segunda-feira, 30 de novembro de 2020

ELEIÇÕES 2020: UM RESULTADO COM POUCAS ALEGRIAS

Estou bem triste com o resultado do segundo turno das eleições municipais de ontem.

Certo, estava muito difícil para Guilherme Boulos ganhar. Afinal, as pesquisas mostravam que, embora a diferença tivesse caído, Bruno Covas ainda levava ampla vantagem, que se confirmou. Foi perto de 60% a 40%. Este mapa ao lado das zonas eleitorais de São Paulo é impressionante -- mostra como a votação para Covas agora e Bolso em 2018 foi idêntica, nos mesmos locais, e também no percentual. O que confirma que quem vota no PSDB (partido que governa o Estado há 26 anos ininterruptos) vota mesmo na direita (reaça que fala que tucano é de esquerda é ignorante pra chuchu). 

Boulos é um vitorioso. Mesmo sem ganhar, teve uma votação imensa. Compare: nas eleições de 2018, quando ele concorreu à presidência pelo Psol, sua primeira eleição, teve apenas 617 mil votos nacionalmente. Mas agora, na capital de SP, conseguiu mais de 2 milhões. É o principal fato novo não só da esquerda, mas de toda a política nos últimos anos. Reanimou os jovens, tão desiludidos com tudo (com razão). Consolida-se como uma voz fundamental para a esquerda. Seu pronunciamento pós-eleição é perfeito. Ele teve essa montanha de votos sem abrir mão de seus princípios.

Então, tudo bem, eu sabia que seria surpreendente se Boulos ganhasse. Mas realmente pensei que Manuela D'Ávila (PCdoB), em Porto Alegre, e Marília Arraes (PT), em Recife, poderiam levar. Afinal, Manu se tornou um importantíssimo nome nacional depois de se candidatar em 2018. E ela sempre foi popular no Rio Grande do Sul. E, assim como SP capital é menos conservadora que o estado de SP, acredita-se que Porto Alegre seria mais aberta a uma comunista (com todo o peso que o nome carrega) que seu estado. Além do mais, a cidade estava respirando Manu, havia toda uma expectativa por sua vitória histórica. Infelizmente, ainda não foi dessa vez.

Já quanto a Marília, eu, que não entendo quase nada da política pernambucana, pensei no início do segundo turno que não havia tanta diferença entre ela e João Campos, do PSB. Os dois são primos, e um é de um partido que víamos como centro-esquerda... Aí o jovem mauricinho vem e faz a campanha mais suja do país, com compra de votos, panfletos apócrifos, uso de secretários e servidores do governo municipal atual para atuar na campanha, e fake news machistas, não tão contrastantes aos métodos bolsonaristas. Em outras palavras: aprendi que João e Marília são totalmente diferentes.

Nos últimos dias, as pesquisas indicavam empate entre eles. Mas não foi o que se viu nas urnas. Campos ganhou até fácil, 56% contra 44%. Uma decepção enorme. Não só por Marília ter perdido, mas pelo jovem ter se revelado um velhaco. E decepção também com Flávio Dino, que o apoiou. Entendo que o PCdoB estava na chapa, mas nem pra pedir licença e dizer que não é esse jeito de fazer política que o partido defende? 

Uma das poucas alegrias foi a eleição de Edmilson Rodrigues em Belém, numa chapa entre Psol e PT. Será a única capital governada pelo Psol, mas não é a primeira vez que o partido de esquerda conquista uma capital. Em 2012, ganhou em Macapá. Já Edmilson conhece Belém muito bem, pois já foi prefeito da capital paraense duas vezes, quando era do PT. Tomara que faça um excelente governo. 

Outras boas notícias foram Margarida Salomão e Marília Campos, ambas do PT, serem eleitas em Juiz de Fora e Contagem, MG. Marília já tinha sido prefeita da terceira maior cidade de Minas, mas foi uma façanha e tanto a deputada federal e ex-reitora da Universidade Federal de JF (a primeira reitora!) Margarida se eleger em Juiz de Fora. Ela será a primeira petista a governar a cidade e a primeira mulher! Uma leitora, a Marise, informou que a vereadora mais votada de Juiz de Fora foi Cida de Oliveira, também do PT. 

