No início da apuração das eleições americanas (já acabou?), havia muita gente reclamando de que várias pessoas não brancas nos EUA votaram no Trump, um racista bastante assumido apoiado por supremacistas brancos.
Um leitor antigo e querido, o Koppe, me chamou a atenção para esta didática e inteligente thread do jornalista Michael Harriot. Amei, aprendi demais com o fio (é verdade que irlandeses e italianos demoraram um tempão pra serem vistos como brancos nos EUA -- a gente vê isso nos filmes), e pedi pro Koppe traduzir. Aqui está (obrigada, Koppezinho!). Aprenda você também:
Muito da raiva contra grupos não-brancos votando em um supremacista branco vem do fato das pessoas não entenderem uma verdade histórica: É ASSIM QUE VOCÊ SE TORNA BRANCO! Antes de mais nada, vamos concordar que esse conceito de "branquitude" é feito por racistas. Não é baseado em ciência ou mesmo em lógica. Por exemplo, durante grande parte da história americana, irlandeses não eram considerados brancos, apesar de serem um dos povos mais brancos do planeta.
Irlandeses não foram escravos, mas ingleses e escoceses os consideravam "algo muito próximo de negros" e "chimpanzés humanos". Você sabe qual a distância entre a Inglaterra/ Escócia e a Irlanda? 30 quilômetros! É como se os negros do Brooklyn falassem merda sobre o povo do Queens.
Foi só depois da liberação dos escravos que os irlandeses subiram na escada social. Um documento dos democratas de 1864 dizia: "Temos fortes razões para acreditar que o primeiro movimento de miscigenação deste país será entre irlandeses e negros".
Os irlandeses eram considerados atléticos, fortes e preguiçosos. Eles podiam ser bons em dança. E mais: geravam excelentes boxeadores. Onde você já viu essas descrições antes?
Então, como os irlandeses viraram brancos? Bem, foi basicamente se organizando em gangues.
Em muitas cidades por todo o país, irlandeses não podiam viver junto com os brancos. Mas quando negros se mudaram em massa para cidades como Nova York e Chicago durante a Grande Migração, pessoas negras começaram a competir por seus empregos e suas casas, então eles formaram gangues. E logo as gangues ganharam poder na política.
Por exemplo, Richard Daley, de Chicago, era membro dos Hamburgs, uma das gangues responsáveis pelo protesto de Chicago de 1919. Daley nunca admitiu esse envolvimento, mas curiosamente ele foi eleito presidente dos Hamburgs logo depois. Então ele se elegeu prefeito.
Quando essas gangues ganharam poder na política local, deram aos seus membros cargos municipais, como oficiais de polícia e bombeiros. E nessas posições, eles passaram a oprimir os negros. Não só usaram seus cargos para reforçar a supremacia branca, como fizeram isso com a explícita intenção de abrir espaço para si mesmos.
Em Filadélfia, William "Bull" McMullen, líder dos "Killers", matou um homem e entrou no exército para escapar da condenação (irônico, não?). Quando voltou, ele tornou-se uma liderança do Partido Democrata, organizou a comunidade para apoiar o prefeito, se elegeu vereador e tornou o efetivo da polícia 76% irlandês.
Mesma coisa em Nova York. Em 1855, gangues irlandesas ajudaram a eleger o prefeito Fernando Wood. Seu primeiro ato foi contratar 246 novos policiais, metade deles irlandeses. Em 1860, 75% do departamento de bombeiros era irlandês.
Como bombeiros e policiais não podiam beber em público, eles se encontravam em bares. E como eles frequentavam pubs que pertenciam a gangsters irlandeses, eles se uniram e conectaram políticos ao crime organizado. Eles até escreviam as leis de zoneamento e permissões das ruas.
Eles passaram a ter até mesmo ruas onde podiam se embebedar sem ter problemas. Brancos não podiam fazer isso. Bem, talvez eles pudessem, uma vez por ano. Talvez em um feriado ou algo assim. Por isso algumas cidades faziam festas regadas a bebida no dia de São Patrício. Quem marchava nas paradas desse dia? Policiais e bombeiros. E foi assim que eles viraram brancos.
Sabe quem mais era bom em boxe, dança, música e gangues?
Quando os italianos migraram para os Estados Unidos no final do século 19, eram bons artistas, atletas e trabalhadores braçais. Mas ninguém queria viver perto deles, eram considerados sujos. E tinham fama de criminosos.
Mas eles se uniram. E isso aumentou ainda mais a suspeita sobre eles. As pessoas acreditavam que todo italiano era membro da máfia ou envolvido em conspirações para derrubar o governo. Em 1891, uma multidão linchou 11 italianos absolvidos pela morte de um policial de Nova Orleans.
