skip to main |
skip to sidebar
Recebi este email delicioso da Nicole, uma adolescente cheia de dúvidas que, vocês vão ver pela fluidez, escreve muito bem. E ela autorizou a publicação. Bom, creio que vocês vão poder falar mais coisas legais e encorajadoras pra ela. Pra mim, faz tanto tempo que fui adolescente que mal me lembro como foi. Tenho a impressão que foi tranquilo, mas, claro, eu tinha mil e uma dúvidas. E mil e uma certezas. Pensava que quando chegasse aos dezoito anos eu seria uma super adulta independente, morando sozinha e tal, ha ha. Nicole, querida, tudo que posso dizer é: 'guenta firme aí. Porque chega uma hora que a gente passa a depender pouco ou nada dos outros, e nessa hora pode fazer as próprias escolhas e não dar bola pro que pensam a respeito da nossa vida. Chatos, metidos, babacas sempre existirão. Mas você vai poder mais ou menos ignorá-los. Com 16 anos é muito mais difícil. Força aí, menina! Tenho dezesseis anos, sou baixinha e... gordinha. E, no momento, estou de saco cheio.Quando eu era criança (aí vem algum famoso comentário: "Era?") eu sempre fui.. esquisitinha. Sei lá. Eu sempre pensava diferente das outras crianças. Ah, por favor, não estou dizendo que eu era mais inteligente que elas. Eu era a que sempre sobrava, por agir diferente. Eu ficava muito triste no começo, sabe. Fui aprendendo a conviver com isso, mas estou saindo do foco.Quando eu era criança, eu ia na igreja (ainda vou, mas não porque eu queira). Eu era a ÚNICA criança que diziam que deveria parar de ser infantil. Mas, peraí, gente: Eu tinha OITO ANOS quando isso começou. Eu fazia uma brincadeira, eram três repreensões. Enquanto isso, as outras crianças brincavam do jeito delas, e NADA acontecia. Incrível que eu era uma das únicas que nunca quebrou nada enquanto corria por aí!Ah (vai ficar meio desviado do assunto, mas tenho que botar), e sem esquecer o comentário de um garoto/jovem/seilá, "Nossa comendo tanta bala. Foi assim que minha irmã (A irmã dele ERA bem gorda) começou."E foi. 8 anos. 9 anos. 10 anos. 11 anos. 12 anos. 13 anos. (É, pra mim, infância termina nos treze). E, aos catorze, eu ainda era criança, claro. Eu sabia que um dia aquilo tudo ia acabar, sabe? Que as responsabilidades iam chegar. Não que eu nunca tivesse desejado crescer e ter minha própria casa o mais rápido possível, mas eu sabia que a infância nunca mais ia voltar.Bom. Entre 14-16 anos, eu mudei, E MUITO. Passei por um monte de besteira adolescente, de "ninguém me ama ninguém me quer". E é a fase que muitas pessoas acham que você está só fazendo drama. De certo modo, está. Mas quando você passa por isso (SE você passa por isso), você se sente a escória do mundo. Enfim, enfim.Nos meus quinze anos, quase dezesseis, foi que eu me tornei o que sou agora. Sou tímida, mas sempre fui. Às vezes, eu sinto que penso demais. Um pensamento leva ao outro, e subitamente, estou triste. Penso que minha vida está horrível, que eu nunca vou decidir o que quero ser na vida, que vou morrer antes de aprender tudo o que quero aprender. Aí, quando eu penso, eu fico sozinha no meu canto. Aí voltamos ao foco: igreja."Nossa, você é tão estranha, porque não usa um vestido?" "Nossa, seu cabelo tá tão curto, parece um menininho" "Nossa, você não conversa direito com ninguém". "Nossa, virou vegetariana? Tá revoltadinha?". Nossa, nossa, nossa, NOSSA.Ah, e sem esquecer o comentário de um garoto/jovem/seilá, "Nossa comendo tanta bala. Foi assim que minha irmã (A irmã dele ERA bem gorda) começou."Aí vem. "Você tá tão diferente, você era tão mais alegre quando era criança."PÁ. Tapa na cara. Não estou botando a culpa toda naquelas pessoas, até porque tive uns problemas com más influências que não vem ao caso, mas acho que nem preciso botar o que senti quando ouvi aquilo. Mas o que me enche o saco é aquele monte de pessoas pregando o amor de jesus, o amor de deus, a compaixão, o espírito-santo, e que, no fundo (ou até na casca mesmo) são tão ruins ou às vezes piores do que as outras que vivem fora do “lugar sagrado”.Uma vez eu ouvi "Já percebeu que os únicos amigos que param pra ouvir seus medos/aflições e não riem de você são da igreja e não do 'mundo carnal'? " Pera, pera. Pera aí. Comigo foi sempre ao contrário. Só porque eu sou diferente dos de lá, eles NUNCA quiseram saber como eu estava, se eu me sentia bem.