A Zzacchi, uma militante velha de guerra (está no meio desde 2010) que decidiu se armar através do estudo, me enviou este belo texto:
Muita luz para o seu trabalho e seu blog, que acompanho desde 2011! Tenho admiração eterna por você!
Mas antes de mais nada, uns esclarecimentos acadêmicos para todes ficarmos na mesma página:
- Ambas as Teoria Queer e o Feminismo Raiz concordam que gênero é uma construção social, uma abstração cultural de comportamentos impostos a nós de acordo com o nosso genital ao nascer.
- Ambas as Teoria Queer e o Feminismo Raiz concordam que ninguém deveria ser pré julgado por conta da genitália nem ter qualquer juízo de valor atribuído por causa do gênero. Ambas as vertentes querem um mundo onde qualquer pessoa, de qualquer sexo e gênero possam ser felizes e buscarem ser quem são, usarem o que gostam, do jeito que quiserem sem qualquer discriminação.
Mas se ambas as vertentes concordam com origem e ponto final, por que a briga?
- Diferente do Feminismo Raiz, que é baseado num materialismo positivista (corrente filosófica onde a "verdade" é absoluta e externa, alheia ao ser humano e "encontrada" através da ciência), a Teoria Queer tem base no pós-modernismo (corrente filosófica que rejeita toda metanarrativa generalizante de mundo; e que diz que a realidade é tão moldável quanto o observador).
O Feminismo Raiz e seu materialismo positivista apregoam que gênero, por ser uma construção social abstrata, deveria ser abolido. Para o feminismo radical, gênero nada mais é que um meio de aprisionar as pessoas dentro de comportamentos e estéticas que oprimem e violentam. Segundo o rad, a teoria queer nada mais é que um reformismo dos velhos papéis de gênero e as pessoas trans reforçam de forma caricata esses estereótipos.
A Teoria Queer parte do pressuposto que, uma vez que gênero nada mais é que uma abstração social, o que impediria uma pessoa de um gênero começar a performar e a ser percebido como outro? Isso já acontece mesmo quando as pessoas não têm intenção, por exemplo: homens com traços delicados serem tachados de afeminados e mulheres com traços fortes serem tratadas como másculas. Gênero não é preto e branco, vulva e pênis, é uma combinação de fatores. Para o transativismo, passabilidade cis (ou seja, se parecer o máximo possível biologicamente com o gênero que se deseja) é questão de sobrevivência em uma sociedade transfóbica, uma vez que trans em transição e pessoas não binárias são extremamente hostilizadas.
Queria colocar aqui que o pós modernismo não nega a materialidade e a ciência, como eu já vi muitas pessoas apontarem por aí. A pós modernidade veio questionar o conceito de "realidade" quando ela é mutável através da ação humana -- vide nossa influência no meio ambiente, nos nossos corpos cirurgicamente modificados, no clima e, futuramente, até mesmo na terraformação de planetas e engenharia genética. Para esse assunto, recomendo Donna Haraway e seu Manifesto Ciborgue.
"Realidade", cientificamente falando, é uma percepção que em breve terá que ser reavaliada quando começarmos a manipular a matéria a níveis atômicos, e é disso que a pós modernidade trata.
Aliás, a radfem que se diz "anti-pós moderna" em prol do materialismo positivista mas abraça a interseccionalidade já está sendo contraditória, uma vez que interseccionalidade é justamente a rejeição da metanarrativa até então generalizante da experiência do que é "ser mulher" (cis, branca e hétero) -- ou seja, é um conceito completamente pós moderno, concebido nos anos 90 por Kimberlé Crenshaw.
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Bom, voltando para a rixa.
Mulheres e pessoas trans são oprimidas pelo patriarcado. São dois grupos de pessoas que passam muito perrengue, e lidar com opressão é algo sempre sensível. A falta de empatia é enorme e o medo do silenciamento também. Coloque esses fatores em uma militância e você tem uma receita pronta para desastre.
O que eu mais percebo, tanto no transativismo quanto no radfem, é ressentimento. As duas vertentes não negam a opressão uma da outra, mas não estão sabendo separar seus espaços e lidar com as questões em comum interseccionalmente.
Se o feminismo fosse uma vila, cada vertente seria uma casa e a pracinha no centro seria a interseção, onde se debate o que cada casa tem em comum e como todo mundo fará para manter a vila saudável. Mas não é isso que tem acontecido. A casa rad quer a casa trans fora da vila por não concordar com sua filosofia e a casa trans responde à altura. É difícil dialogar quando há tanta dor e tanto desentendimento por conta de um detalhe filosófico.
