Chacina no cinema? Horror no shopping? Carnaval da mídia? Tudo isso e mais um pouco neste acontecimento lamentável do estudante de medicina que atirou a esmo durante uma sessão de cinema em São Paulo. Ainda vamos ler ou ouvir muitos detalhes sórdidos. Dos noticiários de TV a gente espera qualquer coisa, que todo Jornal Nacional tem um pouco de Cidade Alerta, mas de repente toda a mídia escrita dita "séria" assume seu lado Notícias Populares ou O Dia. Páginas e mais páginas narrando a mesma coisa, chafurdando-se em sangue. Os jornais nos oferecem cadernos especiais, deslocam vários reportéres, não economizam nas fotos coloridas, derramam-se em análises.
Na mesma semana, na mesma cidade, só que um pouco mais longe do ar-condicionado, duas crianças foram baleadas na cabeça em frente à uma padaria da periferia. Depois, mais mortos num casamento evangélico. A diferença na cobertura é gritante. Poucas linhas sobre os pobres; mandam um estagiário qualquer para a reportagem e não se fala mais nisso. Afinal, chacinas em subúrbios são corriqueiras, acontecem (literalmente) diariamente e faz tempo que os jornais pararam de gastar tinta publicando nome de vítima que ninguém vai ler.
Porém, no caso do atentado no shopping, entrevistam até amigo de vítima. Sinceramente, há algo mais inútil do que perguntar pra alguém "o que você achava do falecido"? Sendo amigo, então, é saliva à toa. O adjetivo mais modesto usado para descrever a fotógrafa assassinada foi "brilhante". Precisamos mesmo saber algo sobre ela para sentirmos pena e indignação? Quando criança pobre recebe tiro, mal entrevistam a mãe.
Outras tantas páginas estão sendo gastas para descrever o sentimento dos freqüentadores de shopping. Uma senhora diz que assim não dá, que, francamente, ela ficará preocupada em deixar as filhas adolescentes no cinema enquanto vai fazer compras, que estão querendo estragar suas poucas opções de lazer. Ao balbuciar essas sábias palavras, nem ela nem o jornalista têm a mínima idéia sobre o apartheid social em que vivemos.
A mídia dá todo esse destaque à matança do shopping não só porque público que folheia jornal é de classe média, mas também porque jornalista - quem cria e redige - também pertence a esse estrato. Esse negócio que repórter corre atrás da notícia, esteja ela onde for, é pura balela. Deve ser incômodo empoeirar a roupa de griffe em uma visita às ruas esburacadas da favela. Cobrir notícia em centro de compras está mais dentro de seu habitat natural.
Por um lado, é bastante normal que nos interessemos mais pelos nossos semelhantes. Se ocorre algo no nosso prédio, ficamos mais atentos do que se fosse em outra rua. Gostamos daquela sensação mórbida de que "poderia ter acontecido conosco". E também nos identificamos, pelo menos esteticamente, com as vítimas e com o assassino que, na pior das hipóteses, assiste aos mesmos filmes que a gente.
Mas não precisamos exagerar. Lembro, de memória, de outros desastres envolvendo a classe média e da cobertura exacerbada da imprensa: as viúvas da TAM, a explosão do shopping de Osasco (shopping é shopping, nem que seja em cidade-satélite), a falência da Encol, a queda do Palace 2 (foto)... Na mesma época em que caiu o edifício do Sérgio Naya (quem?) havia acabado de ocorrer um desabamento de barracos, com muitos mais mortos. Mas quem pediu donativos foram os sem-teto da classe média, aqueles que ganhavam mais em uma semana do que os favelados em um ano. É difícil esquecer o apelo de uma das vítimas do Palace: "precisamos urgentemente de ticket-combustível".
No fundo, falamos do atentado no shopping com uma pontinha de orgulho, como se tivéssemos enfim importado o modelo americano. E o que é bom para os EUA é bom para o Brasil, certo? A classe média continua fazendo o que sempre fez: olhando para o próprio umbigo. O que eu realmente queria saber é quem decretou que a vida de um economista vale mais do que a de um faxineiro. A mídia e quem mais?