Infelizmente, perdi o halloween no meu ano americano porque bem naquela noite eu estava voltando de Washington para Detroit. Deu pra ver as verdadeiras plantações de abóboras que viram os lindos Jack o'lantern (são bonitos mesmo, e fico na torcida pra que o pessoal aproveite pra comer o que vem dentro da abóbora). Acabei não vendo um único bichinho de estimação fantasiado, ao contrário do que anunciam dezenas de catálogos que vendiam “fantasias para toda a família”, incluindo... gatos e cachorros. Os gatos naquelas fotos nunca pareciam muito felizes (se bem que devem ter se vingado de quem ousou colocar neles as orelhas de coelho). Enfim, só a celebração dessa data movimenta nos EUA 5 bilhões de dólares. Ou movimentava, antes da megabaitasuperduper crise do capitalismo.
Mas o que mais chama a atenção desta feminista não-consumista que vos fala é como as fantasias mudaram nesses últimos tempos. Eu estudei em escola americana (e católica) em SP, então, pelo menos até a quinta ou sexta série, era esperado que viéssemos vestidos a caráter. Eu nunca dei bola praquilo e tinha um vestido simples e preto (com chapéu e vassourinha) que me transformava numa linda bruxa. Um ano eu decidi, não sei por que cargas d'água, alugar (tipo, pagando!) uma fantasia numa loja especializada, e fui de Julieta (sem Romeu). Minha irmã era mais criativa. Uma vez ela foi vestida de relógio cuco, que ela adaptou de uma caixa de papelão.
Mas esses tempos inocentes passaram. Hoje as fantasias estão totalmente divididas por gênero. Ok, já estavam no meu tempo, mas muito menos. Atualmente meninos se vestem de computador; meninas, de cupcakes. E você não vai ver um menino fantasiado de bolinho. E, em tempos de erotização precoce, as fantasias das meninas já vem com enchimento na parte dos seios. Porque com seis anos uma menina já tem que ser mulher, e nosso nível de feminilidade, como sabemos, é medido pelo tamanho do sutiã.
Li que ano passado uma mãe e blogueira americana ouviu de seu filho de cinco anos que ele queria ir fantasiado pra uma festa na escola de Daphne, a moça do Scooby Doo. A mãe achou um pouco estranho mas respeitou o desejo de seu filho, imaginando que ninguém tiraria sarro de uma criança dessa idade. Tolinha! Parece que os coleguinhas do filho realmente levaram um tempo até serem convocados pra Patrulha da Normalidade (uó uó uó, você não é normal? Estamos de mal!). Foram as mães das crianças que se assustaram –- como assim, você deixou seu filho homem se fantasiar de uma personagem feminina?! Você não tem medo que ele vire gay? Ela respondeu que as pessoas não viram gays, e, mesmo que virassem, ela amaria o filho do mesmo jeito. E ademais, você não tem medo que seu filhinho aí vestido de ninja vire ninja?
No entanto, o halloween não é só pra crianças. Há montes de festas para adultos nos EUA, o que permite que o americano médio possa exercer seu lado racista sem ser muito julgado. Por exemplo, pipocam os caras portando sombrero com um bigodón pra tentar se passar por mexicano, o que é estranho num país que tá cheio de mexicanos como os EUA. E onde eles não são exatamente bem recebidos.
Mas mais incrível ainda é que os homens tenham várias opções, e as mulheres, quase nada. Homens podem se fantasiar de médico, bombeiro, comissário de bordo, policial, qualquer superherói... E as mulheres têm suas fantasias equivalentes: enfermeira sexy, bombeira sexy, comissária de bordo sexy, policial sexy, superheroína sexy... Hoje uma mulher adulta já não encontra mais uma fantasia de, vá lá, Pocahontas. Só tem a versão Pocahontas sexy, também conhecida como Pocahottie. Nem sei como fazem essas moças, já que final de outubro já é frio pra caramba em muitos lugares dos EUA pra ficar com barriga e pernas descobertas.
A oferta dos uniformes sexy pra mulheres é tamanha que tem quem chame o halloween de “Dia de Vestir-se de Prostituta”. E daqui a pouco, não duvide, as revistas femininas vão começar a ter edições de “Entre em forma para o halloween”. Olha, nada contra quem quer se disfarçar de vampira sexy, por exemplo. Sou contra sexualizar profissões, como enfermeira sexy ou professora sexy, porque essas profissões já rendem mil e um fetiches e certamente não são as enfermeiras e professoras que saem ganhando por serem vistas como objetos sexuais. Minha queixa é que não haja escolhas. Aparentemente, na última década, todas as fantasias de halloween para mulheres passaram a ter apelo sexual. E aí, cadê a liberdade? Minha outra queixa é que a lição que mulher nasceu pra ser sedutora está sendo ensinada cada vez mais cedo. Não há explicação lógica (que não seja a ganância do capitalismo) para que crianças estejam tão separadas por gênero. Nenhum menino vai virar gay se se fantasiar de Daphne do Scooby Doo. E nenhuma menina vai virar lésbica se sair de pirata (não pirata sexy, porque, sinto muito, criança não tem nada que ser sexy).
Pelo jeito, o que vem acontecendo com as fantasias de halloween é um bom indício de modelos falidos de masculinidade e feminilidade –- vendidos em tamanho único.
P.S.: E você nunca, nunca, nem em cem anos adivinhará a que se refere essa fantasia sexy ao lado. Tá bom. Se você adivinhou, é porque passou tempo demais vendo desenhos animados. Sim, essa fantasia é a da peixinha de Procurando Nemo. O quê, você não sacou pelas cores?!
P.S.2: Também existem “fantasias sexy para homens”. Mas elas são assim (imagem á esquerda). Dúvida: quanto tempo levaria pra um cara vestido de vampiro com uma boneca inflável cair no seu conceito?