segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

NADA DE SE DEIXAR ABATER EM 2019!

Assim como a Mafalda, não votamos nele

Pessoas lindas e queridas, só um postzinho rápido que hoje o dia tá (in)tenso e ainda preciso cozinhar, com a valiosa ajuda do maridão. 
O cara é delegado
Só hoje já fui xingada por um deputado estadual, ameaçada por um delegado da Polícia Civil, e amaldiçoada por uma dúzia de comentários de ódio de um trollzinho qualquer (mandem olhares de desprezo pra ele, que ele acredita em aura e vai ficar dodói). 
Mas não é sobre esses homens ridículos -- todos fãs do fascistoide (o deputado estadual, óbvio, foi eleito pelo partido dele, o PSL, Partido de Salvar Laranja) -- que eu quero falar. Aliás, por que eles estão me atacando? Eles não venceram? Não deveriam estar comemorando, ainda mais hoje? É um fetiche bizarro o deles. Enfim, o que quero com este post é fazer uma minúscula retrospectiva pessoal e desejar a vocês uma ótima virada de ano.
Um assessor de algum dos filhos de
Bolso virou deputado
Politicamente 2018 foi hediondo. Perdemos uma eleição pro candidato mais nefasto do mundo (não é exagero, peguntem pro resto do mundo) que vai jogar o Brasil na lama. O país já está retrocedendo a passos largos com o fim de direitos trabalhistas e o aumento da miséria. A gente que vive no Nordeste percebe a diferença. Tem um monte de pessoas morando na rua, um monte de criança pedindo esmola no sinal. Tinha antes, lógico, mas não tanto assim. Eles vão tentar fazer o Nordeste voltar pra miséria pré-2003. Temos que lutar.
Mas é importante a gente se lembrar -- e lembrar a eles -- que só porque eles ganharam não quer dizer que a Constituição foi rasgada e os direitos humanos acabaram por decreto. Temos o direito à luta e ao ativismo. O fascista chegará ao poder (nunca será meu presidente, não o respeito, não reconheço), mas ainda existem leis. Ameaçar, difamar, bater, matar, continuam sendo crimes. 
Marcelo Valle, outro entusiasta do "mito", foi preso no dia 10 de maio deste ano e agora, no final de dezembro, foi condenado a 41 anos de prisão. Foi uma grande vitória minha e de todas as mulheres (e LGBTs, e negros), porque este é um terrorista criminoso que nos ataca há muitos anos. Minha vida sem dúvida ficou mais tranquila de maio pra cá.
2018 também foi o ano em que a Lei Lola foi aprovada. É uma lei relevante, projeto de lei da deputada federal (reeleita) Luizianne Lins (PT-CE), que atribui à Polícia Federal a investigação de crimes contra mulheres na internet. Também traz para a jurisdição, pela primeira vez, um termo que é velho conhecido nosso: misoginia. Ainda falta bastante pra lei realmente ser aplicada, mas vamos batalhar pra isso em 2019.
Eu, Silvinho e nossos amigos
dinossauros no Museu de Ciências
Naturais, domingo retrasado,
em Buenos Aires
Pessoalmente, 2018 foi maravilhoso. Todos os anos são. Sério, não me lembro de anos ruins na minha vida. Sou muito privilegiada e tenho tudo que quero. Silvinho e eu vamos caminhando pros 29 anos juntos (em agosto) e tivemos amor e saúde em 2018, que é o que importa, ainda mais agora que estamos mais velhinhos. Este ano não foi tão bom pra saúde da minha mãe, mas ela segue firme e forte, prestes a fazer 84 anos (em maio). 
Em 2018 comecei a dar aula na pós-graduação e conheci novas alunas e alunos incríveis. Continuei a dar aula na graduação pra estudantes que eu gosto tanto. O curso de extensão bateu recordes, com 300 inscritos no primeiro semestre, e 200 no segundo. Adoro a UFC e o que faço, meus alunos, meus colegas docentes, os servidores, todos. 
Eu, Axé e Camila, em
Cuiabá em setembro
Pela primeira vez, dei palestras e participei de eventos nas cinco regiões do país! Além de Fortaleza e Quixadá, estive também em duas cidades do interior do Rio Grande do Norte, Caraúbas e Caicó, e em São Luís. Também fui a São Paulo, Brasília, Porto Alegre e Manaus (pela primeira vez e amei; espero não ter esquecido nenhuma cidade). Fora isso, conheci pessoas muito especiais em Cuiabá, MT. Fui pra responder um processo de mascu (e vocês ajudaram demais a pagar minha viagem, mil vezes obrigada!), houve conciliação, e até acabou sendo bom pra trazer mais gente boa pra minha vida.
O blog está um pouco abandonado, eu sei. Quero me dedicar mais a ele ano que vem, mas preciso arranjar ânimo. Mais pra frente eu falo dos meus planos pra 2019. Agora tenho que cozinhar!
Pessoas, aproveitem bem o reveillon. Estou torcendo pra que ano que vem não seja tão ruim quanto estamos imaginando que será. Quer dizer, politicamente, não tem como não ser péssimo. Mas que, no âmbito pessoal, pelo menos, seja bom. Vamos lutar e resistir muito. As palavras "não vamos nos deixar abater" ganharam um sentido mais literal de outubro pra cá. Mas nós somos mais fortes que eles. Vamos conseguir!

