quinta-feira, 30 de junho de 2016

GUEST POST: EXEMPLOS DE MULHERES QUE MUDAM O MUNDO

Patrícia Sá me enviou este texto:

Em meio a tantas notícias ruins, de vez em quando aparece na mídia alguma boa ação, algum ato de heroísmo, ou alguma conquista em determinada área. A maioria dessas notícias é centrada nos homens; não quero dizer que eles não mereçam reconhecimento, mas nas raras vezes em que a mídia destaca ações de mulheres, não dão a mesma proporção, o que evidencia, a meu ver, um total menosprezo e desvalorização destes feitos.
Essa situação fica bem mais clara quando chega o dia internacional das mulheres. Listas com  nomes de mulheres revolucionárias e importantes na história acabam se repetindo todos os anos. Com isso se cria aquela impressão de que pouquíssimas mulheres fizeram ou fazem algo para contribuir com a sociedade. Esse sentimento não deixa de ser mais uma forma de alimentar estereótipos negativos a respeito das mulheres e, infelizmente, muitas pessoas tomam essas mentiras como verdades.
Provavelmente toda feminista já deve ter lido ou ouvido pelo menos alguma vez comentários de que os homens criaram tudo que existe, que são superiores em tudo, que as mulheres nunca fizeram/ criaram/ salvaram nada e ninguém. São vários comentários machistas que alegam a superioridade masculina e a inferioridade e ingratidão feminina. O mais surpreendente é ver que existem muitas mulheres que concordam e compartilham esse tipo de pensamento, sem nem se importar com o fato de que essas calúnias não falam mal exclusivamente de feministas e sim das mulheres em geral.
Fazendo uma rápida pesquisa na internet, constatam-se inúmeros exemplos de mulheres do passado e da atualidade que fizeram e fazem grande diferença na sociedade e em diferentes áreas, a sua própria maneira. Mas uma coisa que me surpreendeu foi ler algumas pesquisas que afirmam que a maioria das pessoas que se envolvem em trabalhos voluntários são mulheres. Sempre que eu participo de algum trabalho voluntário ou mesmo de alguma ação social, vejo muito mais mulheres doando e arrecadando itens para ONGs e se mobilizando para desenvolver projetos e colocá-los em prática. 
O voluntariado é apenas uma parcela do que nós mulheres fazemos ou podemos fazer. Hoje em dia, estamos em praticamente todas as áreas -- o que ainda falta é respeito e reconhecimento da nossa capacidade.
Selecionei apenas alguns exemplos de mulheres da atualidade que de diferentes formas contribuem para melhorar a sociedade, e que dedicam suas vidas às causas que acreditam:
- Margaridas: as Margaridas são um grupo formado por trabalhadoras rurais, quilombolas, extrativistas e indígenas. Elas lutam por desenvolvimento sustentável com democracia, justiça, autonomia, igualdade e liberdade. Todo ano protagonizam a Marcha das Margaridas, onde reivindicam “garantia permanente a alimentos de qualidade e em quantidade suficiente, sem comprometer outras necessidades essenciais; 
acesso à terra e valorização da agroecologia, uma educação que não discrimine as mulheres, o fim da violência sexista, o acesso à saúde, a ser ou não ser mãe com segurança e respeito; autonomia econômica, trabalho, renda, democracia e participação política”.  
A marcha das Margaridas é uma homenagem à Margarida Maria Alves, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande, na Paraíba. Ela foi assassinada em 12 de agosto de 1983 a mando dos latifundiários da região. Lutou pelo fim da violência no campo, por direitos trabalhistas como respeito aos horários de trabalho, carteira assinada, 13º salário, férias remuneradas.  
- Maria Elena Pereira Johannpeter: preside a Parceiros Voluntários, uma ONG que tem como objetivo capacitar outras ONGs e instituições para que sejam autossuficientes e produtivas. Ela incentiva a cidadania e também instiga as mulheres a participarem da política, não só como eleitoras, mas como candidatas. Ganhou vários prêmios, entre eles a medalha Pacificador da ONU.
