terça-feira, 30 de junho de 2020

PARA APOIAR O BREQUE DOS APPS, NÃO PEÇA ENTREGAS AMANHÃ

Amanhã, dia 1o de julho, haverá uma greve dos entregadores de aplicativos. Já tem uma tag bombando no Twitter: 
#AmanhaTemBrequeDosApps. O jeito de apoiar é não pedir nenhuma entrega amanhã!
Reproduzo aqui a entrevista que o coletivo Juntos! fez com a entregadora antifascista Eduarda Alberto. Uma entrevista importante para entendermos os perigos e desafios desta profissão altamente precarizada

1. Como você se tornou entregadora de aplicativo? Tinha outra profissão antes?
Eu não sou entregadora de aplicativo, eu entrego para micro-empreendedoras e outros serviços freelancer que surgem. Porque eu não sou entregadora de aplicativo: o meu namorado até pouco tempo entregava por aplicativo e alguns companheiros nossos e amigos próximos também, e a questão da precarização do trabalho no aplicativo já era muito clara pra mim. Inclusive eles também pararam de entregar por aplicativo, então quando comecei a entregar, eu já tentei criar meios pra não depender de aplicativo, pra ter um trabalho mais autônomo mesmo. Eu tinha outra profissão antes sim, na realidade eu estudo arquitetura e todo o meu trampo é pra conseguir me manter estudando. Manter meu aluguel, comida e principalmente estudando. Eu tava trabalhando nos últimos tempos como bartender, e quando Crivella decretou a quarentena e os bares tiveram que fechar, na semana seguinte eu já tava fazendo entrega, porque eu precisava de uma fonte de renda. Então eu me tornei entregadora justamente por conta da pandemia. Então não fiquei de quarentena nenhuma semana sequer.

2. Como você vê essa ideia de empreendedorismo para aqueles que trabalham por conta própria?
Essa ideia de empreendedorismo pra quem trabalha por conta própria é uma mentira né, quando é contada pra pessoas que são prestadoras de serviço. Entregadores são prestadores de serviço, não têm um plano de negócio, não tem uma projeção de enriquecimento, até porque o que você ganha não consegue nem dar conta de todas as suas contas às vezes. Então isso é uma mentira que eu percebo que ela é contada pra você se sujeitar àquele trabalho mesmo, porque se você pensa, quem se sujeita a pedalar 6 km pra ganhar 3 reais, né? 
Você tem que estar acreditando numa mentira, então acredito que essa ideia do empreendedorismo é uma estratégia manipuladora mesmo, pra gente que entrega. Vende uma ideia de certa emancipação, de certo emponderamento, mas na verdade você não define se você quer as taxas que você vai receber, você não define absolutamente nada, você é um prestador de serviço e ponto. Você recebe uma demanda e aquilo é imperativo, você não decide nada sobre ela, você só pode cumprir.

3. Quais são as principais revindicações dessa paralisação?
Antes de tudo, acho importante deixar claro que eu faço parte do movimento dos entregadores antifascistas e essa paralisação que se tornou um chamado pra greve, não foi puxada por nós, mas a gente apoia. Nós fomos um movimento que surgiu inclusive no meio de todo esse processo de organização pra essa greve, mas não fomos nós que puxamos, apesar de apoiar 100%.
Mas vamos lá para as reivindicações dessa paralisação: está sendo reivindicado um aumento no valor das corridas e pacotes; aumento do valor mínimo por entrega; seguro de roubo, acidente e vida; bizarro até ter que reivindicar isso, porque não é garantido. Se você morre no meio da estrada, você vai estar morto com a logomarca do aplicativo do seu lado, fazendo propaganda, mas eles não vão ali te socorrer não. 
Então tem também o fim dos bloqueios e desligamentos indevidos. Por que isso tá entrando? É muito bloqueio indevido mesmo, tem gente que nem rodou no dia anterior, acorda pra poder rodar naquele dia e tá bloqueado porque supostamente fez uma entrega errada que a pessoa nem trabalhou. Só um exemplo da surrealidade. 
Tem também o fim do sistema de pontuação, esse sistema de pontuação, é muito injusto também porque às vezes quando a pessoa pede um lanche no aplicativo e dá uma nota baixa pra aquele pedido, isso pode bloquear um trabalhador que não vai ter como levar dinheiro pra botar comida em casa. E às vezes a responsabilidade é mais dos restaurantes do que dos entregadores. Além disso, tem também o auxílio pandemia que tá sendo reivindicado nessa greve: EPIs, porque os aplicativos não fornecem material de segurança, e licença também pros entregadores que pegarem coronavírus agora na pandemia.

