primeiro dia na semana em que a chef Paola Carosella não está nos trending topics do Twitter. 

Num programa chamado DiaCast, Paola afirmou que "é muito difícil se relacionar com quem apoia Bolsonaro por dois motivos: ou porque é um escroto, ou é burro". Bolsonarentos se sentiram pessoalmente ofendidos e fizeram o que fazem sempre: ameaçaram, foram misóginos e xenofóbicos ("Volta para Argentina cozinheira" foi uma das tags), deram avaliações negativas aos dois restaurantes dela sem nunca terem pisado lá, promoveram boicotes etc.

Mais uma vez, não deu certo. Graças à propaganda (mesmo negativa), seu restaurante Arturito (no bairro de Pinheiros, SP) teve fila na porta ontem. O tempo de espera para o almoço até conseguir uma mesa era de 40 minutos. As reservas para o final de semana se esgotaram. Parece que aquele ditado reaça "quem lacra não lucra" não é muito verdadeiro. Mais à tarde, gente de esquerda levantou a tag "Paola lacra y lucra".

Porém, antes dos bolsonarentos descobrirem a entrevista da chef, os ciristas decidiram destacar outro trecho da Paola no podcast, em que ela critica os protestos Ele Não. Segundo um cirista, foi um "movimento criado pela esquerda caviar-leblon". Lógico que ciristas vão achar isso. Ciro, que assim como o PCO e a direita nunca perdeu uma só oportunidade de bradar contra as "pautas identitárias", dois dias depois do Ele Não já dizia que aquilo havia sido um erro. Foi simplesmente o maior movimento popular organizado por mulheres na história do Brasil, e o maior protesto contra Bolso durante toda a campanha eleitoral de 2018, mas, pra quem vive de menosprezar mulheres, foi um erro.

É compreensível que machistas pensem assim, mas a Paola?! Pô, Paola! Ela disse no DiaCast (diante de entrevistadores que não a confrontaram, ou seja, devem concordar com ela):

"Eu fui contra o movimento Ele Não porque esse movimento está fazendo ele [Bolsonaro] crescer, porque quem faz parte do movimento Ele Não, quem estava no movimento Ele Não? Não eram as favelas, não era o brasileiro tradicional religioso que vai na igreja, que acredita na família tradicional, eram feministas, brancas, das grandes capitais, manifestando meio que de peito pra fora, escrito 'ele não' de batom vermelho, eram movimentos de artistas, era uma elite -- que esqueceu que o brasileiro é muito religioso, que o brasileiro é muito conservador, e quem era a imagem do brasileiro religioso conservador? Era o Bolsonaro. E quem tava falando 'ele não'? 'Uns louco aí que eu não sei quem são'. Na cabeça dessa galera, óbvio". 

Pelo jeito, a Paola não participou do ato e não sabe muito sobre ele. Tudo começou com uma página no Facebook, o grupo Mulheres Unidas Contra Bolsonaro, criado por Ludimilla Teixeira (uma mulher negra e de esquerda da periferia de Salvador) no final de agosto de 2018. O grupo chegou rapidamente a um milhão de participantes (todas mulheres), já que a rejeição nossa ao fascista sempre foi enorme, e fez tanto barulho que, em meados de setembro, ela foi hackeada por criminosos bolsominions. Mas a página foi restabelecida no dia seguinte, continuou crescendo, e marcou os protestos, que aconteceram em quase 400 cidades e 50 países em duas datas: no dia 29 de setembro, durante o primeiro turno, e no dia 20 de outubro, antes do segundo turno. Aqui o belo manifesto lançado pelo Ele Não de Rio e SP.

Eu não tenho Facebook, mas tentei ajudar no que pude a impulsionar o grupo e os protestos, e marchei em Fortaleza junto a alunas e ao maridão (muitos homens participaram). Lembro da minha inocência. Numa palestra antes do primeiro Ele Não, falei sobre a minha preocupação: e se houvesse manifestantes infiltrados que quebrassem tudo, ou que, sei lá, comemorassem a facada no Bolso, ou que invadissem alguma igreja? 

Santa ingenuidade, Batman! Eu tinha esquecido que nada de polêmico precisa acontecer para que a extrema-direita, especialista em fake news, difame um ato. No mesmo dia, páginas e canais bolsonaristas já mentiam sobre o Ele Não, usando imagens de outros países, outros atos, outras épocas, e inventando todo tipo de discurso e montagem.

As milhares de pessoas que estiveram no Ele Não sabem que os atos foram gigantescos, pacíficos, lindos, cheios de diversidade, inclusive com várias crianças. Eu não vi mulheres com peito de fora (mas e se houvesse, o quê que tem? Até nas Marchas das Vadias mulheres com peito de fora eram uma minoria). Eu vi muitas jovens participando de um protesto pela primeira vez na vida. 

Tinha de tudo no Ele Não: trabalhadoras, integrantes do MST e da CUT, mulheres de movimentos de moradia, evangélicas, sindicalistas, professoras, estudantes, Mães de Maio, camponesas, indígenas. E estava longe de ser um protesto de elite. A doutoranda de Ciência Política Antonia Campos, da Unicamp, conta que um pesquisador comparou uma pesquisa do Ibope realizada em 2013 nas jornadas de junho (em sete capitais) com uma pesquisa no Ele Nao (só em SP), com outra da marcha pelo impeachment em 2015, para comparar a renda dos participantes. A renda dos dois primeiros protestos foi bem parecida.