(e, desculpe, desculpe, se você está lendo isso até aqui, eu abrirei outra frente, mas prometo demorar menos)Que história é essa de que adolescente é só uma massa de hormônios furiosa? Que tudo que sentimos são coisas frescas e somente uma paixão (ou seja, dura pouco tempo)?Ouvi (ouço muitas coisas) na igreja (de lá sai muita coisa boa, como pode ver) que as únicas preocupações de um adolescente era que mamãe não deixa sair pra ir no cinema e que mamãe não comprou a calça jeans.Eu sou adolescente e posso dizer que podemos ser tão racionais como adultos. Não, não a todo tempo, porque nem adultos conseguem ser racionais sempre (alguns são irracionais quase sempre). Há também outros adolescentes, que a meu ver podem chegar a ser muito fúteis, mas eu não os conheço por dentro.Eu já amei, já perdi pessoas importantes na vida, já fui traída e humilhada. Claro que os hormônios influenciam. Mas as pessoas banalizam os "nossos", por exemplo aquela paixão platônica.Às vezes eu me sinto perdida, Lola. Ouvir que aquele amor que você sente por alguém é nada mais que besteira, que tudo passa. "Não conhecem a dor de verdade". "Nem saiu das fraldas ainda”. Dói, Lola, dói.Obrigada se leu até aqui, peço desculpas se algo ficou confuso.Abraços para você, da Nicole, uma adolescente na TPM que achou que talvez colocar algumas coisas pra você fosse ajudar a esfriar um pouco a cabeça.
Esse conceito de Mansplaining é bastante novo pra mim, embora seja uma expressão que tem se popularizado em inglês. Como ainda não vi versão em português, vou traduzi-lo como Homexplicanismo. Um excelente post de uma feminista chamada Sady num blog americano conta tudo (minha tradução): “Homexplicanismo não é apenas o ato de um macho se explicar; muitos homens conseguem explicar coisas todos os dias sem serem minimamente ofensivos a suas interlocutoras. Homexplicanismo é quando um cara explica a você, mulher, como fazer algo que você já sabe fazer, ou como você está errada a respeito de algo que você de fato está certa, ou apresentar 'fatos' variados e incorretos sobre algo que você conhece muito melhor que ele. Pontos extras se ele te explicar como você está errada sobre algo ser sexista!” (Num outro blog, a autora dá uma dica ao homexplicador: “Ignore tudo que todas digam [na caixa de comentários], e aí acuse todo mundo de ser sexista com você! Prossiga com uma explicação intensa. As muié são lerdinhas, mas elas um dia vão te entender! Porque você é um HOMEM! E você está EXPLICANDO!” )Continua Sady: “Há muitas variedades de homexplicanismo. Mas talvez nenhuma seja tão ridícula e ofensiva como esta: o Homexplicador Pseudo-Feminista. É uma forma particularmente ilógica que acontece em todo lugar, principalmente quando mulheres feministas entram em contato com caras liberais [de esquerda; progressistas]. Não é só um carinha à toa dizendo 'Isso não é sexista', como eles dizem toda vez que uma mulher pronuncia a palavra 'sexismo' em relação a qualquer coisa. É um cara se apropriando do feminismo para poder silenciar mulheres que identificam algo como sexista.”A autora diz que, em epidemias de homexplicanismo, rapidamente a caixa de comentários de um blog feminista é inundada por homens raivosos que recorrem à palavra “vadia” e demais ofensas que toda feminista (eu diria toda mulher) conhece. Ela afirma que é por isso que a maioria dos blogs feministas modera cuidadosamente a seção de comentários, “para que pessoas que tenham vontade de discutir sexismo sem experimentá-lo