E de repente, não mais que de repente, Ana Caroline Campagnolo se tornou conhecida nacionalmente.
É que, no mesmo dia que vai entrar com um dos mais catastróficos da história do Brasil (eleição de Bolso), a moça se dirigiu aos estudantes catarinenses. Ela pediu que alunos filmassem ou gravassem "todas as manifestações político-partidárias ou ideológicas que humilhem ou ofendam sua liberdade de crença e consciência". Ou seja, que alunos enviassem para ela vídeos dos seus "professores doutrinadores" "inconformados e revoltados" com a vitória de Bolsonaro.
Já já falo mais da repercussão desse pedido tão singelo.
Mas quem é Ana Caroline? A primeira vez que eu ouvi falar dela foi alguns anos atrás (quantos? Seis? Oito? Mais?). Alguém me mandou uma postagem dela no Facebook em que ela postava uma foto minha e pedia para seus seguidores opinarem sobre quem era mais bonita, ela ou eu. Achei estranho e um tanto carente a comparação, já que ela deve ter metade da minha idade, e, ahn, prefiro não falar de QI. Não dei bola. Pensei: mais uma antifeminista querendo agradar hominhos, achando que, por odiar feministas, se safará de ser insultada e agredida por misóginos (spoiler: não funciona).
Jeito de um reaça elogiar a aparência de uma mulher de direita no "Musas" |
Algum tempo depois, ela começou uma comunidade no Facebook chamada Musas Olavettes. Era assim: mulheres de direita mandavam fotos suas e elogios ao guru da extrema-direita Olavo de Carvalho. Nos comentários, os seguidores de Olavão (a direita é constituída em sua imensa maioria por homens, vários dos quais não são exatamente bem sucedidos com mulheres) deixavam gracejos e memes para as "musas", sempre acompanhados de comparações com as "peludas e bigodudas da esquerda". A página ainda existe, mas parou de ser atualizada em 2014. Aparentemente, a amostra de "musas da direita" não era tão grande.
Um tempo depois, alguém me avisou que Ana, quando não estava ocupada demais sendo musa, é professora de história em SC. E que, seguindo o seu mestre, ela muito se orgulhava de ensinar em suas aulas que o nazismo foi uma ideologia de esquerda. Hitler era o maior comuna, saca? Em sua página no FB, Ana colocava redações de seus alunos sobre o que ela lecionava. Era de chorar.
Mais tarde, fiquei sabendo que ela estava processando, com o patrocínio do Escola sem Partido, Marlene de Fáveri, professora de história da Udesc que trabalha com gênero. Ana foi mestranda de Marlene até que a professora foi avisada das coisas bizarras que sua orientanda falava e escrevia nas redes sociais.
Compreensivelmente, Marlene se desligou da orientação, o que é de seu direito (pense: você é uma respeitada professora e pesquisadora feminista. Quer mesmo ter o seu nome associado ao de uma reaça que faz posts dizendo que gostaria de passar mais tempo em casa em vez de trabalhar, e amaldiçoava o feminismo por isso? Ou chamando Simone de Beauvoir de pedófila? Ou inventando mil e uma mentiras sobre feminismo?).
Ato por Marlene |
Ana prosseguiu com o mestrado, mas com outro orientador. No final, sua dissertação foi reprovada pela banca, e só aí Ana decidiu processar Marlene por "perseguição ideológica". Algo absurdo é que ela alegou ter sido perseguida por ser cristã. Para demonstrar isso, Ana usou uma gravação que fez de uma aula de Marlene. Com todo o apoio do Escola sem Partido, Ana foi chamada para falar no Congresso numa audiência pública. Felizmente, este ano um juiz absolveu Marlene.
Não sei quando Ana se filiou ao PSL para concorrer a uma vaga para deputada estadual por SC. Deve ter tido o apoio dele e também de Olavo. Foi eleita com quase 35 mil votos no Estado que deu a maior vitória a Bolso. E, como o governador eleito, o até então 100% desconhecido comandante Moisés, é do mesmo partido, Ana está cotada para ser Secretária de Educação (parabéns, catarinenses!).