Só que outras coisas aconteceram naquele final de semana de 29 de setembro. A Luka, do Movimento Negro Unificado, que participou ativamente do Ele Não, lembra que no mesmo fim de semana Bolso fechou as alianças com as lideranças evangélicas em todo o Brasil. E a fakeada em Bolso já havia ajudado a diminuir a rejeição das mulheres ao fascista.

No número de participantes, na potência dos protestos, o Ele Não foi um sucesso incrível. Mas, infelizmente, não foi suficiente para barrar Bolso. Há um outro jeito de ver a situação: talvez, sem o Ele Não, o boçal teria ganhado já no primeiro turno. 

Não entendo como tem gente que gosta de culpar quem luta por tudo que dá errado. Tem uma galera que culpa até o "café com bolo" (o pessoal que pacientemente sentou nas praças e ofereceu bolo e café pra quem quisesse conversar sobre o futuro do país)! Ciristas, por exemplo, até hoje responsabilizam Lula e o PT e todos os petistas e simpatizantes pela vitória de Bolso. Afinal, se o 12% (bons tempos!) tivesse ido pro segundo turno, óbvio que ele ganharia do Bolso (não ganharia não). A maior parte das pessoas de esquerda acha ridículo culpar o PT pela derrota do PT. Mas tem muita gente que culpa o Ele Não pela vitória de Bolso e não vê nada de absurdo nisso.

Como disse o @NoOneChomsky, a fala de Paola "é um exemplo didático da pessoa de classe média/alta que faz ventriloquismo dos próprios preconceitos e valores usando um brasileiro imaginário, pobre, conservador, meio ignorante, mas um puro, tadinho". 

Pois é. Só porque os bolsonarentos farão montagens e espalharão todo tipo de fake news sobre os nossos protestos não devemos protestar? Nunca mais? 

Ou isso só se aplica a protestos organizados e protagonizados por mulheres? Só porque o brasileiro médio é conservador e religioso (um puro!), feministas não devem sair às ruas para não ofender sua sensibilidade? Faz algum sentido essa lógica?

Paola tem minha sororidade ao ser atacada pelos mesmos misóginos fascistas que atacaram o Ele Não. Mas precisa se informar melhor sobre um protesto tão importante e gigantesco que obviamente vai se repetir nessas eleições. E, a todos os outros que criticam o Ele Não: vamos parar de condenar quem luta.

terça-feira, 24 de maio de 2022

QUEM ODEIA A UNIVERSIDADE PÚBLICA QUER QUE ELA COBRE MENSALIDADE

Ontem sorrateiramente duas pautas muito parecidas ganharam evidência. Ambas visam cobrar mensalidades nas universidades públicas.
Por qual você quer começar? Um repórter do Estadão chamou atenção para o documento "Projeto de Nação, o Brasil em 2035", que tem 93 pags e foi elaborado por milicos. O plano foi lançado numa cerimônia semana passada que contou com discurso do vice Mourão, em que ele disse que esse era o "Destino Manifesto do nosso país". Pra ter ideia do nível, o principal autor é um milico que presidiu a ONG Terrorismo Nunca Mais, do famoso torturador ídolo de Bolso Coronel Ustra.  
O manifesto prevê o bolsonarismo no poder até no mínimo 2035. Entre os 37 temas há várias metas. Uma delas é o fim da obrigatoriedade do SUS. Outra é a cobrança quase imediata de mensalidades nas universidades públicas -- a partir de 2025. Isso para combater o que milicos chamam de "centros de luta ideológica e de doutrinação político-partidária".
Isso precisa ser muito bem espalhado durante a campanha eleitoral. A população precisa saber em que projeto de poder está votando. Quem é a favor do fim do SUS e do ensino superior gratuito deve sim votar em Bolso. Mas a maior parte da população é contra essas aberrações. Até quando os pobres de direita continuarão sendo enganados pelo messias?
E quem é realmente a favor que os milicos sigam sendo uma casta à parte, aqueles que compram com o nosso dinheiro leite condensado, picanha, Viagra, prótese peniana, lagosta e sabe-se lá quantos outros mimos que só ficam entre as mais altas patentes? Aqueles que preferiram manter os hospitais militares vazios a abri-los para o tratamento emergencial de pacientes com covid durante a pandemia?
O outro tema está altamente relacionado ao primeiro. O deputado bolsonarista General Peternelli é autor de um projeto para alterar os artigos 206 e 207 da Constituição e, assim, passar a cobrar mensalidades nas universidades públicas de todo o país. O relator do parecer é Kim Kataguiri do MBL, do mesmo partido do milico (ambos do União Brasil que hoje também abriga Sérgio Moro). A votação estava marcada para hoje na Câmara dos Deputados, mas Kim provavelmente percebeu que o projeto não passaria e meteu uma licença médica. Uma outra data ainda não foi marcada.
Esse pessoal que quer obrigar as universidades públicas a cobrar mensalidades é o mesmo que odeia as universidades públicas, que as vê como centros de doutrinação ideológica, que diz que seus professores são vagabundos que não trabalham, e que seus alunos são todos maconheiros e comunistas. É o mesmo pessoal que tentou passar (e falhou, ainda bem) o Escola sem Partido e que é contra as cotas.
Não entendo como gente que odeia universidades queira opinar sobre elas. Kim é aquele que, quando estudou na Universidade Federal do ABC, declarou que sabia mais que todos seus professores, e largou o curso. Espero que esse verme seja cassado assim como seu coleguinha do MBL, Mamãe Falei (e também Gabriel Monteiro).
E já passou da hora de milicos terem lugar na política. Eu sou a favor do fim das Forças Armadas. Que esses milicos piranhudos e viagrentos removam suas garras do Brasil. Educação não é mercadoria! #PEC206nao