possam falar sobre isso sem serem soterradas ou assustadas por toda a Ira Masculina”. Ela tem razão. Mas geralmente o troll se revolta por ser deletado e chora suas pitangas reclamando que, se ele não pode criticar o feminismo, qual o motivo de ler feministas, ou de tentar entender feministas? (Esses trolls têm uma lógica engraçada, vamos concordar). E aqui a blogueira responde à pergunta e desenha o ponto que incomoda tantos homens (e muitas mulheres que acham que o amor conquista tudo e que devemos ser boazinhas e compreensivas com os homens, para que assim eles gostem da gente): “Se você ouvir mulheres e feministas, você poderá começar a entender alguns pontos básicos, tais como: as mulheres não têm que automaticamente te aceitar como um expert, principalmente quando o assunto em discussão (sexismo!) é algo que você nunca experimentou em primeira mão. As mulheres não têm que te fazer sentir 'confortável' ou 'bem-vindo' em toda conversa. As mulheres não têm que automaticamente permitir um espaço pra você nas discussões delas, nos blogs delas, ou na vida delas. As mulheres não têm que permitir que você entre nos movimentos políticos delas, nos espaços delas, no corpo delas, ou em qualquer outra coisa que pertença a elas; você, como homem, não é merecedor de atenção, admiração, afeição, respeito, ou companhia das mulheres, só porque você quer. E se uma mulher disser 'não', você deve respeitar que aquela mulher disse não, e você deve parar.”E Sady compara com perfeição o comportamento dos trolls machos na internet com o que acontece na rua quando um homem chega pra uma mulher e ela não está interessada. Primeiro a blogueira aponta que nós nunca dizemos não. Geralmente damos uma desculpa, como “Não, eu tenho um namorado”. O cara nos ignora e continua falando. E quando dizemos “não” com firmeza, “O cara simplesmente passa a gritar. Ele diz que você não é nem tão gostosa. Ele diz que você é uma vadia (Minha favorita é 'Sua vadia, eu tenho um Rolls Royce'). Às vezes ele te segue pela rua, gritando com você; às vezes, ele te segue com o carro. Esses caras sempre têm tanta certeza que eles merecem seu tempo e sua atenção que eles vão te incomodar até que você dê isso a eles, ou que você tenha medo e se arrependa por não ter dedicado esse tempo e atenção a eles”. E a blogueira não para aí: “É assim que as mulheres são condicionadas a viver numa cultura sexista e de estupro. Assim como a maioria das mulheres, vivo numa sociedade em que violência, assédio e coisas assustadoras podem acontecer a qualquer momento, só porque eu disse 'não' pra um babaca qualquer sem ser boazinha. Fazer isso é tão perigoso que a maior parte das mulheres não se atreve; depois de alguns incidentes tenebrosos, elas aprendem a inventar desculpas, a sorrir, a ser doces e receptivas, a agir como se todo babaca na rua fosse um novo amigo precioso com quem elas adorariam conversar durante horas, se um destino cruel não tivesse atrapalhado. É assim que é ser uma mulher: ser legal com todo babaca, porque esse babaca qualquer pode ser aquele que vai te machucar. E, se ele te machucar de qualquer jeito, dirão que você lhe deu falsas esperanças”. Bom, eu acho brilhante tudo isso que ela diz, se bem que nesta última parte ela exagera um tiquinho: “Tudo -– homexplicanismo, assédio sexual, cultura do estupro, e tudo o mais que não gostamos sobre como homens tratam as mulheres, da violação menor à mais violenta, tudo nasce da ideia que as mulheres devem ser ignoradas ou punidas quando dizemos 'não'”. Pois é, não sei se é tudo, mas esse é o conceito do entitlement, do merecimento que grande parte dos homens sente em relação às mulheres. É preciso combater esse conceito de merecimento. Porque desculpe estragar sua festa, mas você não merece nada só por ser homem. Você pode merecer alguma coisa por ser um cara bacana. Isso quando e se a mulher quiser, lógico. Aceite essa ideia tão radical.