domingo, 30 de dezembro de 2018

A FACADA DE BOLSONARO

Quadro divulgado hoje pela noiva de um dos filhos de Bolso. Na imagem original, 
os médicos estavam sem luvas

Acabei de ver o documentário (lançado um pouquinho antes do Natal) A Facada no Mito. Apesar do texto ser muito ruim e precisar de revisões, o vídeo traz imagens e argumentos impactantes.
Imagino que a minha percepção sobre a facada a Bolso (na tarde de 6 de setembro em Juiz de Fora) não foi tão diferente da de muita gente. Eu fiquei sabendo do atentado durante o intervalo de uma aula minha na pós-graduação. Foi uma aluna que me informou e mostrou a imagem. 
Tudo parecia estranho. Entre os alunos da turma, todos achavam que foi armação. Ao sair da faculdade, um outro estudante, bastante abalado, veio falar comigo. Ele acreditava. 
Quando cheguei em casa, compartilhei a desconfiança de tanta gente na internet. Na minha timeline esquerdista, ninguém comemorava o atentado, mas poucos acreditavam que aquilo tinha sido de verdade. Quase ninguém já tinha visto ou ouvido falar de uma facada que não gerasse uma gotinha sequer de sangue. Todo mundo achou bizarro também que o agressor (Adélio Bispo, mas na ocasião não sabíamos) foi detido numa boa, sem sofrer qualquer tipo de linchamento por eleitores tão propensos a linchamentos (é só ver todos os casos de violência de bolsominions no primeiro turno contra gays, mulheres, negros, eleitores de esquerda). 
E ainda teve aquela foto de médicos atendendo sem luvas alguém que estava indo pra mesa de operação.
À noite eu vi o Jornal Nacional e achei: é, foi verdade sim. Não era possível que tanta gente estivesse envolvida nessa conspiração. Eu, que vivi aquela armação toda em torno de Tancredo Neves (que posou ao lado de médicos quando já estava morto), que fui manipulada a ponto de chorar com a Fafá de Belém cantando o hino nacional, acreditei na versão de Bolso, o candidato (em breve presidente) mais anti-ético e mentiroso da história das eleições.
Tuíte meu em 6/9/18, depois de ver o Jornal Nacional
Mas, depois de um tempinho, as informações desencontradas (Flavio Bolsonaro dizendo que a "estocada com faca na região do abdômen "foi apenas superficial") 
e a falta de notícias sobre a facada (que alguns já chamavam de fake-a-da) começaram a incomodar. Como assim, nunca encontraram a faca? Um cara dá uma facada num presidenciável no meio de uma passeata lotada, é pego em seguida, e a faca some? E o negócio do colete? Bolso não estava usando colete à prova de balas? (segundo os assessores, estava). Por quê não?
E um dos filhos de Bolso ter exposto a camiseta que Bolso usava quando levou a facada, mas com um buraco no lugar errado e, desta vez, com sangue? (depois dos questionamentos, o filho disse que a imagem era meramente ilustrativa). Por que a camiseta de verdade não foi mostrada?
E o fato de um fotógrafo profissional que cobria a passeata ter sido removido por um homem que não se identificou mas gritou "Não pode fotografar, aqui é federal"?  (não é nem um pouco estranho que Adélio Bispo não foi agredido, mas um fotógrafo que cobria o evento, sim?).
E a verdade é que a facada beneficiou Bolso -- e muito. Não acho que foi o fato determinante para sua vitória (esse foi a difusão de fake news), mas seus oponentes tiveram que parar de criticar e divulgar vídeos agressivos (como aquele de Alckmin chamando Bolso de agressor de mulheres) contra o pobre convalescente, e, principalmente, Bolso teve uma saída livre para nunca mais participar de debates (que mostravam como ele é medíocre e despreparado). 
Tuíte meu em 19/10: já adepta da teoria da conspiração
O documentário A Facada no Mito traz imagens e informações que eu não conhecia
Por exemplo, havia vários caras que caminhavam e cercavam Adélio bem antes do ataque (falta agora o jornalismo fazer uma investigação e identificar toda essa gente). Um deles fez uma contagem regressiva para Bolsonaro pouco antes do atentado -- que, aliás, foi a segunda tentativa! Na primeira, tudo parece dar errado, Bolso aparentemente faz sinal para "abortar a missão", um dos seguranças é empurrado, cai no chão e se levanta e, após o tumulto, tudo caminha normalmente (todos os personagens nos seus devidos lugares) para Adélio tentar de novo. É impressionante. 
Pensa só: se o atentado contra Bolso tivesse sido contra Haddad, nas mesmas circunstâncias (facada sem sangue, médicos sem luva, camiseta falsa divulgada, doação de 2 milhões de reais de "sobra da campanha" para o hospital que o atendeu, o agressor sendo proibido de falar etc), o que os reaças diriam? 
Acreditariam mesmo na facada?
Vamos ver se já no comecinho do ano que vem ouviremos coisas como "Já é 2019 e você ainda acredita que Bolsonaro foi esfaqueado?!"
UPDATE em 13/1/19: "Dá uma viradinha e pontua", instrui segurança a Bolso minutos antes do ataque de Adélio. É o que mostra um novo vídeo

