segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

GUEST POST: MULHERES, PAREM DE SE PREOCUPAR COM UMA BELEZA TÃO SUBJETIVA

Guidi Vieira é musicista, tem um blog, e já escreveu outros guest posts pra cá. É com muito prazer que publico mais um. 

Há tempos venho querendo escrever sobre beleza. 
E a gota d’água se deu há uns três dias, quando a postagem de uma menina no Facebook apareceu para mim: “Que vontade de chorar! Minha vida está uma desgraça.” Não a conheço pessoalmente, ela havia me adicionado há uns meses, talvez por sermos ambas da música. Não costumava receber suas postagens, mas aquela apareceu. Como podia ser tanto apenas um desabafo momentâneo quanto algo um pouco mais preocupante, fui ver seu perfil.
O que vi ali? Descendo sua linha do tempo, apenas selfies. Apenas fotos de uma mulher linda, produzida, com decotes, roupas perfeitas, o cabelo perfeito, sobrancelha, maquiagem, tudo impecável (aliás, um dos comentários à triste postagem foi: “Não fique assim, você é linda”). Fiz uma relação imediata e inevitável entre as fotos e o seu desabafo -- embora isso seja precipitado e talvez até leviano de minha parte. Mas confesso que, vendo aquelas imagens, me pareceu que a vida dela estava um pouco vazia. E talvez essa angústia tivesse algo a ver com a superficialidade que vem sendo tão estimulada nos tempos em que vivemos.
Não é incomum ver pessoas que conheço pessoalmente, interessantíssimas, engraçadas, com ótimo papo, se portando na rede social de forma a exacerbar seu lado mais raso. Parece quase que intencional, como se não quisessem mostrar o que têm de melhor, publicando apenas fotos mandando beijinhos, selfies no espelho etc (não vejo nada de errado, o problema é quando fica só nisso!). Então imagino que a moça triste talvez seja também interessantíssima, engraçada e boa de conversar, mas esteja se fiando muito em sua beleza, colocando isso acima de todas as suas outras qualidades para receber um pouco de carinho e atenção. 
E aí pensei o seguinte: acho que a vida fica ainda mais difícil quando a gente percebe que fez tudo o que a sociedade nos mandou fazer e o resultado não nos traz felicidade. A moça da postagem é perfeita, segundo os padrões impostos. Mas isso não está bastando, pelo visto. E, poxa, não era a beleza o que realmente importava no mundo feminino? Não é este o atributo que os homens tanto valorizam? Não é isso o que a televisão mostra? Não é isso o que os outdoors sublinham? Beleza, beleza, beleza? 
Daí concluí que deve bater uma sensação de traição, sabe? Você seguir essa cartilha-- difícil de ser seguida -- e não ter o mundo a seus pés. Ninguém te avisou que quando você finalmente estivesse “perfeita”, não bastaria. Ninguém te disse que você sentiria esse vazio, mesmo seguindo as coordenadas tintim por tintim. 
Tenho a convicção de que grande parte da sociedade não quer que você descubra o que importa, de verdade. É melhor que você nunca desconfie que precisa se desafiar intimamente, que precisa vencer seus medos. Que precisa largar vícios internos e que isso, sim, vai te deixar feliz. Nada, deixe essas questões complexas para lá! O sistema quer que você pense apenas no quanto seu corpo anda mais flácido ultimamente, para que você resolva isso imediatamente, e antes de qualquer outra coisa.
Muitos não querem que você descubra que ser feliz não tem nada a ver com beleza. E que dá para ser feliz estando fora do padrão. E que -- ironia das ironias -- talvez seja até mais fácil ser feliz estando fora do padrão, visto que haverá bem menos pressão em cima de você. Talvez até te deixem envelhecer em paz, ou quase isso. Sim, porque ícones como Brigitte Bardot, Vera Fischer e todas as mulheres que um dia foram exaltadas por sua beleza são hoje em dia atormentadas e cobradas pela mesma mídia que as endeusava. Faça um teste: pense em uma mulher linda e famosa que hoje em dia seja uma senhora. Ok. Agora procure notícias recentes dela no Google. Você verá prontamente a sacanagem que fazem e sempre fizeram com as mulheres que têm a sorte de estarem vivendo uma vida longa. 
Aliás, não sei por que as pessoas são tão cruéis com as outras, visto que envelhecerão também (se tudo der certo). Elas querem ser cobradas da mesma forma como cobram as outras? Eu, pelo menos, quero envelhecer sem ninguém me encher o saco. Adoraria viver bastante, ficar bem idosa -- e, se possível, ativa -- e não ser desrespeitada por isso. E precisar reivindicar algo do tipo apenas mostra o quanto estamos doentes. 
É importante dizer que sou, sim, vaidosa. E talvez até exista algo positivo nesta vaidade (caso implique em se amar do jeito que se é). Mas sei que às vezes essa preocupação com a imagem é um peso, e que eu seria ainda mais livre se não me ocupasse com isso. Seria, no mínimo, uma questão a menos na vida.  