Retrato da felicidade? Pergunte-me como Beckham e Victoria foram apontados como exemplo de casal feliz. Por quê? Porque ela é mais magra que ele. Sério mesmo. Deve ser por isso que ela tá sempre sorrindo nas fotos (alguém sabe se ela tem dentes?). De fato, passar fome e flertar com a anorexia enche qualquer pessoa de alegria.De acordo com uma pesquisa americana, os casais são mais felizes quando o marido pesa mais que sua mulher, porque ele vai achá-la bonita por mais tempo e ela ficará saltitante por se sentir amada. Oh my god, né? Porque homens só gostam de mulheres magras! E porque mulher só pode ser feliz se for testada e aprovada por um homem. Este é o tipo de estudo que só a Psicologia Evolucionista pode corroborar. Aposto como virão estudos provando que nossos antepassados cavernosos já adoravam uma mulher bem magrinha. Aquelas estátuas de louvação às Vênus gordas devem ter sido colocadas por grupos terroristas de aceitação do corpo.Mas o que me choca mais que a pesquisa em si é a notícia usar Beckham e Victoria como casal mega feliz. A prova, além da alegria contagiante de Victoria, é que eles estão casados há 11 anos. Deve ser um recorde mundial! Parem as rotativas! Eu, gorda, e muito mais pesada que o maridão, estou casada há 21 anos! Mas tá certo, não somos celebridades. Então que tal usar Pierce Brosnan e sua esposa Keely como modelo de casal feliz? Eles estão juntos há 14 anos e parecem bem apaixonados pra mim. Mas, claro, deve ser photoshop. Gordas não podem ser felizes. Aprendi isso já quando era criança.
Esta ilustração que você vê aí em cima foi a Aoi Ito que fez, em tempo recorde (no Twitter ela assina com outro nome complicado, @_Kosmonavt). E é uma história real. Aconteceu comigo quinta à noite. Fui ao banheiro do meu quarto e, voltando, entre a cama e o guarda-roupa, vejo um escorpião. Vou repetir: um escorpião! Como a única vez na vida em que vi escorpiões foi no Instituto Butantã, em SP, eu tive que olhar mais de perto pra me certificar. E nisso meu gato Calvin, que a essas horas da noite me segue pra todo canto (pro banheiro pra beber água da pia, pro corredor pra brincar, pra cozinha pra comer, pro escri pra dormir em cima do computador), tava lá. Só que ele não viu o escorpião. O escorpião, no entanto, viu o Calvin, e já ia indo rapidamente em sua direção, com a cauda enrolada em cima de seu corpo. Eu gritei “Saiiiii, Calvin!”, dei um chega-pra-lá nele (que estava sentado, na maior), e peguei o inseticida no armário. E taquei um monte de inseticida no escorpião, que me ameaçava com sua cauda. Finalmente, ele morreu, e sua cauda ficou desenrolada, esticada (todas as fotos são dele, tiradas pelo maridão). O escorpião em si era amarelo mais pra laranja, e muito pequeno, tipo metade do meu dedo (e meus dedos já são pequenos). Acho que uns 3 centímetros. Eu pensei que esses bichos fossem maiores. Meu quarto. Calvin ao fundo, cadáver de escorpião em primeiro plano. Lógico que joguei meu drama no Twitter –- e recebi muita solidariedade. Mas também vários alertas que me deixaram apavorada. Exemplo: disseram que esse escorpião era um fihote ou no máximo adolescente, e que agora devo procurar seus pais (e me falaram pra procurar em lugares escuros, onde eles se esondem. Não parece filme de terror, quando o personagem bocó vai atrás do serial killer vilão, e ainda por cima no escuro?! Pô, se tiver um lugar escuro com chance de conter escorpiões, eu vou na direção oposta!). Também me disseram que um escorpião-preto mata uma criança em duas horas e, se for uma criança gorda, em 15 minutos (viu como obesidade mata? É que o pessoal que só quer nos ver saudáveis sempre diz! Falando sério, depois me disseram que os escorpiões amarelos são mesmo os mais perigosos). Outros disseram que gato come escorpião. Prefiro acreditar que eu salvei a vida do Calvin. Mais algum sugeriram eu comprar algumas galinhas (mais garantido que gatos no quesito "comer escorpião").Quando uma aluna me contou que um técnico de algum órgão sanitário foi à casa dela e lhe disse que Fortaleza vive uma epidemia de escorpiões, eu me senti melhor. Quer dizer, não é que só a minha casa (o meu quarto, mais especificamente) tá passando pelas sete pragas do Egito. Saber de tal epidemia me faz crer que