- Theresa Kachindamoto: supervisora de um distrito no Malawi, líder feminista, conseguiu em um período de três anos anular 850 casamentos infantis, e conseguiu levar todas as crianças de volta à escola. Ela reuniu os 50 subchefes do distrito para que eles assinassem um acordo que abolia o casamento precoce e também anulasse todos os casamentos infantis já realizados na área em que ela é responsável.
Ela conscientiza os pais de meninas para que elas possam frequentar a escola, e quando a família não tem condição financeira, ela consegue ajuda com mães e pais secretos, que pagam os custos escolares para as meninas. Também conseguiu abolir rituais que iniciam meninas sexualmente, sendo, às vezes, menores de 7 anos, e que são intitulados "rituais de limpeza". Atualmente, luta para que a idade mínima para se casar passe de 18 para 21 anos.
- Think Olga: Segundo a própria página, o objetivo é criar conteúdo que reflita a complexidade das mulheres e as trate com a seriedade que pessoas capazes de definir os rumos do mundo merecem.
A missão é empoderar mulheres por meio da informação e retratar as ações delas em locais onde a voz dominante não acredita existir nenhuma mulher. A luta é para que as mulheres possam ter mais escolhas. Nunca menos. Bem como garantir que elas façam suas escolhas de maneira informada e consentida, sem que nunca tenham que pedir desculpas por tais decisões. Tanto a página na internet, quanto o canal no youtube, trazem matérias sobre direitos, história, empreendedorismo.
- Vamos Juntas. Esse movimento tem como objetivo estimular a sororidade, a união entre mulheres. A página no Facebook reúne vários relatos de mulheres que ajudaram ou foram ajudadas por outras mulheres em diversas situações, principalmente de assédio. Muitas mulheres vem se espelhando nesse movimento e criando empatia por outras mulheres, o que contribui para desestimular a rivalidade feminina que nos é ensinada desde criança.
- Meena: é uma personagem de ficção, mas quero aproveitar o espaço para falar sobre ela. O desenho, tanto o animado quanto o de revistas em quadrinho, foi criado pela UNICEF como uma campanha de conscientização para melhorar a vida das meninas e mulheres no sul da Ásia. As histórias abordam de maneira educativa temas como trabalho infantil, igualdade de gênero, saneamento básico, exploração sexual, Aids. 
Segundo a página da UNICEF, após verem o desenho, muitos pais passaram a permitir que suas filhas frequentassem a escola, e criou-se uma empatia maior entre as mulheres. Todos os problemas abordados ainda existem e infelizmente as histórias ainda são muito atuais, e é possível perceber muitas semelhanças entre o sul da Ásia e comunidades mais pobres no Brasil. Dá para encontrar todas as revistinhas e cartilhas para baixar de graça na internet, mas estão em inglês. Eu recomendo muito para quem trabalha com educação infantil.
Esses são apenas alguns exemplos. 
Para quem tem interesse em ajudar de alguma forma, mas não sabe como, existem maneiras como: criar ou participar de alguma ONG, votar de maneira consciente, cobrar dos políticos, se candidatar a algum cargo político na área de interesse; criar grupos de apoio para determinados grupos; ter empatia; escrever textões, denunciar crimes, não se calar diante de injustiças; criar abaixo-assinados, participar de protestos; dar o exemplo (leiam sobre o efeito Genovese); valorizar e divulgar as boas ações dos outros, ainda mais se forem mulheres.
Não importa o que você faça, ou pelo que você lute, sempre existirão críticas, cobranças excessivas, sempre dirão que existem causas mais importantes. Dependendo da situação, até existirão ameaças de morte. Mas não se deixem afetar por isso, pois quem critica muitas vezes não faz nada por nada e nem por ninguém. Também é bom lembrar que vivemos em uma sociedade e que para conseguir bons resultados, é importante mobilizá-la. Não é eficiente e nem saudável tentar mudar o mundo sozinha.