Bolso não só já gravou vídeo pedindo aos alunos para denunciarem seus malditos professores (ele fala professores entre aspas), como ele mesmo já perseguiu vários. O caso mais famoso é o da professora universitária Tatiana Lionço. Em 2012 Bolso editou e deturpou completamente a fala de Tatiana num congresso, fazendo parecer que ela apoiava a pedofilia, e espalhou o vídeo para milhares de seguidores. Eles então se encarregaram de xingar e ameaçar a professora. Ela processou Bolso, mas como ele tinha imunidade parlamentar, nada aconteceu.
Mas a iniciativa de Ana de agora chamou muito a atenção. Nem sei porquê -- afinal, perseguir professores é justamente o que o Escola sem Partido quer. Há prints do Escola sem Partido, coligado com o MBL, oferecendo 50 reais por vídeo de professor "doutrinando alunos dentro da sala de aula" (desde que a cara do professor fosse visível, para que ele pudesse ser identificado e, consequentemente, perseguido). É uma nova caça às bruxas. Uma ojeriza à escola e à universidade pública. Professor comuna deveria estar na cadeia!
Só que nem todos concordam com isso. Aliás, quando o Escola sem Partido foi posto para consulta pública, ele foi derrotado pela população, que não quer os professores amordaçados. E a reação à atitude de Ana pode ser a primeira demonstração de que Bolso não foi eleito com a maioria dos votos (89 milhões de pessoas não votaram nele). Em outras palavras, só porque ele ganhou, não significa que ele e seus asseclas sejam os donos do Brasil e possam fazer o que quiserem.
Um rapaz criou uma campanha oferecendo doar R$ 5 mil a APAE se as pessoas enviassem cem "gemidões" para Ana. O que se viu foi divertido. Um cara, por exemplo, mandou uma mensagem escrito "Filmei meu professor de história tentando nos doutrinar com ideias comunistas hoje durante a aula. Ele falou até que nazismo era de direita". Aí, quando se abre o vídeo, há gemidos. Em uma hora de "campanha", bem mais de cem vídeos foram enviados à deputada eleita.
Um dos "gemidões" manda- dos a Ana |
Ontem à tarde recebi um email de uma leitora que falou com um procurador sobre o caso. O Ministério Público Federal em Chapecó recomendou às instituições de ensino superior da região que "impeçam qualquer forma de assédio moral a professores, por parte de estudantes, familiares ou responsáveis". O MPF considerou que a conduta da deputada, "além de configurar flagrante censura prévia e provável assédio moral em relação a todos os professores do estado de Santa Catarina, das instituições públicas e privadas de ensino, não apenas da educação básica e do ensino médio, mas também do ensino superior, afronta claramente a liberdade e a pluralidade de ensino".
Mais tarde, no início da noite, o Ministério Público do Estado de Santa Catarina (MPSC) ajuizou uma ação civil pública contra a deputada. Segundo a petição, Ana implantou um "abominável regime de delações informais, anônimas, objetivando impor um regime de verdadeiro terror" nas salas de aula do Estado. Para os promotores, Ana agiu com "crueldade" pondo os alunos como "inquisidores dos professores". E essa perseguição fere a liberdade de expressão dos professores.
Ontem professores começaram uma petição pedindo a impugnação da deputada por incitar "o ódio ao afirmar inverdades, provocando um ambiente escolar insalubre". A petição já está se aproximando das 350 mil assinaturas (dez vezes mais que os votos que Ana recebeu).
A conclusão desta história toda é que ainda não está tudo dominado. Há resistência.
UPDATE em 2/11/18: Um juiz de Floripa determinou que Ana Caroline Campagnolo terá de remover as publicações que pedem que alunos filmem seus "professores doutrinadores". Segundo o juiz, ela violou "princípios constitucionais como o da liberdade de expressão da atividade intelectual, científica e de comunicação". A multa é de R$ 1 mil por dia em caso de descumprimento. A deputada também está proibida de criar ou manter um serviço particular de denúncias das atividades de servidores públicos, já que existem ouvidorias para isso.
UPDATE em 2/11/18: Um juiz de Floripa determinou que Ana Caroline Campagnolo terá de remover as publicações que pedem que alunos filmem seus "professores doutrinadores". Segundo o juiz, ela violou "princípios constitucionais como o da liberdade de expressão da atividade intelectual, científica e de comunicação". A multa é de R$ 1 mil por dia em caso de descumprimento. A deputada também está proibida de criar ou manter um serviço particular de denúncias das atividades de servidores públicos, já que existem ouvidorias para isso.