encontrar um escorpião no quarto não é algo pessoal. Não é que alguém lá em cima não gosta de mim. Talvez não goste da minha cidade, sei lá, e eu só moro aqui (e esse ser devia ir à Prainha pra gostar mais de Fortaleza).Acho que depois dessa vou mesmo dedetizar a casa (o meu problema é onde deixar os gatinhos enquanto o ambiente tá tóxico). Nosso escorpião fotografado bem de pertinho.Na noite desta tragédia que foi me deparar com um escorpião, a quem eu enfrentei heroicamente, e sozinha (maridão jogou xadrez a semana toda, e só chegava em casa depois da meia noite), o maridão viu o título do post do dia e perguntou: quem escreveu esse guest post? O escorpião? Pois é, porque o título era “Invadindo um espaço que não me pertence”. Pior é que o maridão já escreveu um guest post chamado “Lolinha e o escorpião”, porque ele usa essa gíria de séculos atrás pra dizer que sou pão dura miserável (essa tem um escorpião no bolso). Fui lembrá-lo disso, e ele: “Ahá! Pelo menos a gente já sabe de onde veio esse escorpião!”. Ele também falou que na quinta eu estive cheia das premonições. Fora o título do guest post (que iria ser originalmente “Quem quer ser um universitário?”, e eu mudei de última hora), eu o avisei, antes d'ele ir jogar xadrez: “Nada de jogar pra empatar! [o empate era um bom resultado pra ele]. Joga pra ganhar, viu? Vai pra cima! Sacrifica a dama!”. E o maridão foi lá, sacrificou a dama... e perdeu. Mas tudo bem, foi a única partida que ele foi mal, e ele conseguiu ganhar o torneio. Mil reais de prêmio! Estamos ricos! Agora vamos torrar tudo em veneno anti-escorpião!Calvin pede exílio político anti-escorpião em gaveta do maridão.
Ontem, Dia Internacional do Combate à Violência contra a Mulher, Ligia lançou um convite para que participem da sua pesquisa. Quem é Ligia, e qual é a pesquisa? Ligia Moreiras Sena é bióloga formada pela UNESP, mestre em psicobiologia pela USP, doutora em farmacologia pela UFSC. Depois do nascimento da sua filha (hoje com 1 ano e 4 meses), envolveu-se ativamente na questão do respeito ao parto e nascimento, da maternidade ativa e do empreendedorismo de mulheres profissionais que se tornaram mães. Ficou sabendo que algumas de suas amigas haviam sido extremamente desrespeitadas em seus partos, sendo agredidas verbalmente e vítimas de humilhações. Não conseguiu se conformar. Decidiu abandonar a carreira antiga e fazer um novo doutorado. Agora ela é aluna novamente, no programa de pós-graduação em Saúde Coletiva da UFSC, estudando a violência sofrida por mulheres em trabalho de parto. Ela é mãe, professora, ativista e feminista (e, por coincidência, mulher do chargista Frank Maia, meu “colega” no jornal A Notícia).
Segue o texto em que Ligia explica o que é sua pesquisa. Ela quer ouvir muitas mulheres. Peço que participem, porque o assunto é muito importante.
Existem formas de violência que vão além da força física e que, ainda assim, podem ser ainda mais agressivas, mais dominadoras, mais opressoras, pela sutileza com que se escondem no contexto institucional, nas relações sociais e nos significados simbólicos. É a ocorrência e a natureza de um desses tipos de violência, ou de práticas desrespeitosas, que ocorrem em instituições de saúde que queremos alcançar com esta pesquisa: a violência e o desrespeito vivido por mulheres em trabalho de parto, parto e pós-parto imediato. Uma forma de violência que não é conscientizada como tal e que representa, de certa forma, um processo de dominação. Muitas vezes, atitudes de violência, desrespeito e maus tratos são observadas contra mulheres em trabalho de parto e parto sem ao menos que os profissionais de saúde percebam que estão agindo assim. São ações e condutas encaradas como “normais” e rotineiras. Essa violência pode ser expressa, de acordo com alguns pesquisadores, desde a negligência na assistência, discriminação social, violência verbal –- tratamento grosseiro, ameaças, reprimendas, gritos, humilhação intencional -– e violência física, até o abuso sexual. Outras pesquisas também incluem como um tipo de violência o uso inadequado de tecnologia, com intervenções e procedimentos muitas vezes sem a real indicação, resultando numa cascata de intervenções com potenciais riscos e sequelas, físicos ou emocionais.
