Fui ao cinema ver um filme de 42 anos de idade: “Pierrot Le Fou”, de Jean-Luc Godard (acho que teve alguma época no Brasil em que levou o título de “O Demônio das Onze Horas”, mas não consigo imaginar por que). Vi “Pierrot” por livre e espontânea vontade e também por total falta de opções. Era isso ou “Bratz”, “Desbravadores” ou “Stardust”. Única grande estréia da semana aqui nos EUA? Uma refilmagem pouco convidativa de “Antes Só do que Mal Casado”. Se for comparar qualquer filme da Nouvelle Vague com a maior parte da produção atual de Hollywood, chego à conclusão que as produções devem ser de outra galáxia. Não são do mesmo meio, nem pertencem à mesma arte. Godard, que foi eleito o 31o melhor diretor da história por uma revista de entretenimento dos EUA (dependendo da fonte essa posição sobe bastante), disse certa vez: “Houve um tempo em que talvez o cinema podia melhorar a sociedade. Esse tempo se perdeu”. “Pierrot Le Fou” (algo como Pierrô, O Louco) certamente é desse tempo (1965, pra você não precisar fazer contas). “Pierrot” tem uma história, não muito linear, mas tem: um executivo de TV deixa pra trás seu cotidiano burguês pra viver uma paixão com uma mulher envolvida com o crime. No meio do caminho o casal rouba e mata. Se a trama lembra o magnífico “Bonnie & Clyde, Uma Rajada de Balas” (1967), é porque Godard se inspirou no roteiro do filme do Arthur Penn. Mas o roteiro, pro Godard, é apenas o ponto de partida pra várias improvisações (bom, pra mim “Bonnie” é muito mais marcante que qualquer coisa do Godard, mas eu sou daquelas pra quem o cinema americano dos anos 70 é mais importante que Fellini, Bergman, Glauber Rocha e Godard – juntos. Pra mim o período dourado do cinema foi a década de 70 nos EUA. Eu me sentia mal por pensar assim, até descobrir que minha ídola Pauline Kael também achava isso).
“Pierrot” tá repleto de metalinguagem. O casal de protagonistas – interpretados por Jean-Paul Belmondo e Anna Karina, ambos lindos de morrer – ou fala com a câmera ou faz um take depois do outro, sem cortes. Ficamos sabendo o nome de uma pessoa sem nada a ver com a história e sua profissão – figurante de cinema. E, numa festa, o diretor americano Samuel Fuller (de “Cão Branco”) discursa que cinema é “amor, ódio, violência e morte: emoção”. É bacana como a trilha sonora se interrompe, e volta nos momentos mais dramáticos. E é ótimo que a gente veja logo no início a personagem da Anna derrubando um frentista com um peteleco porque, quando ela aparecer com outra roupa, sem que tenha se trocado, a gente vai saber que está num filme com regras próprias, em que continuidade não vale nada.
Além das referências ao cinema, o filme traz inúmeras alusões a tudo e a todos, desde à Guerra do Vietnã ao assassinato do Kennedy. O teórico Fredric Jameson disse que “Pierrot” pode ter sido o primeiro exemplar pós-modernista do cinema. Faz sentido, porque o filme mistura a cultura de elite (Renoir, Velásquez, Joyce) com a baixa cultura (quadrinhos, música pop, o Gordo e o Magro), uma das marcas do pós-modernismo. E não dá pra negar que “Pierrot” continua atual e influenciando gente. Identifiquei pelo menos dois instantes em que a Uma Thurman em “Pulp Fiction” imita a Anna (um deles é quando ambas estão com a cara sangrando). Tarantino deve ser um grande fã, já que na parte dirigida por ele em “Sin City”, as luzes coloridas do Godard iluminando o carro também estão lá.
A maior qualidade de “Pierrot” é seu humor. Isso torna o filme leve e desnorteia o clima existencial/pretensioso causado por um dos personagens, que gosta de recitar poesias e escrever em seu diário. Eu, como a Anna, prefiro o Belmondo imitando um cowboy e atirando numa vietnamita, pra entreter um soldado americano e descolar uma grana. Vi o filme num museu de arte, cercada por americanos, e a maior parte ria das gozações godardianas contra os EUA. Mas liga a televisão na Fox daqui pra ver o que eles pensam de quem critica americano e de quem é francês...
Coisas que não cabem no texto mas eu quero dizer
- Impressionante como a moda se apropriou do termo “alta cultura”. “High culture” em inglês é comum, mas em português a gente tem que traduzir o termo pra “cultura de elite” ou “cultura elevada”. Bizarro.
- Na festa do começo de “Pierrot” os convidados discursam como se fossem um comercial ambulante. Nesse instante o filme pareceu datado (a festa lembra as orgias de “Blow Up – Depois Daquele Beijo”) e ao mesmo tempo muito atual. Hoje há empresas que pagam gente pra narrar comerciais em festas, pra se tatuar com logomarcas...
- Numa hora a Anna se olha no espelho e vê o rosto de uma mulher junto a um homem prestes a se jogar de um precipício a 100 km por hora. Olhei pro maridão e me identifiquei com ela, bien sur. Talvez tirando a parte dos 100 km por hora.
- Noutro momento fiquei preocupadíssima com uns bichinhos. Tá, talvez o pessoal não tivesse essas inquietações na época, mas no filme tem uma arara e uma raposa, ou será um cachorrinho, e eles ficam amarrados. Nada pior pra animais do que serem bichinhos de estimação de um casal narcisista em crise existencial. Porque a gente sabe que o casal vai viajar por aí e abandonar os coitadinhos, sem nem sequer soltar a corda. Passei o resto de “Pierrot” pensando na raposa...
- “Pierrot” faz entender por que os melodramas hollywoodianos adoram pintar uma paixão eterna como algo que dura alguns dias, e de preferência em que um dos dois pombinhos morra antes que os dois comecem a se odiar. A Anna quer ir pra Las Vegas. O Belmondo, pra Florença. Não tem como o relacionamento dar certo. Melhor morrer mesmo.
- Um diálogo no final não tem relação com o resto, mas é divertido. Um homem conta e canta sua vida amorosa. O quê, eu não mencionei que “Pierrot” tem números musicais? Pois tem.
- O último filme que vi do Godard antes deste foi o polêmico “Je Vous Salue, Marie”, de 85, se não contar um episódio de “Aria”. Vi por causa do escândalo que a Igreja Católica fez em cima, e gostei. Truffaut é muito mais acessível. Faça o favor de ver pelo menos “A Noite Americana”.