E mais uma boa notícia: sabem quantos prefeitos elegeu o Partido Novo, o PSL de sapatênis, o PSL Personalité, o PSL que aprendeu a usar talheres? Um! Sim, dos 5.570 municípios no Brasil, o Novo fez um só prefeito. Em Joinville, SC (pô, Joinville!). 

Ah sim, não deixa de ser uma boa notícia: Sarto, do PDT, foi eleito prefeito de Fortaleza. Ou melhor: um miliciano local, apoiado por Bolso, não conseguiu se eleger. Mas não foi o passeio que as pesquisas apontavam (mais de vinte pontos de vantagem): foi apenas 52% a 48%. Como explicar isso? O pessoal que votou na Luizianne (PT) se absteve ou anulou o voto? Ou a intenção de voto no Capitão Wagner era o típico "voto envergonhado"? Mas as pesquisas não devem ser capazes de captar isso? Hoje cedo fui acusada por um cirista de quase conseguir fazer com que Sarto perdesse! Como se eu não tivesse comparecido às urnas pra votar nele! Adoro o poder que essa gente me dá...

Ah, se eu tivesse esses super poderes, Boulos teria ganhado em SP, Manu em PoA, e o PT nas quinze cidades em que disputou o segundo turno (só levou quatro: além das duas cidades em MG, duas em SP: Mauá e Diadema). Não há dúvidas que o PT piorou de 2016 (que já foi péssimo) pra cá. Perdeu 74 prefeituras no período (ganhou em 257 em 2016, ano do golpe, e apenas 183 agora). Pela primeira vez, não governará nenhuma capital. Continua sendo o partido com mais deputados na Câmara.

É muito, muito cedo para se falar da "morte do PT" (lembrando que o MBL enterrou o PT em 2018, e que esta capa ao lado é de 2018), mas é fato que o maior partido de esquerda da América Latina perdeu bastante. O antipetismo é fato também. Infelizmente, não foram outros partidos de esquerda, como Psol e PCdoB, que tomaram o seu lugar. O Psol foi eleito para governar dois municípios em 2016. Agora cresceu pra cinco. O PCdoB, que tinha 82, caiu pra quase a metade: 46. Pra quem quer chamar o PSB de esquerda, ele foi de 409 municípios em 2016 para 252 agora. PDT, de 334 para 314. Não. Quem tomou o lugar do PT não foi a esquerda -- foi a direita. Ou o extremo-centro, se preferirem.

O grande vencedor destas eleições foi o chamado "centrão". O PP foi um dos partidos que mais cresceram, de 498 prefeitos para 685. PSD foi de 540 para 654. DEM, de 272 para 463. Republicanos, de 106 para 211. Todos são partidos de sustentação de Bolso. Todos são de direita também, claro. Mas não exatamente de uma direita assumida. Não é a direita rábida do genocida.

O partido que mais tem prefeituras no Brasil continua sendo o MDB, mas caiu muito: foi de 1.049 cidades para 784. O PSDB foi quem mais perdeu: tinha 805, agora terá 520. Mesmo caindo, seria ridículo considerar esses dois partidos como mortos. A mesma coisa com o PT.

Por isso é tão patético ver bolsominions aplaudindo a "morte do PT" e ao mesmo tempo parabenizando Bolso por ela! Bolso já tinha sido o maior derrotado do primeiro turno, e agora, no segundo, teve novas humilhações (como Crivella perder no Rio e o capitão em Fortaleza). O pior presidente de todos os tempos, que não foi capaz de criar um partido, o Aliança, apoiou abertamente onze nomes. Apenas dois se elegeram (Vitória do ES, que vergonhosamente elegeu um delegado que invadiu hospital e tentou impedir o aborto da menina de dez anos estuprada pelo tio, não foi um deles). 

O que fica claro nessas eleições é que o bolsonarismo é ótimo para partidos direitosos como DEM, PSD, PP, PL, porque os empurra pro centro. Em comparação com a extrema direita de Bolso, a direita tenta se passar como moderada. Obviamente, PSDB e MDB também tentarão se passar por centro.