4. Você vê uma relação entre essa mobilização e outras que tem acontecido nacionalmente, como os atos antifascistas e antirracistas?
Eu percebo sim uma relação porque está se criando um terreno de revolta. Esse terreno de mobilização já é um terreno de revolta, que tá acontecendo. Os atos antifascistas e antirracistas e antirracistas inclusive, foram o berço do nascimento dos entregadores antifascistas. Então pra além do nosso grupo de entregadores antifascistas, de qualquer forma tá sendo um momento no mundo todo de muita revolta. Em pontos chaves de disposição do mundo. E o próprio movimento nasceu no ato pela democracia, por isso é interessante também o termo antifascista no nosso movimento, até porque a gente percebe que se não tiver num regime político que você tenha a possibilidade de fala, de ter voz, de se organizar com seus comuns, não tem como tocar nenhuma luta.

5. Outras paralisações internacionais, como a de uberes que aconteceu ano passado, influenciaram vocês de alguma forma?
Nas discussões que eu vejo de motoboys e entregadores em geral, a maior referência tá sendo da greve dos caminhoneiros, que tá sendo citada de forma recorrente entre os motoboys. Talvez eles se percebam mais como entregadores também né, como pessoas que transportam mercadorias pelo território.

6. Como vocês tem se organizado a nível local e nacional?
De maneira geral os motoboys e entregadores têm se organizado por whatsapp. O whatsapp tem sido a maior ferramenta de troca de ideia, troca de informação. O movimento de entregadores antifascistas especificamente também se organiza bastante pelo whatsapp, mas a gente tem reuniões periódicas de todos os estados pra poder definir e alinhar nossos planos para o movimento. E o boca a boca, que é o mais utilizado de fato. Quando você tá com o aplicativo ligado, você pode ficar por 12h com ele ligado que não necessariamente você vai pegar vários pedidos. Tem várias pessoas que ficam com o aplicativo ligado e conseguem pegar 3 pedidos. Então esse momento de aguardo nos pontos que saem pedido é um momento potente pra troca de ideia e pra nossa organização.

7. Por que você acha que entregadores de aplicativo são principalmente homens?
Muito interessante essa questão, porque ela vai além dos entregadores de aplicativo. Eu acho que qualquer profissão que você tenha que vivenciar a cidade, as mulheres são menor quantidade no grupo de trabalhadores. Porque de maneira geral as mulheres são socializadas pra escala doméstica, a gente é criada pra ter medo da rua e a rua é realmente perigosa pra gente. Então é uma série de fatores que coloca os homens pro mundo e as mulheres pra escala doméstica, seja a socialização ou seja realmente os riscos que a rua oferece. 
Eu por exemplo, não rodo à noite, não posso rodar à noite. Porque eu percebo que eu ali, com uma bag nas costas, mexendo no celular o tempo inteiro, eu tô ali vulnerável. E alguns lugares eu não tenho total conhecimento, né? Então eu acho que essa questão do ambiente da cidade ser hostil pras mulheres de maneira geral, reflete nessa questão de ter mais entregadores homens, como em todas as outras profissões que são mais na rua.

8. Como as pessoas podem apoiar a mobilização de amanhã, dia 1?
Principalmente não pedindo no aplicativo. Não pedir no aplicativo é uma forma muito relevante de ajudar nesse dia. Mostrar realmente o impacto econômico que nós somos. Nós produzimos dinheiro pras empresas, né? 
Quem tá movimentando o dinheiro das empresas não são os acionistas, é quem faz o dinheiro pra eles que é quem tá na rua se expondo pra trabalhar. Então a gente consegue mostrar a nossa força com esse apoio, ninguém pedindo no dia 1°. E se der pra não pedir nos dias seguintes, ótimo também. Porque a gente tá querendo conseguir movimentar uma greve, então pra além de um dia.
E de maneira geral, eu tenho dito pras pessoas, quando for pedir um lanche por aplicativo que vier a pessoa entregar, pergunta pra ela se ela faz entrega por fora do aplicativo, aproveita pra pegar o contato dessa pessoa. Tem forma de apoiar por fora dos aplicativos e a ideia é fortalecer isso cada vez mais. E é isso, muito obrigada pelo interesse de ouvir sobre o movimento, de ouvir sobre nossa organização e pelo apoio. Também pelas perguntas muito boas, que foi uma delícia aqui de estar respondendo. Muito obrigada!
UPDATE: Veja aqui o sucesso que foi o #BrequeDosApps, o levante contra a precarização. Imagens de protestos por todo o país! (na foto acima, Fortaleza).