O diretor de teatro Amir Haddad certa vez falou, em uma de suas oficinas: “Não existe gente feia, existe gente oprimida, massacrada”, traçando um paralelo bem pertinente entre beleza e liberdade. Quando o ouvi dizer isso, pensei no quanto minha vida teria sido diferente se tivesse crescido ouvindo esse tipo de coisa, e não “Que mulher feia! Eca!” toda vez que aparecesse uma pessoa assim -- considerada “feia” -- na TV ou no jornal, ou na vida real. Porque, por mais que eu tenha crescido sendo considerada bonita pela maioria das pessoas que me cercavam, essas falas me afetavam e ainda afetam. As marcas de expressão que vão se acentuando em meu rosto, por exemplo, certamente me incomodam mais do que deveriam, e sei que isso tem a ver com esses comentários que ouço desde sempre. 
Felizmente também lembro de ter ouvido minha mãe, certa vez, dizer: “Estou achando tão legal ficar velha”. Ainda que isso tenha sido dito por uma jovem mulher de 43 anos, foi bom ter ouvido alguém dizer isso. É uma das poucas boas referências que tenho na infância em relação a esse assunto. Vez ou outra me recordo desta frase e penso o quanto pode ser bonita a passagem do tempo.
Aliás, não sou mãe. Mas acho que posso dar um pitaco, dada a minha condição de filha: pais, não enfatizem a beleza de seus filhos como algo relevante. Não deixem que eles se fiem nisso. Vai dar merda! Ironicamente, vai causar baixa autoestima e momentos de sofrimento desnecessários, e digo isso de cadeira. Porque se sempre fui chamada de linda pela família, o mundo não concordou 100% com isso, e o primeiro que me chamou de “feia” fez meu mundo cair. Olha que besteira: chorar porque alguém não te acha linda (como haviam dito que você era -- teriam mentido?); ficar em crise dias e dias pensando no que alguma pessoa te disse. Sofrer por ter ouvido uma opinião relativa a uma questão tão subjetiva quanto essa, e que tem muito a ver com gosto pessoal, é um sofrimento bem evitável. (E olha só que bosta, a “legitimação” de beleza tem que vir de outro, e não de você mesma. O que o outro disse sobre você tem peso 2. Estamos nas mãos dos outros, isso é muito grave!)
Quis escrever esse texto há uns dois meses, quando ouvi um conhecido dizer a outra menina, ao cumprimentá-la: “Isso é que é mulher bonita, o resto é conversa”. Eu estava perto e mal acreditei, mas juro que a forma de elogiar do rapaz foi exatamente essa: diminuindo outras mulheres, colocando uma como melhor que as outras, e ainda por cima utilizando essa régua: beleza. Essa frase não saiu de minha cabeça e me prometi que escreveria sobre ela. 
(Para piorar, o cara que falou isso é artista. E eu bato e sempre vou bater nessa tecla: artista tem que ir contra a corrente, porra! Não é para reforçar valores que a mídia enaltece, não é para agir sem pensamento crítico, não é para apenas sair repetindo o que falam por aí, em qualquer esquina, de qualquer jeito, sem pensar antes. Daí me pergunto se ele e outros artistas caretas- normopatas que vejo por aí não se confundiram e caíram na profissão errada: talvez uma carreira mais certinha, sem as dissonâncias e diversidades da arte, combinasse mais com o modus operandi deles.) 
Esse texto estava na garganta e nos dedos há tempos, e sei que este assunto poderia render um livro, sem exageros. São muitos e muitos casos, muitas frases, muitos momentos que me marcaram e que me fazem ter a certeza, hoje em dia, do quanto essa história de beleza causa danos que não poderemos nunca contabilizar exatamente. Porque, se há pessoas como o ativista Oskar T. Brand fazendo vídeos sobre os efeitos danosos das revistas de moda na autoestima das mulheres, ainda há muitas e muitas meninas vivendo cheias de medo de serem algum dia chamadas de “feias” na balada, na escola, na rua, e suspirando de alívio cada vez que um zé-mané qualquer elogia sua beleza. 
E mesmo que mulheres incríveis como Lizzie Velasquez e Cameron Russell coloquem por terra o mito de que beleza = felicidade, ainda assim há várias meninas e mulheres realmente se importando com suas aparências de forma obsessiva, perdendo tempo de vida com isso, imaginando o quanto seriam muito mais amadas pelo namorado, pelas amigas, pela família, se fossem mais magras, se fossem mais altas, se tivessem um rosto mais “delicado”.
Fico na torcida para que a cada dia mais mulheres se sintam confiantes e felizes e que também escrevam sobre suas experiências neste campo, façam vídeos, conversem sobre o assunto, se tornem pesquisadoras; ajudem a desmistificar cada vez mais a questão desta beleza normativa. Porque, apesar de tudo, acho que estamos num bom caminho, num momento de muita contestação de “verdades”, e ainda veremos muitas mudanças positivas nesse sentido.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