Um debate interessante sobre gênero deveria começar não com o gênero em si, mas com "o que é cultura?", "o que é natureza?", "o que é performance?". Nem tudo que é "natural" é bom e nem tudo que é "artificial" é ruim. Dizer que "gênero é artificial, logo é ruim" é tão pobre e falacioso quanto dizer que "câncer é natural, logo é bom".
A questão é que tudo é natural. A nossa noção de "natureza" é antrópica. Mas nós humanos não somos externos à natureza, nem nossa cultura, nem nossos pensamentos, nem as coisas que produzimos. Um macaco que usa um galho como ferramenta e estabelece uma cultura entre sua espécie é visto como menos natural? A barragem construída por um castor ou o ninho de um passarinho são menos naturais? Essa dicotomia natural vs artificial é enganosa e não tem fundamento intrínseco. Cultura e gênero são tão naturais quanto nossos corpos biológicos.
Vale lembrar aqui que muitas pessoas são biologicamente intersexuais, e os pais ou médicos decidem o gênero da criança assim que ela nasce para que se conforme dentro de um papel de gênero. Muitos intersexuais concordam com a teoria queer, enquanto outros preferem que se crie um terceiro gênero para contemplá-los. A linha entre sexo e gênero se prova muito tênue e frágil quando trazemos a questão para a intersexualidade, nos mostrando que a própria biologia não se enquadra em uma categoria binária, contendo uma complexidade que os moldes de gênero tradicionais não alcançam. Ótima dica de leitura sobre esse assunto: Judith Butler.
Será então que gênero é algo a ser renegado ou ressignificado? As pessoas que performam outro papel de gênero estão "reforçando" um estereótipo ou ampliando suas possibilidades? Uma rad que rejeita a feminilidade e é vista como masculina, mas ainda revoga sua identidade como mulher, não está ressignificando culturalmente o que é o gênero da mesma forma que um homem ou mulher trans ou que pessoas que se identificam como não binárias e performam o que quiserem?
Simone Beauvoir postulou que a fêmea era percebida como o negativo do macho, mas historicamente é o homem quem sempre fez de tudo para que a masculinidade se dissociasse da mulher. Togas, maquiagem, salto alto, enfeites no cabelo, perucas, tudo o que vemos como feminino já foi masculino, e assim que as mulheres começaram a usar, os homens deixaram de lado. O homem impôs a delicadeza e a fragilidade física à mulher, roubou sua voz e, para garantir que dominasse, exaltou a força física e a agressividade como proibidas ao feminino. Em um mundo que a força não é mais necessária para sobrevivência e destaque social, feminilidade deveria ser algo a ser ressignificado e reapropriado, não rejeitado por completo. Da mesma forma devemos repensar a masculinidade tóxica e o que é ser homem, para além da mutilação emocional.
A socialização só vai até certo ponto. Ela é forte e reforçada o tempo todo, mas é por isso que existe a desconstrução. De outro modo, qual seria o propósito do feminismo, se não a desconstrução da socialização patriarcal? Eu acho, desculpe o julgamento de valor, maldade radfems dizerem às trans que a socialização masculina "não falha" e que serão sempre colonizadoras.
Todos somos colonizadores em algum grau, por isso a interseccionalidade é tão importante e é por isso que desconstruímos nossos preconceitos todos os dias. Não se esqueçam que para o patriarcado, até mesmo homens cis afeminados já não são mais vistos como "homens de verdade" e têm seu privilégio afetado.
Também acho ridículo trans que reproduzem o discurso patriarcal para criticar radfems. É tiro no pé. Não se combate transfobia com misoginia. A militância tem que parar de achar que opressão é competição, ou que quando outro fala da própria opressão, isso apaga a dela.
Para a academia, esse debate é infrutífero e ilógico. O rad feminismo e o transativismo possuem propostas diferentes para problemas diferentes e não competem em sua explicação de mundo. O rad feminismo abraça questões de opressão machista que vale apenas às mulheres (cis), dados os seus devidos recortes de classe, etnia, cultura e sexualidade. O transativismo abraça todo o resto que o radfem não prioriza: masculinidade, transição, intersexualidade, etc.
Já dizia Malcolm X, "o preço da liberdade é a morte". A estrutura de poder patriarcal é clara: o gênero, como é percebido hoje (homem e mulher) é uma estrutura rígida de dor, dominação e prisão que não aceita qualquer folga ou divergência.
Não se pede "por favor" à sociedade para ser livre, você se faz livre, sabendo o preço que poderá vir com a liberdade. Enquanto uma leva grande o suficiente de pessoas não estiver disposta a pagar o preço e a peitar o status quo, a estrutura de poder se mantém.
Destruam o patriarcado, não umas às outras.