Hoje Ciro Gomes, do PDT, criticou PT (mais uma vez, bocejos), chamou Psol de radical, sobrou até pro Flavio Dino, que disse que não iria responder. Ao fazer isso, Ciro deixou evidente sua estratégia para tentar chegar à presidência: quer se passar por centro, fazendo alianças com o que ele vê como centro, centro-esquerda e centro-direita. Os que estiverem à esquerda do extremo-centro (PT, Psol, PCdoB), e também na extrema-direita (Bolso), serão pintados como "radicais". Por isso a polarização é tão relevante para Ciro e para todos que dirão que não são "ideológicos" (curiosamente, Bolso também disse isso). 

Bom, o jogo continua, lógico. O cenário fica mais difícil para a reeleição de Bolso (os donos do poder podem trocar a extrema-direita pela direita disfarçada de centro), mas nem por isso menos difícil para a volta da esquerda. Por isso a minha tristeza. O projeto de privatização, de governar para os ricos, de destruição do Brasil segue a passos largos. E com poucos adversários fortes. 

Pra terminar este texto de forma mais positiva, fecho com a célebre citação de Frei Betto: "Guardemos o pessimismo para dias melhores". Eles virão, mas podem demorar.

sábado, 28 de novembro de 2020

BRASIL, SEGUNDO TURNO NESTE DOMINGO! EM QUEM VOTAR

Eu voto em Fortaleza, então irei até as urnas sem nenhum entusiasmo apertar 12 (Sarto, o candidato dos Gomes), que é menos pior que o apoiado por Bolso, um miliciano local. 

É mais ou menos como o pessoal do Rio vai digitar 25 (DEM, eca!) pra derrotar o Crivella.

Iria muito mais entusiasmadas se vivesse em Recife, Porto Alegre, Santarém (PA), Contagem (MG), Juiz de Fora (MG), ou Cariacica (ES), e pudesse votar na Marília Arraes (13), Manuela D'Ávilla (65), Maria do Carmo (13), Marília Campos (13), Margarida Salomão (13), ou Célia Tavares (13), respectivamente. 

Em São Paulo e Belém, é 50 na cabeça (Boulos e Edmilson)!

No resto do Brasil onde tem segundo turno e candidatos de esquerda (13, 50 ou 65) concorrendo, meu voto seria igualzinho ao do ícone Eduardo Suplicy, vereador mais votado de SP, exceto que ele esqueceu na arte de cima a Marília Campos de Contagem.

Descobri totalmente sem querer que segunda-feira é aniversário de outro modelo de luta e ética na política, a maravilhosa Luiza Erundina, vice de Guilherme Boulos. Já pensaram que presente incrível (pra ela e pro Brasil) se o Psol ganhasse em SP pela primeira vez em sua história?

Vamos fazer acontecer! 

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

GUILHERME BOULOS É MUITO RADICAL

Publico um texto da Izabela, relações públicas e voluntária na campanha de Guilherme Boulos à prefeitura de SP. Por favor, povo de Sampa, onde já morei, neste domingo, compareça às urnas e vote 50 (Boulos e Erundina).

Jogo Boulos Radical coloca candidato do PSOL em aventura de skate por São Paulo

A poucos dias do segundo turno em São Paulo, o candidato do PSOL, Guilherme Boulos, reduziu ainda mais distância do prefeito Bruno Covas e acirrou a disputa, aumentando a expectativa por uma grande virada nessas eleições.

Com muito menos recursos, a campanha de Boulos é reconhecida como um fenômeno de audiência na internet. Os vídeos de Boulos no Instagram tiveram 11 milhões de visualizações, enquanto os de Covas foram vistos apenas 70 mil vezes. Para o pesquisador e analista de redes  Fabio Malini, do Departamento de Comunicação da UFES, "trata-se de uma campanha muito criativa, com muitos gêneros de conteúdo. Tem live, tem publicação de conteúdo de imprensa, tem vídeos, tem games”.