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

A ESQUERDA PRECISA SER MAIS RADICAL PARA COMBATER O NEOLIBERALISMO

Publico este texto do querido colaborador João Paulo Jales dos Santos, estudante do curso de Ciências Sociais da UERN. 

2018 começou com mais um triste fato para a esquerda. A morte de Marielle Franco em meados de março foi um duríssimo golpe no campo esquerdista, que desde as manifestações de 2015, dos inconformados com o resultado eleitoral-democrático da presidencial de 2014, já vinha sofrendo um paulatino e forte desgaste na opinião pública do país. Opinião pública, aqui se entende, como o consenso de maioria numérica das massas que a esquerda vinha obtendo desde da eleição de Lula em 2002. 
O golpe aplicado em Dilma foi duro, mas a morte de Marielle foi mais dura ainda. E por quê? Porque a jovem vereadora do PSOL era um quadro em franca ascensão política. Uma vereadora que iniciava sua projeção político-eleitoral e que tendia a ascender meteoricamente na política carioca e, provavelmente, fluminense. 
Marielle tem uma trajetória ímpar e diferenciada da maioria dos políticos. Marielle não era branca e não vinha de uma família de classe média alta, marcadores sociais que facilitam se lograr êxito nas estruturas sócio-institucionais da sociedade brasileira. Marielle era preta e pobre, e teve uma trajetória de vida marcada por superar todos os condicionantes racistas que queriam que a ‘favelada’ ficasse lá no canto que o racismo desde cedo lhe impõe, a favela dos morros cariocas. 
Marielle faz parte, porque ainda vive em ideia apesar de sua morte, de uma nova geração de uma esquerda não-branca, advinda das classes excluídas, e que tem em torno de sua pessoa toda a caminhada de romper com os obstáculos racistas e sexistas das opressões reacionárias tão presentes no Brasil. Depois da tristeza profunda da morte de Marielle (com quase uma dezena de tiros na cabeça) veio a eleição de Bolsonaro, figura que representa tudo aquilo que Marielle precisou superar para chegar onde chegou. A esquerda encerra 2018 numa agonia que parece fazer que nossas gargantas se fechem, nos impedindo de respirar e seguir na caminhada.
No entanto, se a vitória de Bolsonaro e de seus asseclas reacionários possuidores de uma mediocridade e incapacidade cognitiva sacrossanta nos assustou naquela noite de 28 de outubro, ela acaba por energizar e encher de luta e de vida a resistência que o campo esquerdista terá que fazer contra as medidas que virão de sua presidência. Desde o enfraquecimento do Estado de bem-estar social e a dissolução da União Soviética, a esquerda global está em crise de identidade e de ideais políticos orientadores de uma nova concepção de mundo que faça frente ao projeto neoliberal, que por natureza, é essencialmente desumano. 
Se em 1848, no Manifesto Comunista, Karl Marx e Friedrich Engels lançavam ali um texto panfletário para publicizar e orientar a luta dos trabalhadores na completa dissolução da sociedade capitalista, falta a esquerda pós-URSS uma nova orientação política para fazer contraponto a uma ordem neoliberal, que torna os indivíduos meras estatísticas financeiras, e deprava os ideais humanistas do liberalismo político. 
Com a social-democracia e os socialistas não-revolucionários da Europa ocidental, venceu uma orientação política de que não seria mais preciso fazer uma revolução para implementar o comunismo. A vitória normativa foi de que era possível mediar reformas progressivas no interior das estruturas do capitalismo, e aliar trabalho com capital. No início, deu certo. A partir do pós-guerra de 1946, os países da Europa ocidental e alguns do centro europeu conseguiram uma substantiva expansão de qualidade de vida para seus povos, mediante políticas públicas onde trabalho e capital já não eram mais antagônicos, como diziam Marx e Engels no Manifesto Comunista