quarta-feira, 29 de junho de 2016

COMO A SEXTA TEMPORADA DE GAME OF THRONES TACOU FOGO NO PATRIARCADO

Eu sabia que tinha que publicar alguma coisa sobre o final da sexta temporada da série Game of Thrones
Mas também sabia que não estou apta para tal tarefa. Gosto da série, embora não guarde o nome de nenhum personagem. Como achei que os dois últimos episódios foram de arrepiar (inclusive feministicamente falando), pedi pras minhas queridas leitoras escreverem sobre a série.
Duas me mandaram excelentes textos. Um eu vou publicar hoje, o outro daqui a uns dias. Tem spoilers, lógico. 
Este é de autoria de Ana Carolina Nicolau, criadora e crítica do Take 148. Super obrigada, Ana!

Um ano se passou desde que Sansa Stark foi estuprada pelo marido na quinta temporada de Game of Thrones. O sádico Ramsay Bolton a violenta em sua noite de núpcias, enquanto Theon, psicologicamente destruído, é forçado a assistir o ato. A cena tinha quase tudo de errado, a começar pelo fato de que o personagem mais importante presente no quarto era Theon. 
Sansa não era somente roubada de seu corpo, de sua identidade e sua mente; ela estava era roubada de seu protagonismo, se tornando uma coadjuvante em sua própria narrativa. Aquele momento era todo sobre Theon: o tipo de maldade a que Ramsay submetia Theon e como era sofrido para Theon ver alguém, que considerava de sua família, ser machucada. Sansa era só o instrumento de tortura da vez. 
O estupro de Sansa deixou transparente algo dito ao longo de seus cinco anos: Game of Thrones tinha um problema com mulheres. A violência era sempre um espetáculo, a prostituição vendida como diversão e os inúmeros peitos eram recebidos com empolgação pela audiência majoritariamente masculina da HBO. 
O retrato da mulher como sexo frágil sempre foi justificado pelo argumento de que “na época era assim” -- o que não faz nenhum sentido quando estamos falando de uma série ficcional passada em um universo ficcional com dragões, gente voltando da morte, e viagens no tempo e, mais do que tudo, um universo com poder de reinventar, recontar e recriar todos os aspectos das sociedades que o inspiravam.
Mas algo aconteceu na estreia da sexta temporada que marcava o início da mudança de tom da série. Talvez porque os produtores David Benioff e D. B. Weiss finalmente ouviram as críticas, talvez porque era a primeira vez que a série navegava sem âncora da obra original de George R. R. Martin, talvez porque o ano seria cheio de mimos aos fãs, e isso era o que os fãs queriam.  
Nesse episódio, intitulado "The Red Woman", Ellaria Sand enfiou uma adaga no coração de Doran Martell, tomando à força o trono de Dorne. Isso sozinho já significava que as mulheres estavam prontas para atacar e retomar o protagonismo que foi negado a elas nas temporadas anteriores. Mas as ações de Ellaria ainda foram acompanhadas por Brienne destroçando um grupo de capangas para salvar Sansa, Daenerys (fluente em dothraki) recusando-se a casar servir de objeto sexual para Khal Moro e Melisandre -- uma personagem sempre fetichizada -- revelando-se uma senhora com centenas de anos, com um corpo tão velho quanto nu, curvado, enrugado, uma imagem do envelhecimento que a série nunca havia se arriscado antes.
Desse ponto em diante, todas as principais personagens femininas tomaram alguma decisão imprescindível, sem a qual a história não poderia seguir. 
Depois de ter passado a temporada inteira recolhida, Cersei libera sua enorme sede de vingança -- calmamente arquitetada -- e explode metade de Porto Real, incluindo seu agressor, o Alto Pardal. Tudo para sentar-se no Trono de Ferro, não por ligações de sangue, mas pelo direito adquirido à força. 
As escolhas de Cersei dificilmente seriam consideradas exemplos de caráter, mas são exemplos de coragem e fazem dela um dos personagens mais eloquentes da série. Mesmo na competição entre os vilões, dos quais se destacam seu próprio filho Joffrey e Ramsay Bolton, Cersei é a mais bem construída. Depois de séculos de história de Westeros dominados por machos, é gritante que a única pessoa que teve coragem de colocar o mundo abaixo fosse uma mulher.