O sentimento anti-italiano ajudou na ascensão da KKK no começo do século 20, além do "movimento nativista" (que dizia que pessoas de certas religiões ou nacionalidades não eram aptas a se tornar-se verdadeiros americanos). O Ato de Origens Nacionais de 1924 reduziu a imigração italiana em 98%. Durante a
Grande Migração, para os considerados brancos, não havia diferença entre negros e italianos.
Após a Grande Depressão, o governo fomentou a concessão de empréstimos para todos, exceto negros. Mas o governo não considerava italianos como brancos, então você morar em uma vizinhança negra ou italiana era a mesma coisa. Eles podiam até frequentar as suas escolas.
"Suas escolas"? Sim, até a década de 1940, documentos de naturalização listavam "italiano" como uma raça separada de "branco".
Então como eles se tornaram brancos? Supremacia branca. Italianos praticaram as leis Jim Crow até mais do que os brancos, e votavam apenas em políticos que apoiavam as leis Jim Crow.
Lembram de como os japoneses americanos foram perseguidos após Pearl Harbor? Bem, o mesmo aconteceu com os italianos. Roosevelt declarou os ítalo-americanos como "combatentes inimigos". Mas depois que já tinham deslocado uns 10 mil deles, a situação era: "Droga, temos demais desses filhos da mãe!"
Então os ítalo-americanos aceitaram lutar na Segunda Guerra Mundial. Alguns diziam abertamente que queriam mudar a percepção negativa sobre eles. E depois?
Quando eles voltaram, eles eram brancos! Passaram a se recusar a viver nos mesmos bairros e colocar suas crianças nas mesmas escolas que os negros. Em 1947, estudantes italianos de Chicago fizeram uma passeata porque "tem muitos negros em nossa escola". O problema foi resolvido em menos de uma semana, depois que dez crianças negras morreram quando um incendiário colocou fogo no prédio.
Para se proteger, jovens negros formaram suas próprias gangues inspirados nas dos irlandeses e italianos. Mas nessa altura os italianos já haviam expulsado os negros de suas vizinhanças.
Então, para onde os negros foram? Bem, em 1941 a cidade de Chicago decidiu dar moradias. Mas claro, não para os negros. Em vez disso, juntaram a população negra em conjuntos habitacionais de baixo custo, demolindo as antigas vizinhanças negras para criar bairros italianos e judeus. Isso foi visto como um sucesso e várias cidades pelo país fizeram o mesmo.
Mas havia um problema. Lembram da "linha de corte" que impedia os bancos de oferecerem empréstimos em lugares onde negros viviam? Como eles poderiam recusar empréstimos para esses bravos italianos veteranos de guerra? (Fizeram isso com veteranos negros, óbvio). Essas pessoas haviam lutado na guerra, e haviam "limpado" suas vizinhanças! Eles haviam ajudado a excluir os negros e votado em seus opressores!
E voilá, italianos passaram a ser brancos!
Imigrantes judeus seguiram o mesmo modelo. Assim como os poloneses "étnicos". É na verdade uma tradição americana.
Agora, deixe-me fazer uma pergunta séria, e prometa que vai responder sem procurar no Google: o que é "hispânico"? É sério. Você sabe?
Porto Rico tem sido parte dos Estados Unidos por 100 anos. São "hispânicos" só por viverem em uma ilha do Caribe? E por que haitianos são considerados negros, e dominicanos são hispânicos, se os dois grupos vêm da mesma ilha?
Por que você é um "nativo americano" se nasceu de um lado do Rio Grande, mas é um "hispânico mexicano" se nasceu do outro lado? É a linguagem? E por que as pessoas que vêm da própria Espanha não são consideradas hispânicas? E mais, por que cubanos são considerados hispânicos? Quando a Espanha colonizou Cuba, os povos nativos Taino foram exterminados. De fato, muitos cubanos têm ascendência mais europeia do que muitos americanos brancos.
Eu digo o que é: é mais uma bobagem artificialmente construída. Mas os brancos continuam criando políticas com medo de que este país deixe de ser majoritariamente branco. É por isso que eles enjaulam crianças mexicanas. É por isso que eles querem que você "fale americano!"
A verdade é: aqueles que fazem as leis garantem que este sempre será um país branco, porque criam um caminho para se tornar um "verdadeiro americano". E este caminho é pavimentado com o sangue e os ossos de pessoas negras.
Você não precisa entrar em um clube ou pagar uma taxa de inscrição para se tornar branco(a). Branquitude nos Estados Unidos da América é sobre chutar pessoas negras no rosto. Mas eles não fazem isso porque nos odeiam. Nós somos um exemplo. Quando colocam um alvo em nós, eles dizem: "Ah, vocês querem ser VERDADEIROS americanos? Bem, mostrem o quão forte vocês podem chutar!" E na terça-feira [dia da eleição], todas essas "pessoas de cor" estão respondendo: "assim é forte o suficiente?"