GUEST POST: O ÔNUS É DAS MULHERES, O BÔNUS, DOS HOMENS

A Tássia me enviou este texto. 

Uma discussão sobre aborto me fez pensar no quanto nosso prazer ainda é visto como algo ruim e em como a misoginia é internalizada na gente. Escrevi algumas linhas sobre isso e pensei que talvez pudesse virar um guest post. Já aviso que este é um texto escrito sob a perspectiva de relacionamentos héteros.
Poucas coisas incomodam mais a sociedade do que a mulher que transa. Se gozar, então, pior ainda. Apesar de sermos sexualizadas desde cedo, não é visto com bons olhos que essa sexualidade seja usada a nosso favor. Devemos emular um comportamento sexy-pornô para satisfação masculina, mas não tomar as rédeas do nosso prazer.
E é muito fácil perceber isso quando numa discussão sobre aborto ou mesmo sobre formas dignas de parto e necessidade de combater a violência obstétrica. Aí a gente lê e ouve argumentos do tipo “na hora de fazer gostou, então aguenta”; “quem mandou abrir as pernas?”. Dói no fundo da alma quando eu vejo alguém -- principalmente uma mulher -- falar isso porque não passa de misoginia internalizada. É moralismo puro. É dizer que a nós cabe punição por transar. Se for fora do sagrado matrimônio é ainda pior. Engravidou do peguete aleatório? “Bem feito”. 
Ninguém lista para os homens os métodos contraceptivos ou lhes diz que “na hora de comer foi bom, agora aguenta”. A eles é cobrado apenas o pagamento da pensão quando se vai para a justiça -- o que não acontece em todos os casos, principalmente quando a mulher é pobre e sem acesso a advogado particular. Se pegar a criança a cada quinze dias e postar foto em rede social é considerado herói.
Percebem o duplo padrão de julgamento social? Os homens podem transar livremente, com quantas quiserem e inclusive abrir mão da camisinha sob argumento de que incomoda o prazer deles. As mulheres devem transar com o mínimo de caras possíveis e a elas cabe “se cuidar” pra não engravidar, o que geralmente significa entupir o corpo de hormônios e lidar com as consequências disso na saúde e na libido. E ainda correr o risco de pegar uma doença.
Num mundo igualitário a contracepção e criação dos filhos seria algo compartilhado de fato. O prazer feminino e masculino estaria no mesmo patamar de importância. No mundo que temos hoje resta a nós mulheres, enquanto classe, o ônus da contracepção, da gravidez compulsória, da maternidade solo. O fardo é pesado e somos nós por nós. Isso não é sobre mim ou sobre você. Não é sobre os companheiros maravilhosos que algumas temos. Precisamos pensar no macro. Não julguemos a coleguinha. Cada uma sabe o abacaxi que descasca todo dia por ser mulher num mundo de homens.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