segunda-feira, 29 de junho de 2020

MINISTRO DO MEC É UMA FRAUDE

Pessoas queridas, hoje não tem texto, mas tem vídeo!
Nesses últimos dias estive entretida nas fraudes no currículo do novo ministro da Educação, Carlos Alberto Decotelli da Silva. Ele foi anunciado na quinta no lugar do abjeto Weintroll, que já entrou pra história como o pior da história. Mas agora corre o risco de ter que sair antes de ser empossado. Primeiro descobriu-se que ele não é doutor. Depois que ele nunca fez pós-doutorado. E sua dissertação de mestrado está cheia de trechos copiados de outros trabalhos. Ninguém ainda analisou seu TCC.
Mas o pior é ver o MEC defendendo seu ministro e, assim, sugerindo que qualquer um que tenha cursado os créditos pode se dizer mestre ou doutor, ainda que não tenha escrito ou defendido sua dissertação ou tese (ou que tenha sido reprovado, caso de Decotelli). Confira essa e outras desventuras no vídeo no meu canal
UPDATE: novas mentiras reveladas. São tantos os "erros" de Decotelli que eles não param de chegar. Logo, meu vídeo de ontem já está defasado. De lá pra cá também se soube que:
- Ele não foi professor efetivo da FGV. Além de ter dito no LinkedIn que era, no email que enviou para a professora na universidade de Wuppertal, ele dizia ser. A FGV declarou que o ministro atuou apenas nos cursos de educação continuada e nos programas de formação de executivos.
- A explicação que ele deu pro seu "pós-doc" na Alemanha também já caiu por terra. Sua professora afirmou que ele não conseguiu apoio da empresa Krone para fazer a pesquisa, ao contrário do que dizia seu currículo no Lattes.
- Ele mentiu na sua formação militar. Apresenta-se como "oficial da reserva da Marinha", mas não fez concurso, apenas prestou um serviço militar temporário. 
- Pelo menos o MEC, ou algo do tipo, reconheceu que ele não é doutor. Ao buscar seu nome na Plataforma Lattes, se você clicar em "doutores", não vai encontrá-lo. Seu currículo ainda aparece, no entanto, se você clicar em "demais pesquisadores". 
E finalmente... Decotelli pediu demissão hoje à tarde. Desgoverno corre para anunciar o nome do próximo incompetente. Já foram três só nesse ministério!

domingo, 28 de junho de 2020

UMA RECEITA FÁCIL E FABULOSA

No final de semana passada, o maridão estava vendo uns vídeos sobre como transformar plantas e verduras em sementes (algo assim), e pedi pra ele escolher e me mostrar um vídeo com alguma receita bacana que a gente deveria tentar (na quarentena, estou gostando bastante de cozinhar).
Ele me mostrou um vídeo que, infelizmente, não sei de onde veio (creio que daqui -- encontrei ao procurar imagens pra ilustrar o post). Eu adaptei um monte, fizemos a receita na quarta, e ficou maravilhoso! Além do mais, rendeu bem -- deu pra quatro dias entre nós dois. Então, anotem aí. Recomendo muito.

CARNE AGRIDOCE
Ingredientes: 500 g de carne (bovina, suína, frango) em tirinhas
6 colheres de amido de milho (mais conhecida pela marca Maizena)
2 cenouras raladas
2 cebolas picadas
2 tomates
1 pimentão
Alho
2 colheres de açúcar mascavo
Meia xícara de shoyu
1 pouquinho de leite (2 colheres de sopa)