Mesmo que Daenerys tenha mantido um posto de liderança consistentemente durante a série, ela também foi estuprada por seu marido no primeiro dia de seu casamento e julgada várias vezes como uma governante incompetente pelo simples fato de ser mulher. 
Embora algumas dessas vezes os juízes estivessem certos sobre a competência de Daenerys, principalmente porque sua jornada é uma pela conquista da experiência antes de partir para Westeros, quando a Mãe dos Dragões foi sequestrada novamente pelos Dothraki, ela não era mais a inocente khaleesi da primeira temporada. Não bastava mais ser simplesmente resgatada -- muito menos por dois caras --, era necessário usar seu apetite por fogo para criar um dos momentos mais emblemáticos da série, quando Daenerys transforma os chefes Dothrakis em cinzas e faz o povo jurar lealdade a ela.
E então há Sansa, que talvez tenha sido o ponto de partida de tudo isso, recobrando parte de sua autoconfiança e fazendo de seu agressor comida para cachorro. 
Com o enredo de Sansa durante esse ano, Game of Thrones finalmente abordou a violência de forma pertinente, com alguns dos diálogos mais poderosos do roteiro. Quando Ramsay estava prestes a ser comido pelos cachorros, alguns episódios depois de Sansa explicar a Mindinho como ela “ainda podia sentir Ramsay em cada parte de seu corpo”, ele ainda é selvagem o suficiente para anunciar o trágico destino de Sansa: “Você não pode me matar, eu sou parte de você agora”. 
Mas até as palavras perversas de Ramsay se tornam mais fáceis de engolir quando percebemos que, mesmo eternamente traumatizada e permanentemente marcada por essa experiência, Sansa é forte o suficiente para reconstruir sua vida e se tornar uma herdeira respeitada do sobrenome Stark, e uma importante peça no tabuleiro político de Winterfell. 
Jon Snow foi coroado Rei do Norte, mas só porque Sansa está sentada ao seu lado, depois de ter salvado sua vida na guerra contra Ramsay por causa de suas próprias alianças. E Jon não é só uma criação de Sansa, mas ele não seria mais do que um corpo se não fosse Melisandre para trazê-lo de volta à vida, e não seria mais que um bastardo ignorado se não fosse Lyanna Mormont, a comandante de 10 anos que convence uma sala cheia de homens a confiar o reino a ele. 
E a trajetória das mulheres nessa temporada não é só sobre a retomada do poder político, mas também o poder de ser dona de sua própria vontade. Podemos reclamar de como a história de Arya foi desenvolvida em círculos, mas os problemas de narrativa não mudam o fato de que ela é uma adolescente completamente confiante, orgulhosa de sua identidade, que saiu em busca de vingança por sua família -- um papel comumente reservado aos homens -- sabendo manejar uma espada como poucos nos sete reinos. 
E Yara Greyjoy, que nunca foi uma personagem amável, surpreendeu a todos ao reivindicar o posto de Rainha das Ilhas de Ferro, ao se aliar com Daenerys para tal, e ainda se assumir lésbica, em pleno controle de seus desejos sexuais, sem qualquer receio de que alguém pudesse questioná-la (é melhor não cruzar seu caminho). 
Até a pobre Margaery Tyrell, antes de ser explodida por Cersei, dá um jeito de manipular o Alto Pardal para que ela e seu irmão Loras possam escapar de suas penas. Margaery ainda se mostra muito mais esperta que ele ao perceber, antes de todo mundo, que Cersei planeja não deixar o julgamento acontecer, mesmo que isso não fosse o suficiente para salvar sua vida. E honrando o nome da família, a avó de Margaery, Olenna, agora a única sobrevivente do clã, declara apoio a Daenerys para colocar os Tyrell de volta no mapa do poder.
A sexta temporada de Game of Thrones criou espaço para as mulheres brilharem, e elas fizeram isso sem pedir permissão ou desculpas, o que não significa que elas sejam heroínas perfeitas. 
São seres humanos tridimensionais, complicados, cheios de falhas, que erram e tomam decisões ruins. Mas, mais importante, finalmente elas parecem reais. E pelos índices recordistas de audiência desse ano, ninguém pode dizer que histórias protagonizadas por mulheres não dão dinheiro, não atraem público ou não... sei lá... se tornam uma das maiores séries da história da televisão. Afinal, estamos dizendo isso faz só um século, quem poderia imaginar?