A MULHER TERRA E O DEUS DAS PEQUENAS COISAS

O Deus das Pequenas Coisas, da indiana Arundhati Roy, é um belo livro, poético, genial. 
Recomendo muito esta história de machismo e brutalidade vista pelos olhos de duas crianças gêmeas. 
Compartilho com vocês uma passagem em que o tio dos gêmeos conta a eles como somos breves e... insignificantes (tradução de José Rubens Siqueira, 1997. Dá pra ler o romance aqui). 

Então, para dar a Estha e Rahel uma ideia da perspectiva histórica (embora perspectiva fosse algo que, nas semanas seguintes, faria muita falta ao próprio Chacko), ele falou aos dois da Mulher Terra.
Fez os dois imaginarem que a Terra, com quatro bilhões e seiscentos milhões de anos, era uma mulher de quarenta e seis anos, da idade, digamos, de Aleyamma, a professora que dava lições de malayalam para eles. A Mulher Terra tinha levado a vida inteira para ser o que era. Para separar os oceanos. Para elevar as montanhas. A Mulher Terra tinha onze anos de idade, disse Chacko, quando apareceram os primeiros organismos unicelulares. Os primeiros animais, criaturas iguais a vermes e águas vivas, só apareceram quando tinha quarenta. Tinha quarenta e cinco, havia apenas oito meses, quando os dinossauros ainda dominavam a Terra. “Toda a civilização humana conforme nós conhecemos”, Chacko disse aos gêmeos, “começou faz só duas horas na vida da Mulher Terra." [...]
Era assustador [...] saber que a totalidade da História contemporânea, as Guerras Mundiais, a Guerra de Sonhos, o Homem na Lua, a ciência, a literatura, a filosofia, a busca de conhecimento, não eram mais do que uma piscada de olhos da Mulher Terra. “E nós, meus queridos, tudo o que nós somos e jamais seremos é só uma piscadela do olho dela”, Chacko disse em tom grandioso, deitado em sua cama, olhando o teto.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

SOU A ÚNICA FEMINISTA QUE REAÇAS CONHECEM EM SEU MUNDO FALOCÊNTRICO

Foi só no ano passado que me dei conta que uma das frases preferidas dos machistas (além de "Vai lavar louça"), "Isso é falta de rola", remete à estupro.
Geralmente essa frase tão criativa é gritada para feministas, que os caras acham que são todas lésbicas. Aliás, eles não se decidem. Às vezes falam que sofremos por falta de pênis; noutras vezes, sofremos pelo excesso, porque somos promíscuas (lembra quando disseram que transamos com dez por noite, e um monte de mulher veio correndo querendo saber onde tira a carteirinha?). 
Quando se diz que uma lésbica precisa de rola, está se aludindo a estupro corretivo, puro e simples. Outra fantasia reaça, a "cura gay" (afinal, orientação sexual seria uma doença e, como tal, passível de cura), prova que eles acreditam mesmo que lésbicas devem ser estupradas para serem "corrigidas". 
Reaças e mascus não sabem nada de nada, então é normal que eles não conheçam muitas feministas. Pra muitos, eu sou a única que eles conhecem. E tentam encontrar uma explicação para eu não me encaixar na narrativa que eles fazem das feministas. Tipo: eu sou hétero, casada com um homem há 26 anos, e eles ficam terrivelmente decepcionados quando descobrem isso. Primeiro: como é que pode uma mulher gorda ter marido? 
Segundo: como que pode eu não ser lésbica? Vocês precisam ver as especulações que eles fazem da minha vida sexual. Eu imagino que a deles não seja exatamente um sucesso, pra eles gastarem tanto tempo falando sobre a vida sexual alheia.
E eis que eu vi outro dia essa camiseta aí em cima no Twitter de um reaça. Não sei se é de verdade, não sei se eles realmente fizeram algo assim e se alguém comprou. Deve ser dura a vida do cara que veste isso e tem que ouvir a cada cinco minutos "Quem é Lola?" porque, convenhamos, fora da internet eu não sou muito famosa. 
Ano passado reaças carregaram cartazes de "Menos Freire, mais Frota", comparando um educador referência no mundo inteiro com um ator pornô (se bem que, no Brasil pós-golpe, a gente sabe quem consegue se reunir com o ministro da Educação). Não sei se chegaram a fazer camisetas. 
Mas é o que eu sempre digo: se rola resolvesse algum problema, homens reaças não seriam o fracasso ambulante que são.
Se rola fosse solução, reaça não estaria vendendo camiseta com trocadilhos ignorantes.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