Silvinho cortando cebola em Joinville
(foto de uns 15 anos atrás. Hoje ele
não usa mais a máscara. Continua
reclamando por ter que cortar cebola)
Pedi pro maridão comprar meio quilo de carne bovina (patinho, alcatra, contrafilé), porque a receita original recomendava esses cortes. Mas o açougueiro do supermercado queria cobrar R$ 50 por um quilo de carne cortada em tirinhas. É muito caro! Então o maridão trouxe pra casa uns 700 g de picanha suína já temperada. Custou R$ 20. Com uma faca bem afiada que a gente nem sabia que tinha e uma tábua de madeira, ele mesmo cortou a carne em tirinhas (se você comprou uma carne que não vem temperada, tempere um pouco, mas não muito, porque vai bastante shoyu depois). 
Aí tem que misturar cada tirinha numa forma com 4 colheres de amido de milho (4, não 6 -- as duas restantes são pra outra coisa), e fritar com um pouco de óleo ou azeite. Essa primeira parte da receita não ficou muito bonita. A carne com maizena grudou bastante na panela. E se você provar essas tirinhas fritas sem o molho, não fica grande coisa. Eu pensei que já tivesse falhado. 
Mas calma! Reserve essa carne já frita num prato, e use a mesma panela pra fritar as cenouras e cebolas. O que estava grudado no fundo da panela vai soltar um pouco, mas não muito. Acrescente o pimentão, os tomates, o alho. Quando tudo estiver mais molinho, junte meia xícara de shoyu, meia xícara de água, e 2 colheres de açúcar mascavo. Mexa bem. Aí sim quase tudo que tinha ficado grudado na panela vai se desgrudar, e você vai poder sorrir novamente.
Dissolva duas colheres de maizena/amido de milho em duas colheres de leite. Este é um truque antigo para engrossar qualquer molho ou cobertura, e funciona. Despeje no molho, mexa bem, e junte as tirinhas de carne já fritas. Tá pronto! Fica tão bom! 
Servimos com purê de batata (nos primeiros dois dias) e depois, quando acabou o purê, com arroz integral, arroz preto, e arroz sete grãos. 
Pro purê, temos usado um mixer que demos de presente pra minha mãe. O purê fica um pouco líquido demais, mas a vantagem é que não precisa acrescentar praticamente nada. Coloco uma colher de requeijão, um tantinho de nada de manteiga, e temperos (principalmente noz moscada). 
Claro que dá pra substituir a carne por verduras e fazer um prato vegetariano. Mas aí não sei como fica misturar as verduras na maizena. Aliás, não sei se a maizena é um elemento primordial no prato. Se só fritar as tirinhas de carne sem a maizena, será que o prato fica parecido, sem tudo grudar na panela (mas depois desgruda)?
Infelizmente, não tiramos fotos. Comemos tudo. Vamos repetir outras vezes. 
Mãe, se você estiver lendo, na próxima vez te serviremos um prato.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