terça-feira, 28 de junho de 2016

A PREGAÇÃO MACHISTA DO PADRE MODERNINHO

Deus tá vendo

Não acompanho nada de Fábio de Melo, então não sabia que o padre era celebrado por parte da esquerda. 
Mas no domingo algumas pessoas me enviaram um vídeo com uma pregação horrível do padre moderninho, que havia sido colocado no Facebook. Pouco tempo depois o vídeo foi removido e logo me mandaram o link pro YouTube. Tá aqui. Não dá pra ver tudo a menos que você seja muito, muito devota. Mas o que interessa está entre os minutos 10 e 20. É um show de horrores, que causou indignação e decepção em bastante gente. 
Não vou entrar nem na discussão do que o padre diz sobre depressão -- "é a falta de amor por si mesmo" (em 10:20) -- reduzindo uma doença séria a um clichê de auto-ajuda. Depois dessa frase, ele compara mulheres promíscuas a praças públicas (cá pra mim, praças são espaços maravilhosos, que toda cidade quer ter, mas volto a isso mais adiante). E, em seguida, vem o trecho de sua pregação que mais gerou polêmica. Em suas palavras, tiradas do vídeo:
"Nós não saímos por aí com as plaquinhas: 'não abuse de mim', 'me respeite'. Porque essa placa não está escrita em palavras, ela está escrita nos seus olhos. É você com o seu jeito de olhar, com o seu jeito de ser gente, é o caráter que está exposto no seu rosto que vai dizer ao outro o que ele pode fazer com você ou não. Nós é que no momento em que nos construímos como pessoas é que sinalizamos o nosso território. Caso contrário, as pessoas virão, acharão que nós podemos tudo e farão tudo que querem conosco mesmo. Eu sempre digo, as mulheres que são agredidas fisicamente pelos seus maridos, no dia em que ela recebe a primeira agressão, ela que vai determinar para ele se ele vai ter o direito de agredi-lo a vida inteira ou não. É o jeito como ela olha pra ele. Não é nenhuma palavra, nenhum grito que vai dizer 'não me bata', mas é o seu jeito de ser mulher. O agressor, ele só se torna agressor porque a vítima o autoriza". 
É uma fala desastrosa porque coloca a culpa de ser agredida na mulher que é agredida. Muitas mulheres (pessoas em geral, aliás, homens e crianças também) não denunciam a violência que sofrem por uma série de motivos complexos. Por ser financeiramente dependente do agressor, por estar familiarizada com aquela violência, por achar que nada vai acontecer se ela denunciar (ela será devastada, ele sairá impune), por temer pela própria vida, por temer pela vida dos filhos (já que é comum um agressor fazer inúmeras ameaças), por ter motivos de sobra para não confiar nas instituições que deveriam protegê-la, por ter sido condicionada a crer que é melhor ter um homem violento do que nenhum, por achar que, se tivesse outro homem, ele também a agrediria etc. A baixa autoestima também é um fator, sem dúvida. Mas está longe de ser o único, sequer o mais importante. 
Eva foi incriminada
Além do mais, reduzir uma praga social (a violência contra as mulheres) a um problema individual é não querer encarar o problema. Não é "o seu jeito de mulher" que vai fazer tantas mulheres, independente de idade, classe, raça, religião, serem agredidas. É o "jeito que a sociedade vê a mulher". E um termo tão abstrato quanto "a sociedade" inclui acima de tudo a sua igreja, padre, que culpa as mulheres por todos os males da humanidade.  
A frase final desse trecho da pregação ("o agressor só se torna agressor porque a vítima o autoriza") é um resumo não só da culpabilização da vítima como também da cultura do estupro. Porque isso vale pra estupro também, certo, padre? É o velho "o que ela estava vestindo?" A roupa da mulher "autoriza o agressor"? E quando a vítima é criança, sua pregação vale pra ela também? A criança que é abusada sexualmente (muitas vezes por padres cujos crimes são encobertos pela igreja) também, com "seu jeito de olhar", autoriza o abuso que sofre? Em que momento ela não sinalizou seu território?
A fala do padre não é de agora, é de julho de 2007. E óbvio que todo mundo erra e que muita gente muda e se arrepende das besteiras que falou (tem um monte de crônica de cinema que eu escrevi dez, quinze anos atrás que eu olho e penso: "EU escrevi isso? Onde posso me esconder?"). O desafio é como se comportar diante de críticas merecidas. A atriz Fernanda Torres me veio à mente. Em fevereiro, ela escreveu um texto absurdo. No dia seguinte, publicou sua retratação. Um texto direto, simples, de muita reflexão, afirmando que errou e pedindo desculpas. Não daquele jeito "errei pero no mucho" de "Se eu errei, peço desculpas". Fábio de Melo não foi tão feliz:
O padre se diz "desconfortável", e assume que "culpar a vítima é abominável". Porém, responsabiliza "a linguagem" pela besteira que pregou, não o pensamento em si (e aposenta esse SE, padre! Você foi infeliz, não tem SE não!).
 