Boulos, que conta como vice a ex-prefeita Luiza Erundina, tem destacado nessas eleições o seu compromisso em tornar São Paulo uma cidade mais justa principalmente para os mais pobres. Isso fez com que seu rival no segundo turno tentasse polarizar a disputa chamando-o de radical.  “Eu luto há 20 anos para que as pessoas tenham um teto, pra que elas tenham dignidade básica pra viver. Querer taxar essa forma de luta como radical é a prova de como o Brasil recuou em termos de direitos sociais”, afirma Boulos.

Resgatar esse jeito de fazer política com brilho no olho fez com que Boulos e Erundina despertassem uma grande militância ao seu redor. Os voluntários se organizaram num grande grupo que ficou conhecido como Gabinete do Amor, em resposta ao famigerado Gabinete do Ódio, da família Bolsonaro.  

No Gabinete do Amor, os voluntários produzem conteúdos audiovisuais, gráficos e também games. Um desses jogos surgiu como resposta à infundada acusação de que Boulos é radical. “O Felipe Neto publicou uma montagem do Boulos num skate, dizendo que era isso que ele pensava quando chamavam Boulos de radical. Daí veio a ideia desse Boulos radicalizando em cima do skate”, explica Cris Vector, que fez todas as ilustrações do game.

O jogo Boulos Radical foi lançado oficialmente na noite de sábado pelos voluntários. No jogo, Boulos precisa desviar de fake news, tucanos, mosquitos e outros adversários que tentam atrapalhar sua vitória na eleição. Ainda no primeiro turno, a mesma equipe voluntária tinha feito o game “Super Boulos”, no qual o candidato, como um super-herói, passa por obstáculos nos bairros de toda a cidade para virar o jogo. Pelo rumo das pesquisas eleitorais, a virada de jogo vai se mostrando cada vez mais próxima para Guilherme Boulos.

(Créditos dos realizadores: Roteiro e Produção: Subversilvio Silva e Rodrigo Febronio. Programação: Subversilvio Silva. Ilustrações: Cris Vector. Música e Sound Design: Leonardo Lima. Colaboração: Douglas Domingues. Apoio: Gabinete do Amor).

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

MARADONA, GIGANTE

Ah, hoje não dá pra falar de mais nada. Estou arrasada com a morte de Diego Maradona, de apenas 60 anos.

Foi o maior jogador que eu já vi jogar. Eu estava bem viva nas Copas do Mundo de 1982, 1986, 1990 e 1994. Só aqueles dois gols contra a Inglaterra na Copa de 86 já seriam suficientes pra imortalizar um atleta. A "mão de deus" e o gol que começou antes do meio do campo, no que pra muitos é o mais belo gol de todas as Copas. 

Eu não entro nessas de comparações. Não tem por que escolher um grande jogador e desprezar os outros. Mas, pra mim, Maradona foi o maior que eu vi jogar, durante a minha vida. Faz parte da minha memória afetiva.

Aqui, os dez maiores gols de Maradona, ao som de outro ícone, Piazzolla. Aqui, os cinco maiores gols (que são diferentes dos outros dez). 

Aqui, o desabafo de Casagrande, um dependente químico, sobre a morte de Maradona, outro dependente. 

Maradona morreu no mesmo dia, 25 de novembro, que um de seus ídolos: Fidel Castro, quatro anos atrás. Tinha uma tatuagem de Fidel (e outra do Che) tatuadas em seu corpo.

Como diz o jornal argentino Clarín num belo texto (em espanhol), sua morte tem impacto mundial. Sua vida foi uma montanha russa. "Gracias a la pelota" (obrigada à bola), ele disse que gostaria de ver em sua lápide. 

Foi sem dúvida um gigante. Inesquecível.

terça-feira, 24 de novembro de 2020

O MEDO DAS MULHERES SEREM ESTUPRADAS

Muito interessante a Pesquisa Percepções sobre estupro e aborto previsto por lei, dos institutos Patrícia Galvão e  Locomotiva. 