Consideramos como formas de violência ou tratamento desrespeitoso, nesta pesquisa, todo e qualquer processo, de ordem física ou psicológica, que tenha ocorrido sem consentimento da mulher em trabalho de parto, parto e pós-parto imediato; que tenha ocorrido de maneira abusiva; que tenha causado situação de embaraço ou constrangimento para a mulher; que represente intrusão de privacidade; que tenha representado ameaças de qualquer espécie proveniente do profissional da saúde e dirigido à parturiente e/ou seus acompanhantes; uso de relações de poder para impor práticas injustificadas; uso de palavras ofensivas e desrespeitosas ou de ironia e escárnio dirigidas à parturiente e/ou seus acompanhantes; e outras práticas que tenham sido problematizadas pelas mulheres que viveram situações de violência, desrespeito ou maus tratos e interpretadas como tais pelas mesmas.
Uma pesquisa realizada em 2010 revelou que uma em cada quatro brasileiras relata ter vivido situações de violência e desrespeito em seus partos. Nós queremos ouvir essas mulheres, conhecer os contextos desrespeitosos de parto que viveram, saber como isso foi interpretado por elas, sua percepção desta vivência. E vamos usar as ferramentas da internet para isso. As entrevistas serão feitas via comunicadores instantâneos da internet que permitam uma videochamada e se iniciarão no primeiro semestre de 2012. Acreditamos que a amplitude que a internet traz facilitará a participação de muitas mulheres, de diferentes locais, inclusive as que estão comprometidas com seus trabalhos ou filhos, ou os dois, que terão a liberdade de agendar as entrevistas de acordo com sua disponibilidade, sem ter que se deslocar a nenhum outro lugar.
O convite à participação na pesquisa será lançado a partir de 25 de novembro, Dia Internacional da Não Violência Contra as Mulheres, estendendo-se durante todo o desenvolvimento desta pesquisa, que pretende se encerrar em 2015. Nesse convite, mulheres que tenham se sentido desrespeitadas em seus partos poderão inserir seus e-mails de contato e serão contatadas para que maiores informações sobre a pesquisa sejam fornecidas. A pesquisa faz parte do desenvolvimento do meu doutorado em Saúde Coletiva, realizado na UFSC, no Departamento de Saúde Pública.
Portanto, se você conhece uma mulher que tenha se sentido desrespeitada de alguma forma no tratamento recebido em seu parto, por favor divulgue esta pesquisa a ela. Se você for essa mulher, conheça mais a pesquisa.
No final de junho, estive na UnB (onde fui super bem recebida) para dar uma palestra, e acabei tendo a oportunidade de assistir a uma outra mesa redonda, também sobre Direito e Gênero. O nome era “Os desafios para o enfrentamento da violência doméstica contra as mulheres no DF”, e as quatro palestrantes eram todas feras: a promotora Alessandra Morato, a advogada Maria Amélia, a psicóloga e diretora da Secretaria Psicossocial Judiciária do TJDFT, Marília Lobão, e a delegada chefe da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher, Mônica Ferreira. Como hoje começa o Combate Internacional à Violência contra a Mulher (são dezesseis dias de ativismo, que terminam 10 de dezembro, quando se comemora o Dia Internacional dos Direitos Humanos; os posters que ilustram este post foram tirados daqui), nada melhor que finalmente dar forma às anotações que fiz naquela manhã de junho. Aprendi muitíssimo, e foi uma maravilha poder ouvir (e, no final, fazer perguntas para) essas profissionais. A psicóloga Marília começou reclamando da falta de interdisciplinaridade que reina nas universidades atualmente. Quando ela se formou em Psicologia, no início dos anos 80, pôde cursar várias outras disciplinas, de Antropologia, Geologia etc. Hoje alunos de Direito parecem ficar apenas na área de Direito, o que é uma falha. Obviamente deveria haver maior articulação entre Direito e Psicologia e Ciências sociais. E é inadmissível que, hoje, o tema da violência de gênero não seja incluído nos cursos de Direito. Um dos resultados dessa lacuna na grade é que muitos estudantes, por mais bem intencionados que sejam, acabam se decepcionando com mulheres agredidas que não abandonam seus maridos. É comum um advogado perguntar a uma vítima de violência doméstica: “A senhora aqui de novo?”