Ele pediu desculpas mas não mudou de opinião, nem passou por qualquer reflexão.
 
Pra ser franca, eu não achei o trecho acima o mais revoltante da pregação do padre. Como eu apontei, antes do trecho acima Fábio de Melo diz o seguinte, sobre quem tem depressão: 
"É aquela pessoa que já não tem mais nenhum cuidado consigo porque ela já perdeu todo o referencial do valor que ela tem. Por exemplo, uma pessoa que vive uma vida de promiscuidade sexual. Cada dia ela está com um. Um dia ela transa com um, um dia ela transa com outro. [...] É a consequência pior da vida moderna, que é a perda do sentido do corpo, da vida e do valor como pessoa . É a pior coisa, quando você descobre que a pessoa deixou a sua dignidade para se tornar uma praça pública. Existem pessoas que são semelhantes às praças públicas: todo mundo passa, joga o seu lixo, e ninguém volta pra cuidar depois. E aí você encontra essas pessoas por todos os lados, socializadas no nosso meio, em nome de uma modernidade, em nome de uma autonomia, de uma liberdade que a mulher conquistou, ela se sente no direito de passar a sua vida inteira experimentando. E o pior: os outros fazendo dela, tornando-a, transformando-a em espaço público que não merece ser respeitado. Porque você não tem placas proibindo pisar na grama. Proibido agredir. Proibido usar e depois ir embora. Você não tem essas placas". 
Ok? Essa foi a introdução do padre à história das plaquinhas. Aqui, ele ainda não está falando de vítimas de violência doméstica (ou de estupro), porque ainda não falou do agressor. Aqui, ele condena as mulheres promíscuas. Ele até pode estar falando de "pessoas", mas deixa claro quem são seus alvos na parte em que fala da "autonomia e liberdade que a mulher conquistou". Ele realmente compara mulheres promíscuas a praças públicas, mostrando o total desconhecimento que têm sobre mulheres e praças públicas.
Se, para ele, praças públicas são espaços ruins (tá cheio de indicador que mede a qualidade de vida de uma cidade pela quantidade dos espaços públicos), se para ele praças são lugares em que as pessoas vão jogar lixo, então tem que mudar a mentalidade que ele e as pessoas têm sobre as praças, não as praças em si. Porque quem está errado é quem vê praça como lugar pra jogar lixo, não a praça.
"Não acredito que ainda
tenho que protestar contra
essa m*rda"
Uma mulher, uma pessoa, assim como uma praça, deve ser respeitada de qualquer jeito. Seu caráter não pode ser medido pela sua vida sexual. Isso é um discurso moralista e misógino, porque implica que mulher "deve se dar o valor". Ou seja, não que uma mulher já tem valor, mas que ela precisa consegui-lo através de sua abstinência. Esse é um discurso que me revolta porque era o que eu ouvia trinta anos atrás, quando eu não tinha marido ou namorado e transava com quem eu quisesse, desde que o cara obviamente me quisesse também. É dureza ouvir tal discurso duas ou três décadas depois. Dá a impressão que tem gente parada no tempo, de que nada mudou.
E a parte do "os outros fazendo dela espaço público que não merece ser respeitado"? Aí não sobra muito espaço pra interpretação. Qual mulher "não merece ser respeitada", padre? Tem realmente mulher que não merece o respeito, porque respeito é algo que você, ou a sua igreja, tem que outorgar a ela?
Após a parte das plaquinhas ligadas à violência doméstica, o padre volta a pregar contra a mulher promíscua. Continua assim:
"Porque quando a falta de amor próprio se instaura dentro de nós, nós nos tornamos incapacitados de lutar por nós mesmos. Nós nos tornamos territórios baldios. É assim. Território baldio funciona desse jeito: você passa, vê que já está sujo mesmo, precisa jogar aquele seu lixo fora, o que você faz? Não tem ninguém olhando mesmo, já tá cheio de lixo, não vai fazer diferença, um pouquinho de lixo a mais, um pouquinho de lixo a menos, joga ali. Este é o grande problema do terreno baldio, porque ninguém está responsável por cuidar. Ninguém está fazendo sentinela para que os outros não continuem tratando como lugar de terreno baldio. Todo mundo vai jogando seu lixo e vai ficando. Minha gente, é lamentável que em muitos momentos da nossa vida, a gente assume a condição de terreno baldio mesmo. Porque os outros percebem em nós que aquilo ali você não precisa respeitar muito não. Você olha e já vê logo que aquela menina ali é fácil. É lamentável isso. Você olha pro rapaz e percebe, 'é, aquele ali não é muita coisa não, vamos, vamos fazer'. É lamentável que a gente vai colocando na nossa cara a condição de homens e mulheres que não se amam, e por isso não são respeitados, e por isso também não serão amados."
Desta vez o padre deixe a praça pública de lado (que certamente tem mais valor pra muita gente do que tem pra ele) e vai pro território ou terreno baldio, que não tem nada de positivo. O irônico é que quase sempre terrenos baldios não são espaços públicos. Pelo contrário, são propriedade privada. Se fossem propriedade pública, poderiam ser praças, deixando a cidade mais agradável. Aliás, tem algo de nefasto em comparar "mulher fácil" e corpos de mulheres a terrenos baldios, porque terrenos baldios são lugares especialmente perigosos para mulheres, onde elas às vezes são estupradas, onde seus cadáveres muitas vezes são abandonados. 
O padre continua seu sermão:
"E você aceita [que o "mais ou menos namorado" não dê notícias], você vai vivendo a condição de terreno baldio. Se ele percebe que a moça é séria, depois de uns três, quatro dias que ele ficou com ela, que ele sabe que não vai poder enrolar, o quê que ele fala? 'Olha, você é uma pessoa muito simpática, muito bacana, MAS...' Ele só não tem coragem de complementar, mas ele deveria falar assim, desculpe a palavra: 'eu prefiro uma puta. Eu prefiro aquela que viva a condição de prostituta no mundo de hoje sem saber que é'. Na verdade o que ele precisa dizer com coragem é isso".
Ou seja, Fábio de Melo compara a moça que não é séria (e a seriedade é medida pela sua abstinência sexual) a quem vive "a condição de prostituta no mundo de hoje sem saber que é". Discurso mais moralista que esse de chamar mulher que faz sexo de prostituta, impossível. Até porque tira toda e qualquer agência da mulher. Uma garota pode querer fazer sexo sem compromisso, e daí? Ela pode não se sentir "usada". Ela pode sentir que "usou", se a gente realmente quer ficar nessa narrativa utilitarista furada. 
Sou alérgica ao patriarcado
E o padre se contradiz: antes, disse que "mulher fácil" fica sozinha, porque não tem ninguém pra cuidar dela (quem disse que ela quer ser cuidada? Ela deve ser respeitada e acabou). Agora, diz que "moça séria" também fica sozinha, porque os caras preferem as moças fáceis, quer dizer, as putas. Olha...
Dá pra escrever mais 150 folhas sobre o discurso machista do padre, mas vou parar por aqui. Sinto por quem o idolatra, mas ele está muito equivocado sobre o que acha, ou achava, de mulheres e praças e terrenos baldios. Torço para que ele e seus seguidores, e principalmente suas seguidoras (porque a vasta maioria dos fiéis é mulher, basta ver o vídeo da sua pregação), possam refletir sobre o que pensam das mulheres. 
E mudar. Sempre dá tempo.