SÉRIE SOBRE JEFFREY EPSTEIN ESCANCARA A IMPUNIDADE DOS PODEROSOS

Acabei de ver os quatro episódios do documentário da Netflix sobre Jeffrey Epstein (JE: Poder e Perversão). É nojento, que raiva que dá! Porém, é um trabalho de fôlego, que entrevista dezenas de pessoas, entre elas várias vítimas, e cobre dezenas de anos. 
Há evidências de que ele abusou sexualmente de pelo menos 400 adolescentes. Ele criou um bem sucedido esquema de pirâmide sexual da prostituição. Uma menina (em idade escolar, no ensino médio, entre 14 e 17 anos) era abusada, e ela indicava uma amiga para também ganhar uns 200 dólares (a promessa geralmente era fazer massagem), que também era abusada, indicava outra... E ele compartilhava algumas delas com outros amigos bilionários. Levava no seu jatinho (chamado de Lolita Express) os estupradores e as garotas para sua ilha particular nas Ilhas Virgens americanas.
São centenas de vítimas que não vão conseguir indenização nem mesmo para pagar as custas judiciais, pois, dois dias antes da sua morte, Epstein transferiu 600 milhões de dólares para uma conta nas Ilhas Virgens, paraíso fiscal, provando (como se ainda precisasse de prova!) de que ele realmente era um péssimo ser humano.
O milionário deveria ter sido condenado à prisão perpétua anos antes de sua prisão definitiva (em julho de 2019) apenas pelos crimes que cometeu em Palm Beach, Flórida. Mas a justiça é suave com os ricos e poderosos. Ele conseguiu um acordo e só ficou preso 13 meses. Aliás, mal ficou preso. Podia permanecer livre 12 horas por dia, seis dias por semana, "trabalhando".
Em 2010, soltinho da silva, Epstein ainda recebia cientistas e prêmios Nobel em sua casa. Esses homens não são pedófilos nem estão sendo acusados de nada (ao contrário do príncipe Andrew, por exemplo, que no documentário fica escancarado como estuprador e mentiroso), se bem que eram patrocinados por Epstein. Mas o mais escandaloso pra mim é que não era vergonha ser visto na companhia de um pedófilo condenado! 
O documentário deixa bem claro que o que mudou esse cenário foi o movimento Me Too. A verdade é que se não fosse essa campanha feminista iniciada em 2017 que revelou os bastidores de assédio permanente de poderosos como Harvey Weintein, Epstein não teria sido preso em definitivo. Infelizmente, o Me Too não foi suficiente para barrar podres como Donald Trump, que foi amigão de Epstein durante anos.
Esptein foi encontrado morto em sua cela em agosto do ano passado, em circunstâncias pra lá de misteriosas. Muita gente não crê em suicídio e sim em queima de arquivo.
A série me lembrou de que, quando eu tinha 12 ou 13 anos, fui abordada em Búzios por uma mulher jovem que queria me apresentar a um velho (ela veio até mim, apontou pra ele) muito rico, que poderia me dar várias coisas se eu saísse com ele.
Última foto de Epstein, já na
cadeia, aos 66 anos
Eu ri, disse que não estava interessada, não levei muito a sério. Fui pra casa que alugávamos na Praia dos Ossos (na mesma rua do cinema e boate) e contei pro meu pai, meio que rindo. Foi a reação dele que me fez ver a gravidade da situação. Ele ficou furioso, saiu correndo, foi ao cinema onde isso tinha acontecido, chamou a polícia.
O casal já tinha ido embora e nunca ficamos sabendo quem eram. Mas imagina quantas meninas e meninos não caem nesses esquemas? Nunca esqueci disso. O caso Jeffrey Epstein é muito mais comum (e universal) do que a gente imagina. 

quinta-feira, 25 de junho de 2020

PELO DIREITO À AUTO-REPRESENTAÇÃO NA LUTA PELO FIM DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

Ana Teresa Gotardo é doutora em Comunicação pela UERJ, mãe, feminista, de esquerda, vítima de dois relacionamentos abusivos, e que não se cansa de tentar mudar o mundo por meio da pesquisa.