Ressalta-se que o Estado de bem-estar europeu foi um consenso tanto de esquerdistas quanto direitistas, estes espantados com a Revolução Russa de 1917, e com os traumas causados pela 2ª Guerra Mundial. Mesmo os direitistas deram continuidade à expansão dos serviços públicos universalistas que proporcionaram um enorme salto na qualidade de vida das populações europeias. 
Governos de esquerda conduziram as políticas sociais e econômicas de bem-estar. Foi com o governo do trabalhista Clement Attlee que o NHS, o serviço de saúde público britânico, passou a existir. As políticas de bem-estar acabaram por influenciar e servirem de modelo para inúmeros países. No entanto, se até meados da década de 1980 o Estado de bem-estar social conseguiu sobreviver em sua plenitude, a partir das políticas neoliberais empreendidas pelo mundo anglo-saxão, começou paulatinamente a ruir. 
Enquanto o Estado de bem-estar avançava fortemente nas décadas de 50 e 60, seus opositores, entre eles figuras proeminentes dos economistas de direita, como Friedrich Hayek, Ludwig von Mises e Milton Friedman, já se reuniam em organizações e grupos direitistas que propunham uma reposta no sentido de desmontar as políticas públicas qualitativas desse tipo de Estado de expansão universal da oferta de serviços de seguridade social. 
A bem da verdade, o Estado de bem-estar social europeu está hoje, em 2018, bastante enfraquecido, e sua qualidade máxima de excelência durou um período de quase 40 anos, de fins da década de 40 até meados da década de 80, quando as violentas políticas neoliberais foram postas em prática à força, no aparato estatal da lei e da ordem. Se no Chile, a ditadura de Pinochet implementava o neoliberalismo sem grandes enfrentamentos (porque quem enfrentava era morto ou "desaparecido"), em sociedades democráticas da Europa ocidental, o neoliberalismo se impôs sob porradas, cassetetes e gás lacrimogênio. 
Do Reino Unido à Itália, da Escandinávia à Áustria, o Estado de bem-estar de hoje nem de longe se compara com aquele dos anos 50, 60 e 70. Se para ingleses, franceses, alemães e holandeses, seus serviços públicos se tornaram constantes alvos de reclamações pelo desmonte que sofreram, o que dirão os brasileiros do projeto neoliberal-reacionário que o governo Bolsonaro tentará impor no Brasil.  
Se mesmo nos países desenvolvidos, onde a qualidade de vida é bem melhor que a brasileira, suas populações queixam-se da precariedade das políticas sociais, imaginemos o que acontecerá no Brasil, onde os serviços públicos já são extremamente precários; uma sociedade com um dos maiores índices de desigualdade do mundo, juntamente com os Estados Unidos, país sonho de consumo da entourage bolsonarista, que quer tornar o Brasil uma cópia stricto sensu da extremamente desigual, e com alarmantes índices de pobreza, sociedade americana. 
Por que a esquerda desde 1990 vem perdendo terreno nos ideias políticos? A indagação é de extrema relevância, e ainda não possui resposta conclusiva, e não terá logo tão cedo. É justamente por essa ausência de resposta que a esquerda global se encontra em profunda crise de identidade política. 