Na pesquisa realizada online entre 1 e 14 de setembro, respondida por 2 mil homens e mulheres acima dos 16 anos, 52% dos entrevistados disseram conhecer uma mulher ou menina que já foi vítima de violência sexual. 16% das mulheres já sofreram essa violência. 95% das mulheres revelaram ter medo de serem estupradas, e 78% disseram ter muito medo. Entre os homens, 92% tem medo que sua filha, mãe, esposa ou namorada sejam vítimas. Dos que conhecem uma vítima, 17% disseram que ela engravidou e em 42% dos casos fez aborto. Só 29% acham que a polícia está muito preparada para atender vítimas de estupro. 94% disseram ser a favor da menina de 10 anos do Espírito Santo abortar. 82% concordam com a possibilidade de abortar quando se é vítima de estupro. 88% acham que toda cidade deveria ter esse serviço de aborto. 

Como podemos ver por essa pesquisa, e também ao falarmos com praticamente qualquer mulher, o medo do estupro é uma constante ameaça nas nossas vidas. Faz quase 13 anos, quando comecei o blog, escrevi um post chamado "Toda mulher tem uma história de horror pra contar". É impressionante o número de meninas e mulheres que ou foram abusadas sexualmente, ou conseguiram escapar por um triz de serem abusadas. Esse medo começa muito cedo, quando ainda somos meninas, até porque o assédio começa muito cedo também. E lógico que isso afeta nosso comportamento, nossa autoestima, nossa percepção de nós mesmas. 

A enorme maioria dos homens não passa por isso, não precisa pensar com que roupa vai sair, a hora que voltará pra casa, se voltará só ou acompanhado, que rua vai pegar. Seu medo é unicamente de ser assaltado. Nós temos medo de ser assaltadas também, lógico, mas mais medo ainda do estupro. Perdemos tempo e energia demais com essas preocupações do dia a dia. E isso que estamos falando do lugar-comum do estupro, que é aquele numa rua escura à noite por um desconhecido. A maioria dos estupros ocorre dentro de casa e o estuprador é conhecido da vítima. 

Esse medo constante pode ser visto como uma estratégia de dominação do patriarcado. É uma mentira também, porque a narrativa é que, se a mulher ou menina ficar em casa e tiver um homem para protegê-la, ela estará segura. Na própria pesquisa 81% dos entrevistados responderam que a pandemia contribuiu para o aumento dos estupros dentro de casa. Ao mesmo tempo, como estamos sendo governados pela extrema-direita, cresce a obrigação de que a mulher deve ter uma arma para se proteger. Só que isso é colocar a responsabilidade de impedir o estupro na mulher -- se ela não tiver uma arma, ela não se preparou, não se protegeu. 

No entanto, se a maior parte dos estupros acontecem em casa, muitas vezes cometidos por um familiar, em que momento a vítima sacará a arma contra seu pai, seu padrasto, seu tio, seu irmão? E se ela usar a arma, ela não será condenada? Portanto, a cultura machista deixa as mulheres sem saída. É essa cultura que precisamos combater.

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

É ASSIM QUE VOCÊ SE TORNA BRANCO

No início da apuração das eleições americanas (já acabou?), havia muita gente reclamando de que várias pessoas não brancas nos EUA votaram no Trump, um racista bastante assumido apoiado por supremacistas brancos. 

Um leitor antigo e querido, o Koppe, me chamou a atenção para esta didática e inteligente thread do jornalista Michael Harriot. Amei, aprendi demais com o fio (é verdade que irlandeses e italianos demoraram um tempão pra serem vistos como brancos nos EUA -- a gente vê isso nos filmes), e pedi pro Koppe traduzir. Aqui está (obrigada, Koppezinho!). Aprenda você também: 

Muito da raiva contra grupos não-brancos votando em um supremacista branco vem do fato das pessoas não entenderem uma verdade histórica: É ASSIM QUE VOCÊ SE TORNA BRANCO!

Antes de mais nada, vamos concordar que esse conceito de "branquitude" é feito por racistas. Não é baseado em ciência ou mesmo em lógica. Por exemplo, durante grande parte da história americana, irlandeses não eram considerados brancos, apesar de serem um dos povos mais brancos do planeta.

Irlandeses não foram escravos, mas ingleses e escoceses os consideravam "algo muito próximo de negros" e "chimpanzés humanos". Você sabe qual a distância entre a Inglaterra/ Escócia e a Irlanda? 30 quilômetros! É como se os negros do Brooklyn falassem merda sobre o povo do Queens.