GUEST POST: FALEMOS SOBRE ABORTO

Excelente texto da Sabine.

Nunca me esqueço de minha querida mãe, falecida há mais de 7 anos, chegando em casa numa noite de 2007, quando ainda morávamos juntas. Grande fã do filme 21 Gramas, do mexicano Alejandro G. Iñárritu, tinha ido ao cinema, muito animada, assistir ao recém-lançado Babel. Ela não era muito chegada em cinema, inclusive dormia nos poucos filmes que topava assistir por indicação minha. Poucas vezes a ouvi falando tão bem, e tanto, de um longa. Falando um pouco mais, talvez no dia seguinte, ela comentava uma cena específica, em que a personagem de Cate Blanchett, baleada e sem acesso a um devido atendimento médico, estava perdida no meio do Marrocos.
Sem muitas descrições, sem muito entender, não dei tanta bola. O papo da mesma cena surgiu alguma outra vez depois disso, mas não me lembro a ocasião. Também não me lembro se eu estimulei a elaboração ou se ela quis falar espontaneamente. Mas ela deu-me a explicação, contando melhor uma história que tinha sofrido e me resumido muito brevemente: quando teve uma gestação interrompida, antes de ter meu irmão mais velho. 
Ela entrou em detalhes dessa vez. Durante o oitavo mês da gravidez ela e meu pai viajaram à Bahia, para visitar uma amiga querida. Essa amiga tinha montado uma cama improvisada, com um colchão, para eles. Minha mãe descrevera bem a cena quando, deitada para descansar, sentiu-se molhada. Levantou-se e viu o colchão com uma enorme mancha de sangue, seu vestido encharcado. Correram para o hospital.
Meu pai também já faleceu, então não tenho informações mais específicas, como por exemplo a cidade em que isso tudo se passou. Sei que era uma cidade pequena; sei que já sabiam que o bebê era um menino, já haviam escolhido nome. Estavam muito felizes com a gravidez. Ao chegarem ao hospital, minha mãe de cara foi maltratada. Enfermeiras, atendentes, médicos -- todos trataram-na como criminosa. A hemorragia era intensa, seus nervos obviamente à flor-da-pele. O que perguntaram a ela? “Foi o quê, agulha de tricô?”, e outras coisas do gênero. 
Falaram, de malgrado, que não havia lugar para ela. Pelo que me contava, poderia ser mentira -- deveria ser. Depois de muito esperar, e de muito meu pai reclamar (lembrando que ela estava perdendo uma gravidez no final do terceiro trimestre, com 8 meses, quando é super perigoso para a vida da mulher, com intensa hemorragia), colocaram-na numa maca (até então esperava sentada). A maca foi deixada no corredor. Depois de esperar ainda mais, sendo ignorada, ela disse ao meu pai que precisava urinar, e chamaram uma enfermeira. Ela olhou minha mãe com desprezo e disse: “Faz aí”. 
E nessa parte retorno ao filme. Em Babel, a personagem americana precisa urinar, mas não tem condições de se levantar. Seu marido a ajuda, com uma bacia, e pede privacidade ao homem que tentava ajudá-los. Minha mãe sequer recebeu uma bacia, e teve de fazer como estava. Ela não se emocionava com tanta facilidade com filmes. Com este, disse ter chorado com a cena, ao lembrar de sua experiência. 
É muito triste que um parto prematuro (lembremos que, já nos 8 meses, não é aborto -- mesmo com feto natimorto) em um hospital se assemelhe, em sensação, a tomar um tiro no meio de uma região desértica.
Depois que foi (mal) atendida pelo médico, as enfermeiras, com muita raiva, colocaram-na num quarto de maternidade. Com mulheres que haviam acabado de parir -- e seus bebês. Falaram em tom de punição que não haviam outros quartos disponíveis. Deveriam ter dito de uma vez que era “para ela se arrepender do que havia feito”. 