A esquerda, tentando agradar a elite neoliberal global, acabou se vendo num labirinto sem saída. A moderação da centro-esquerda foi tão altamente moderada, que enquanto a extrema-direita tem um projeto europeu de ruptura da ordem institucional da União Europeia, a esquerda não tem proposta que seduza as massas e as impeçam de se dirigir ao extremismo direitista. Se o espaço de ruptura do status-quo capitalista até algumas décadas pertencia a esquerda, hoje esse espaço é ocupado pela extrema-direita, que angaria os descontentes e empobrecidos trabalhadores que já foram representados pela esquerda, mas que se viram largados pelos partidos políticos socialistas e trabalhistas no instante histórico que a esquerda entrou em processo de ‘aburguesamento’. 
Existe uma enorme desigualdade regional e social dentro das próprias nações do mundo desenvolvido. Enquanto as regiões metropolitanas sofrem menos com as consequências da crise financeira de 2008/2009, as antigas bases político-sociais rurais e das cidades médias que votavam tradicionalmente nos partidos de esquerda sofrem com a piora nas condições materiais e sociais de vida. 
O processo de desindustrialização foi tão agressivo nas antigas zonas eleitorais proletárias europeia e americana, que a classe trabalhadora hoje vive em precária situação econômica e social. Irritados, esses trabalhadores que se viram abandonados pela esquerda foram para a órbita de influência da extrema-direita, que precisa do proletariado empobrecido para ampliar sua base social e política. 
Grande parte dos eleitores de Marine Le Pen são nada mais nada menos que os antigos eleitores do Partido Socialista. Boa parte daqueles que em 1981 e 1988 votaram em François Miterrand hoje votam nos políticos da extrema-direita francesa, fenômeno igualmente parecido na Grã-Bretanha e em outras partes da Europa. A esquerda acadêmica e cosmopolita parisiense não consegue compreender os anseios das demandas dos protestos dos coletes amarelos, dos habitantes da França rural e das cidades médias afastadas da zona de influência financeira e cultural de Paris. 
Enquanto que em Paris e seus subúrbios a qualidade de vida, apesar de cara, é minimamente compensada por boas políticas sociais, as zonas desindustrializadas da França profunda vivem com saúde, transportes e escolas de baixíssima qualidade, e em muitos casos, hospitais e transportes públicos nem mais existem. A esquerda francesa não consegue compreender as condições de vida material e simbólica dos seus outrora eleitores. A consequência disso é um exponencial crescimento eleitoral da extrema-direita na França e em toda a Europa ocidental e central. 
O ‘aburguesamento’ da esquerda nada mais é que a total falta de compreensão, diálogo e solução que os partidos e representantes políticos esquerdistas não mais fornecem as suas esquecidas bases proletárias. A classe trabalhadora americana e europeia que hoje vive desesperada é motivo de chacota dos intelectuais e influenciadores de opinião pública progressista. Sim, os chamados ‘white trash’ são sem modos e ignorantes. Mas se hoje são ridicularizados pelos progressistas acadêmicos, é bom lembrar que há pouco tempo eram fieis votantes dos democratas, socialistas e trabalhistas. Os movimentos sociais identitários, basicamente concentrados nas zonas urbanas das grandes metrópoles, não dialogam e nem mesmo conhecem a história política que o progressismo-esquerdista tinha com os ‘white trash’. 