Foi só depois da liberação dos escravos que os irlandeses subiram na escada social. Um documento dos democratas de 1864 dizia: "Temos fortes razões para acreditar que o primeiro movimento de miscigenação deste país será entre irlandeses e negros".

Os irlandeses eram considerados atléticos, fortes e preguiçosos. Eles podiam ser bons em dança. E mais: geravam excelentes boxeadores. Onde você já viu essas descrições antes?

Então, como os irlandeses viraram brancos? Bem, foi basicamente se organizando em gangues.

Em muitas cidades por todo o país, irlandeses não podiam viver junto com os brancos. Mas quando negros se mudaram em massa para cidades como Nova York e Chicago durante a Grande Migração, pessoas negras começaram a competir por seus empregos e suas casas, então eles formaram gangues. E logo as gangues ganharam poder na política.

Por exemplo, Richard Daley, de Chicago, era membro dos Hamburgs, uma das gangues responsáveis pelo protesto de Chicago de 1919. Daley nunca admitiu esse envolvimento, mas curiosamente ele foi eleito presidente dos Hamburgs logo depois. Então ele se elegeu prefeito.

Quando essas gangues ganharam poder na política local, deram aos seus membros cargos municipais, como oficiais de polícia e bombeiros. E nessas posições, eles passaram a oprimir os negros. Não só usaram seus cargos para reforçar a supremacia branca, como fizeram isso com a explícita intenção de abrir espaço para si mesmos.

Em Filadélfia, William "Bull" McMullen, líder dos "Killers", matou um homem e entrou no exército para escapar da condenação (irônico, não?). Quando voltou, ele tornou-se uma liderança do Partido Democrata, organizou a comunidade para apoiar o prefeito, se elegeu vereador e tornou o efetivo da polícia 76% irlandês.

Mesma coisa em Nova York. Em 1855, gangues irlandesas ajudaram a eleger o prefeito Fernando Wood. Seu primeiro ato foi contratar 246 novos policiais, metade deles irlandeses. Em 1860, 75% do departamento de bombeiros era irlandês.

Como bombeiros e policiais não podiam beber em público, eles se encontravam em bares. E como eles frequentavam pubs que pertenciam a gangsters irlandeses, eles se uniram e conectaram políticos ao crime organizado. Eles até escreviam as leis de zoneamento e permissões das ruas.

Eles passaram a ter até mesmo ruas onde podiam se embebedar sem ter problemas. Brancos não podiam fazer isso. Bem, talvez eles pudessem, uma vez por ano. Talvez em um feriado ou algo assim. Por isso algumas cidades faziam festas regadas a bebida no dia de São Patrício. Quem marchava nas paradas desse dia? Policiais e bombeiros. E foi assim que eles viraram brancos.

Sabe quem mais era bom em boxe, dança, música e gangues?

Quando os italianos migraram para os Estados Unidos no final do século 19, eram bons artistas, atletas e trabalhadores braçais. Mas ninguém queria viver perto deles, eram considerados sujos. E tinham fama de criminosos.

Mas eles se uniram. E isso aumentou ainda mais a suspeita sobre eles. As pessoas acreditavam que todo italiano era membro da máfia ou envolvido em conspirações para derrubar o governo. Em 1891, uma multidão linchou 11 italianos absolvidos pela morte de um policial de Nova Orleans.

O sentimento anti-italiano ajudou na ascensão da KKK no começo do século 20, além do "movimento nativista" (que dizia que pessoas de certas religiões ou nacionalidades não eram aptas a se tornar-se verdadeiros americanos). O Ato de Origens Nacionais de 1924 reduziu a imigração italiana em 98%. Durante a Grande Migração, para os considerados brancos, não havia diferença entre negros e italianos.

Após a Grande Depressão, o governo fomentou a concessão de empréstimos para todos, exceto negros. Mas o governo não considerava italianos como brancos, então você morar em uma vizinhança negra ou italiana era a mesma coisa. Eles podiam até frequentar as suas escolas.

"Suas escolas"? Sim, até a década de 1940, documentos de naturalização listavam "italiano" como uma raça separada de "branco".