.Que esse tipo de tratamento venha de leigos, vá lá. Mas não pode vir de gente que lida com violência doméstica. É preciso entender o ciclo da violência, que vai da lua de mel à tensão à explosão (quando ocorre a agressão, física ou verbal ou ambas), voltando à lua de mel, em que o marido se mostra arrependido e jura que não vai fazer aquilo de novo, e a mulher acredita. E todo o ciclo se reinicia. E por que a mulher acredita e aceita continuar a relação? Por uma série de motivos. Segundo a delegada Mônica, é um mito que a mulher não se separa por depender economicamente do marido. Este é um dos fatores, mas está longe de ser o único. A mulher reata a relação porque é ameaçada de morte (e, considerando os índices de que dez brasileiras são mortas por dia pelo companheiro ou ex, ela tem razão em crer que a ameaça pode se concretizar), porque tem medo do que pode acontecer aos filhos, e porque geralmente não tem apoio dos familiares (que a aconselham a continuar com o marido). E também por ter baixa autoestima (ela acha que não arranjará outro homem por estar mais velha e com filhos, e, o que é mais triste ainda, que se tiver outro, ele a tratará do mesmo jeito; será como trocar “seis por meia dúzia), por ter esperança que o parceiro mude, e por se preocupar com o sofrimento dele. Mas o principal, principal mesmo, é que vivemos numa sociedade que nos diz que mulher sozinha não presta. O importante é ter um homem, mesmo que ele faça da sua vida um inferno. A sociedade inteira se mobiliza pra condenar uma mulher sozinha. Como sabemos, mulher sem homem está sempre disponível. Casa sem homem não é respeitada. Revistas femininas vivem publicando matérias do tipo “Como segurar seu macho”. A mulher é educada pra acreditar que tem que casar. E, ao casar, por mais que o homem seja um agressor, a mensagem que permanece é “Sou infeliz mas tenho marido”. Portanto, quando a mulher toma a decisão de deixar o parceiro, ela não está apenas rompendo com ele. Está rompendo com todo um modelo de vida que lhe foi ensinado. Lenore Walker chama isso de Síndrome da Mulher Espancada, em que a mulher é colonizada por uma cultura patriarcal. O problema é tão persistente (são séculos de subordinação) que a psicóloga Marília diz que, se em cinquenta anos tivermos uma relação mais igual entre os gêneros, teremos sido vitoriosas. Mesmo que não vivamos pra ver isso. Já a promotora Alessandra insiste: quer uma revolução já. Ela defende que seja mostrado às pessoas como o Ministério Público vem lidando com a violência doméstica. Segundo ela, o sistema funciona como uma verdadeira máquina de arquivamento. 98% dos casos de violência contra a mulher são arquivados. E não dá pra culpar um juiz (por mais que faça sentido a piadinha “faz concurso pra juiz; toma posse pra deus”), um promotor ou um advogado de defesa em particular. Não é o preconceito de um só indivíduo, mas de toda uma instituição. E o que Alessandra quer é que os autos sejam estudados, pesquisados, e as atrocidades dos juízes e defensores, publicadas. Porque (e essa foi uma das comparações que fez com que eu me apaixonasse pela Alessandra) se um humorista se vale da piada para validar seu pensamento, o jurista se vale do quê? Todo profissional tem uma linguagem própria para expressar seus preconceitos. Se não houver desagravo público, toda uma cultura que joga a culpa nas mulheres pela violência que sofrem prosseguirá. Para a advogada Ana Amélia, um dos problemas desse sistema é que juristas estão acostumados a lidar com leis e processos –- não com pessoas. São duas as situações em que a mulher espancada passa maior perigo. Uma, bastante óbvia, é quando ela decide se separar. Como dessa forma ocorre um rompimento na relação de poder, a mulher corre risco de vida. A outra situação (pra mim surpreendente) é quando a mulher está grávida. Porque o marido ciumento tem toda a neurose de que o filho não é dele. A Lei Maria da Penha está sendo muito positiva por fazer com que mais mulheres denunciem casos de agressão. Antes da lei, de cada dez mulheres agredidas, apenas duas denunciavam. Para Alessandra, o aumento no número de casos deve ser comemorado, pois significa que toda uma teia de silêncio está começando a se romper. Mas ainda é pouco. Para que a violência contra a mulher possa de fato ser combatida, não é só o homem, a mulher, ou o jurista que precisa mudar. É todo um mundo. Afinal, a violência doméstica é o reflexo de uma sociedade doente.