Como derrotar a extrema-direita sem o apoio imprescindível dos milhões de trabalhadores pobres e em desespero, que ao se verem sem saída acabam por optar em votar na direita reacionária, que mesmo sem propostas factíveis que melhorem as vidas desses operários, oferece apoio aos milhões de trabalhadores que estão completamente alienados pelas crises causadas pelo neoliberalismo? Ao se ‘aburguesar’, o progressismo da esquerda aplaude os Clinton, detentores de um caráter profundo dúbio, mas condenam sem pestanejar os brancos trabalhadores que antes tinham suas demandas atendidas pelos sindicatos, que estão completamente enfraquecidos. 
As exposições aqui retratadas são um quadro que delineia os motivos da intensa crise de identidade da esquerda, que até a década de 70 era internacionalista, e que hoje vê a direita reacionária ter um projeto global. Não há como resolver e apontar saídas para a crise global de identidade da esquerda sem fazer reflexões que toquem nos pontos delicados que nos levaram ao atual estágio político desta segunda década do século XXI. 
No atual estágio do avanço do capitalismo, a solução é deslocar a esquerda para à esquerda, ou seja, deslocar a esquerda para o espectro radical. E radical não é sinônimo de extremismo e sectarismo político, mas sim sinônimo de ir na raiz do problema, para encontrar contrapontos sociais e econômicos que façam frente às reacionárias políticas neoliberais. 
Bernie Sanders, Jeremy Corbyn, os políticos do Podemos da Espanha, a extrema-esquerda francesa, os socialistas inquietos e ativistas da América Latina e da Itália, os verdes e progressistas da Alemanha, do Canadá e da Escandinávia, a esquerda insubmissa do leste europeu, representam políticos, agrupamentos e movimentos que deslocam a esquerda para o espectro onde ela deve estar para responder à altura o neoliberalismo. 
Não há como enfrentar o reacionarismo econômico e conservador neoliberal sem posicionamentos e propostas políticas que toquem em feridas e mazelas sociais delicadas. Há momentos históricos, como este em que estamos, que só se pode responder a tanta miséria, tanta desigualdade, injustiça e alta concentração de renda -- consequências das políticas neoliberais -- com propostas que possam buscar rupturas com a atual ordem capitalista, e possibilitar menos desigualdade e mais possibilidades e expectativas de mobilidade social. Uma esquerda moderada convém nos momentos certos, e uma esquerda radical e inquieta convém igualmente num momento certo como este. 
Enquanto a esquerda acadêmica e da classe média alta continuar com certas empáfias que lhe são peculiares, continuar presa nos seus micromundos sem entender as mazelas sociais dos desafortunados e pobres que esta esquerda diz verborragicamente defender, a esquerda vai fornecer indiretamente munição ao neoliberalismo. Enquanto os movimentos identitários não saírem de seus espaços e irem dialogar com aqueles que antes votaram em Lula e Dilma, e neste 2018, penderam para Bolsonaro, não haverá solução concreta em que se possa iniciar um combate contra o neoliberalismo. 
A luta contra a privatização extremista capitalista não é fácil. Mas quem disse que a luta social é fácil? Lutar por justiça e por um mundo com menos desigualdades é tarefa árdua, que não será levada a cabo por uma esquerda que se diz defensora dos excluídos, mas está imbuída de um forte classismo e ideal político parcialmente equivocado. 
O atual estágio do neoliberalismo é somente uma transição para o agudo horror ambiental, moral, social, econômico e humanitário que virá adiante. Ou a esquerda responde às políticas neoliberalistas com o antagonismo necessário, ou nós, esquerdistas, seremos tragados pelas alienações burguesas. Uma esquerda imbuída de ideais revolucionários nunca foi tão imprescindível. No entanto, nunca foi tão pouco encontrada.