Então como eles se tornaram brancos? Supremacia branca. Italianos praticaram as leis Jim Crow até mais do que os brancos, e votavam apenas em políticos que apoiavam as leis Jim Crow.

Lembram de como os japoneses americanos foram perseguidos após Pearl Harbor? Bem, o mesmo aconteceu com os italianos. Roosevelt declarou os ítalo-americanos como "combatentes inimigos". Mas depois que já tinham deslocado uns 10 mil deles, a situação era: "Droga, temos demais desses filhos da mãe!"

Então os ítalo-americanos aceitaram lutar na Segunda Guerra Mundial. Alguns diziam abertamente que queriam mudar a percepção negativa sobre eles. E depois?

Quando eles voltaram, eles eram brancos! Passaram a se recusar a viver nos mesmos bairros e colocar suas crianças nas mesmas escolas que os negros. Em 1947, estudantes italianos de Chicago fizeram uma passeata porque "tem muitos negros em nossa escola". O problema foi resolvido em menos de uma semana, depois que dez crianças negras morreram quando um incendiário colocou fogo no prédio.

Para se proteger, jovens negros formaram suas próprias gangues inspirados nas dos irlandeses e italianos. Mas nessa altura os italianos já haviam expulsado os negros de suas vizinhanças.

Então, para onde os negros foram? Bem, em 1941 a cidade de Chicago decidiu dar moradias. Mas claro, não para os negros. Em vez disso, juntaram a população negra em conjuntos habitacionais de baixo custo, demolindo as antigas vizinhanças negras para criar bairros italianos e judeus. Isso foi visto como um sucesso e várias cidades pelo país fizeram o mesmo.

Mas havia um problema. Lembram da "linha de corte" que impedia os bancos de oferecerem empréstimos em lugares onde negros viviam? Como eles poderiam recusar empréstimos para esses bravos italianos veteranos de guerra? (Fizeram isso com veteranos negros, óbvio). Essas pessoas haviam lutado na guerra, e haviam "limpado" suas vizinhanças! Eles haviam ajudado a excluir os negros e votado em seus opressores!

E voilá, italianos passaram a ser brancos!

Imigrantes judeus seguiram o mesmo modelo. Assim como os poloneses "étnicos". É na verdade uma tradição americana.

Agora, deixe-me fazer uma pergunta séria, e prometa que vai responder sem procurar no Google: o que é "hispânico"? É sério. Você sabe?

Porto Rico tem sido parte dos Estados Unidos por 100 anos. São "hispânicos" só por viverem em uma ilha do Caribe? E por que haitianos são considerados negros, e dominicanos são hispânicos, se os dois grupos vêm da mesma ilha?

Por que você é um "nativo americano" se nasceu de um lado do Rio Grande, mas é um "hispânico mexicano" se nasceu do outro lado? É a linguagem? E por que as pessoas que vêm da própria Espanha não são consideradas hispânicas?

E mais, por que cubanos são considerados hispânicos? Quando a Espanha colonizou Cuba, os povos nativos Taino foram exterminados. De fato, muitos cubanos têm ascendência mais europeia do que muitos americanos brancos.

O QUE DIABOS É SER HISPÂNICO, AFINAL?

Eu digo o que é: é mais uma bobagem artificialmente construída. Mas os brancos continuam criando políticas com medo de que este país deixe de ser majoritariamente branco. É por isso que eles enjaulam crianças mexicanas. É por isso que eles querem que você "fale americano!"

A verdade é: aqueles que fazem as leis garantem que este sempre será um país branco, porque criam um caminho para se tornar um "verdadeiro americano". E este caminho é pavimentado com o sangue e os ossos de pessoas negras.

Você não precisa entrar em um clube ou pagar uma taxa de inscrição para se tornar branco(a). Branquitude nos Estados Unidos da América é sobre chutar pessoas negras no rosto. Mas eles não fazem isso porque nos odeiam. Nós somos um exemplo. Quando colocam um alvo em nós, eles dizem: "Ah, vocês querem ser VERDADEIROS americanos? Bem, mostrem o quão forte vocês podem chutar!" E na terça-feira [dia da eleição], todas essas "pessoas de cor" estão respondendo: "assim é forte o suficiente?"