Acho que essa história ilustra bastante a realidade sobre o aborto no país. Mulheres sofrem de todos os modos -- as que não queriam abortar e perdem, as que não querem a gravidez e apelam para medidas drásticas. Quem ainda pensa que uma mulher que aborta não sente nada deveria ficar quieto. Peço uma atenção especial às mulheres. Com homem é simples: se você não engravida, nem ouse opinar. Se estiver interessado (e deveria), é bem-vindo para ouvir e entender o drama das mulheres. 
As mulheres que se dizem contra o aborto também devem ter cuidado. Se você nunca quiser abortar, pense com cuidado no momento e na razão de proferir a opinião. Falar isso repetidamente pode soar como julgamento para aquelas que passaram por isso. Mesmo para quem não se arrepende do que fez, não é uma experiência fácil de digerir. E muitas das pessoas que “jamais fariam um aborto” nunca precisaram cogitar, nunca viram seus contraceptivos falharem, nunca foram estupradas. Falar de certezas absolutas no futuro do pretérito do indicativo pode ser uma bela armadilha. Peço uma reflexão. 
Depois disso minha mãe teve dois filhos. No primeiro parto, sofreu violência obstetrícia e nunca soube disso, achava que era culpa dela. A episiotomia que sofreu foi extremamente traumática. O segundo parto foi uma cesariana, pois a opinião médica era de que ela tinha certos problemas com dilatação, por isso o primeiro parto fora “difícil”. Uma balela sem tamanho. 
Depois, quando eu era criança, ela precisou realizar um aborto, pois não tinha condições de ter mais um filho e ela e meu pai estavam perto de se separar. 
O que fez? Arranjou sozinha um remédio, provavelmente Cytotec, e confiou no terrível mito de que você deve tomar alguns comprimidos além de usar topicamente. Resultado: passou um dia inteiro muito mal, com mais uma hemorragia intensa e risco de hemorragia interna. Correu para um ginecologista de confiança e precisou passar por uma curetagem, pois o aborto tinha sido malsucedido. Acho que jamais teria ido a um hospital.
Minha mãe era branca, intelectual e bem instruída, de classe média. O tratamento dado às mulheres e todos os problemas relacionados à saúde reprodutiva renderam a ela apenas experiências traumáticas. Como sabemos, todos os problemas sofridos por uma mulher branca de classe média pioram muito para negras, pardas e/ou pobres. 
O problema do aborto, me parece, é extremamente ligado à violência obstetrícia. É tudo banhado em profunda misoginia e pautado no poder absoluto sobre tudo -- inclusive o corpo da mulher. O aborto é tido como crime. As pessoas sentem raiva e chamam as mulheres de monstras (ou putas ou sem vergonha e a lista não tem fim). Criminalizam a prática, mesmo que não esteja na lei, e estamos todas sujeitas a punições dadas por profissionais da medicina. 
Como nos casos de estupro, somos desacreditadas -- sempre culpadas e nunca vítimas. A mulher que aborta clandestinamente é vítima da sociedade injusta e patriarcal que não dá amparo e suporte; a mulher que sofre aborto espontâneo é vítima de uma infelicidade da natureza -- e todas são tratadas de forma grosseira, cruel e sádica. Como são as parturientes, como são as mulheres que não abaixam a cabeça, e as que abaixam também. 
Falemos sobre aborto sim, sempre, até que ele seja reconhecido como uma questão de saúde pública e de escolha apenas da mulher. Enquanto falamos, sejamos justas e companheiras umas com as outras -- estamos precisando mais do que nunca de sororidade.