Nós vivemos num momento em que a disputa discursiva nunca esteve tão acirrada. Embora esse assunto tenha uma profundidade muito maior que a que trago aqui neste texto, gostaria de falar um pouquinho sobre o rompimento com a hegemonia da fala por meio da auto-representação e da disputa de sentidos no que diz respeito à violência contra a mulher. 
Eu sou uma mulher cis, branca, hétero, doutora. Sou uma privilegiada. E vivi dois relacionamentos abusivos. O primeiro durou 11 anos, mais o período pós-separação (a violência vem em ciclos e eu sou obrigada a falar com ele), e o segundo durou um ano e meio, um relacionamento a distância. Eu falo sobre minhas experiências nesses dois relacionamentos sem citar nomes em todas as minhas redes.
Tenho consciência, claro, que há pessoas que conhecem esses homens. No entanto, eu estou na disputa pela auto-representação e pela ressignificação de certas verdades, porque os homens são quase sempre acima de qualquer suspeita, enquanto a mulher é sempre colocada em dúvida, à prova. 
Para a sociedade patriarcal cis-heteronormativa, a mulher é a responsável pela relação, pela felicidade do casal, pela manutenção do casamento. Viver uma relação cis-heteronormativa é uma expectativa social: casar, ter filhos, ter uma “vida feliz”, exibi-la nas redes sociais, mesmo que a realidade não seja exatamente essa. Rompimentos de quaisquer ordens a essas normatizações são necessários, acontecem, porém as pessoas que estão fora das normas ainda sofrem preconceito e violência, pagando muitas vezes com a própria vida. Eu quero contribuir um pouco com esse rompimento compartilhando algumas experiências pessoais e descobertas especialmente devido ao aumento da violência doméstica durante a pandemia.
A primeira experiência sobre a qual quero falar diz respeito à vergonha da mulher vítima. No fim do meu casamento (após 11 anos de relacionamento), fui coberta pelo sentimento de culpa e de vergonha. Tudo porque eu percebia a violência, mas, enfraquecida por ela, não tinha coragem de encerrar o casamento. Eu achava que não conseguiria dar conta da casa e da minha filha sozinha e, apesar de eu ser uma mulher independente financeiramente (minha renda era a maior da casa), ele fazia com que eu me sentisse de alguma forma dependente dele por meio de constantes abusos psicológicos. 
Eu me sentia feminista fracassada. Então comecei a falar sobre minha experiência como mulher vítima especialmente em minha conta do Twitter, porque lá eu quase não tenho seguidores, especialmente pessoas da família e tampouco amigos que conheço pessoalmente. Era meu lugar de desabafo porque eu tinha vergonha de falar sobre isso nas outras redes, onde eu tenho mais seguidores, amigos, familiares.
E várias mulheres vieram falar comigo sobre como eu as estava ajudando, especialmente depois de um comentário que fiz num tweet de um homem famoso que teve cerca de 700 likes. Eureka! Falar sobre minha experiência como vítima estava ajudando outras pessoas! Eu estava dentro da disputa narrativa. Eu estava me auto-representando nesse espaço e ajudando outras mulheres. Mais tarde eu também percebi que muitas mulheres das minhas outras redes engajavam comigo “nas entrelinhas”, e isso também foi muito importante pra mim. E eu já tinha me aberto sobre meu relacionamento abusivo pessoalmente com algumas amigas, mas a ideia de que eu podia ajudar desconhecidas também me fez muito feliz. 
Só que ajudar também significava entrar na disputa por sentidos, o que eu entendi como DAR O NOME CORRETO ÀS COISAS. Então: 
- Ele te ofende, te manipula, te culpa, se vitimiza? Isso é violência psicológica.
- Ele força sexo sem você querer? Isso é estupro.
- Matou uma mulher? Ele não é louco, é ASSASSINO.
E o que eu descobri com isso? Que os homens saem do controle quando a gente dá o devido nome às coisas, a gente se torna, digamos assim, “dona da narrativa”. Ou seja, a disputa de sentido funciona, porque ela ajuda a acabar com a hegemonia da fala masculina cis hétero que imputa à mulher a culpa pelos atos desses homens abusivos.
Descobri isso depois de uma tentativa de estupro durante o segundo relacionamento. Ele não me respeitava enquanto eu dizia não. Quando eu disse que ele estava tentando me estuprar, ele parou. Quando conversamos a respeito (eu achava que ele era um homem diferente), ele disse que via o ocorrido de forma totalmente distinta de mim e que achava que meu “não” era “charme” e que na verdade eu queria continuar. Ele é um homem que ainda diz apoiar a causa feminista. Tentou me estuprar e ainda subverteu a história, me culpando, deslegitimando o que eu estava dizendo, sentindo, para dizer que eu estava errada. Quando eu tornei essa história pública em minha conta do Twitter, ele tentou me calar. Isso porque se trata de um homem que se identifica com o liberalismo e, portanto, com a liberdade de expressão.
Então eu só queria dizer que ninguém vai me calar. Eu estou falando aqui sobre a minha experiência como vítima de violência e não estou citando nomes. Quem defende liberdade de expressão deveria se envergonhar de tentar calar uma mulher vítima de violência. Infelizmente a violência perdura mesmo após o fim do relacionamento, mas eu vejo que, quando não me calo, estou ajudando outras mulheres que ainda não estão preparadas para juntar suas vozes à minha, mas que estão conseguindo enfrentar a dor de se ver em um relacionamento abusivo para conseguir sair dele.
Por fim, queria lembrar que Foucault fala sobre a interdição da fala pela loucura. É importante compreender isso para entender o mito da ex louca (ou depressiva, ou traumatizada, ou surtada, quaisquer nomes que eles queiram nos atribuir). Unir nossas vozes é a única forma de combater essa estrutura que quer nos calar, seja pela violência física, pela violência discursiva, pela silenciamento, pelo apagamento. Lembrem-se: violência psicológica tem o mesmo peso que violência física pela Lei Maria da Penha.
Meu aviso aos homens abusivos é: podem ter medo, porque sou muito, muito consciente do meu lugar no mundo. E não vou me calar, continuarei lutando pelo nosso direito à auto-representação. E darei todos os nomes corretos a todos os abusos.