Guidi Vieira é musicista, tem um blog, e já escreveu outros guest posts pra cá. É com muito prazer que publico mais um.
E a gota d’água se deu há uns três dias, quando a postagem de uma menina no Facebook apareceu para mim: “Que vontade de chorar! Minha vida está uma desgraça.” Não a conheço pessoalmente, ela havia me adicionado há uns meses, talvez por sermos ambas da música. Não costumava receber suas postagens, mas aquela apareceu. Como podia ser tanto apenas um desabafo momentâneo quanto algo um pouco mais preocupante, fui ver seu perfil.
O que vi ali? Descendo sua linha do tempo, apenas selfies. Apenas fotos de uma mulher linda, produzida, com decotes, roupas perfeitas, o cabelo perfeito, sobrancelha, maquiagem, tudo impecável (aliás, um dos comentários à triste postagem foi: “Não fique assim, você é linda”). Fiz uma relação imediata e inevitável entre as fotos e o seu desabafo -- embora isso seja precipitado e talvez até leviano de minha parte. Mas confesso que, vendo aquelas imagens, me pareceu que a vida dela estava um pouco vazia. E talvez essa angústia tivesse algo a ver com a superficialidade que vem sendo tão estimulada nos tempos em que vivemos.
Não é incomum ver pessoas que conheço pessoalmente, interessantíssimas, engraçadas, com ótimo papo, se portando na rede social de forma a exacerbar seu lado mais raso. Parece quase que intencional, como se não quisessem mostrar o que têm de melhor, publicando apenas fotos mandando beijinhos, selfies no espelho etc (não vejo nada de errado, o problema é quando fica só nisso!). Então imagino que a moça triste talvez seja também interessantíssima, engraçada e boa de conversar, mas esteja se fiando muito em sua beleza, colocando isso acima de todas as suas outras qualidades para receber um pouco de carinho e atenção.
E aí pensei o seguinte: acho que a vida fica ainda mais difícil quando a gente percebe que fez tudo o que a sociedade nos mandou fazer e o resultado não nos traz felicidade. A moça da postagem é perfeita, segundo os padrões impostos. Mas isso não está bastando, pelo visto. E, poxa, não era a beleza o que realmente importava no mundo feminino? Não é este o atributo que os homens tanto valorizam? Não é isso o que a televisão mostra? Não é isso o que os outdoors sublinham? Beleza, beleza, beleza?
Daí concluí que deve bater uma sensação de traição, sabe? Você seguir essa cartilha-- difícil de ser seguida -- e não ter o mundo a seus pés. Ninguém te avisou que quando você finalmente estivesse “perfeita”, não bastaria. Ninguém te disse que você sentiria esse vazio, mesmo seguindo as coordenadas tintim por tintim.
Tenho a convicção de que grande parte da sociedade não quer que você descubra o que importa, de verdade. É melhor que você nunca desconfie que precisa se desafiar intimamente, que precisa vencer seus medos. Que precisa largar vícios internos e que isso, sim, vai te deixar feliz. Nada, deixe essas questões complexas para lá! O sistema quer que você pense apenas no quanto seu corpo anda mais flácido ultimamente, para que você resolva isso imediatamente, e antes de qualquer outra coisa.
Muitos não querem que você descubra que ser feliz não tem nada a ver com beleza. E que dá para ser feliz estando fora do padrão. E que -- ironia das ironias -- talvez seja até mais fácil ser feliz estando fora do padrão, visto que haverá bem menos pressão em cima de você. Talvez até te deixem envelhecer em paz, ou quase isso. Sim, porque ícones como Brigitte Bardot, Vera Fischer e todas as mulheres que um dia foram exaltadas por sua beleza são hoje em dia atormentadas e cobradas pela mesma mídia que as endeusava. Faça um teste: pense em uma mulher linda e famosa que hoje em dia seja uma senhora. Ok. Agora procure notícias recentes dela no Google. Você verá prontamente a sacanagem que fazem e sempre fizeram com as mulheres que têm a sorte de estarem vivendo uma vida longa.
Aliás, não sei por que as pessoas são tão cruéis com as outras, visto que envelhecerão também (se tudo der certo). Elas querem ser cobradas da mesma forma como cobram as outras? Eu, pelo menos, quero envelhecer sem ninguém me encher o saco. Adoraria viver bastante, ficar bem idosa -- e, se possível, ativa -- e não ser desrespeitada por isso. E precisar reivindicar algo do tipo apenas mostra o quanto estamos doentes.
É importante dizer que sou, sim, vaidosa. E talvez até exista algo positivo nesta vaidade (caso implique em se amar do jeito que se é). Mas sei que às vezes essa preocupação com a imagem é um peso, e que eu seria ainda mais livre se não me ocupasse com isso. Seria, no mínimo, uma questão a menos na vida.
O diretor de teatro Amir Haddad certa vez falou, em uma de suas oficinas: “Não existe gente feia, existe gente oprimida, massacrada”, traçando um paralelo bem pertinente entre beleza e liberdade. Quando o ouvi dizer isso, pensei no quanto minha vida teria sido diferente se tivesse crescido ouvindo esse tipo de coisa, e não “Que mulher feia! Eca!” toda vez que aparecesse uma pessoa assim -- considerada “feia” -- na TV ou no jornal, ou na vida real. Porque, por mais que eu tenha crescido sendo considerada bonita pela maioria das pessoas que me cercavam, essas falas me afetavam e ainda afetam. As marcas de expressão que vão se acentuando em meu rosto, por exemplo, certamente me incomodam mais do que deveriam, e sei que isso tem a ver com esses comentários que ouço desde sempre.
Felizmente também lembro de ter ouvido minha mãe, certa vez, dizer: “Estou achando tão legal ficar velha”. Ainda que isso tenha sido dito por uma jovem mulher de 43 anos, foi bom ter ouvido alguém dizer isso. É uma das poucas boas referências que tenho na infância em relação a esse assunto. Vez ou outra me recordo desta frase e penso o quanto pode ser bonita a passagem do tempo.
Aliás, não sou mãe. Mas acho que posso dar um pitaco, dada a minha condição de filha: pais, não enfatizem a beleza de seus filhos como algo relevante. Não deixem que eles se fiem nisso. Vai dar merda! Ironicamente, vai causar baixa autoestima e momentos de sofrimento desnecessários, e digo isso de cadeira. Porque se sempre fui chamada de linda pela família, o mundo não concordou 100% com isso, e o primeiro que me chamou de “feia” fez meu mundo cair. Olha que besteira: chorar porque alguém não te acha linda (como haviam dito que você era -- teriam mentido?); ficar em crise dias e dias pensando no que alguma pessoa te disse. Sofrer por ter ouvido uma opinião relativa a uma questão tão subjetiva quanto essa, e que tem muito a ver com gosto pessoal, é um sofrimento bem evitável. (E olha só que bosta, a “legitimação” de beleza tem que vir de outro, e não de você mesma. O que o outro disse sobre você tem peso 2. Estamos nas mãos dos outros, isso é muito grave!)
Quis escrever esse texto há uns dois meses, quando ouvi um conhecido dizer a outra menina, ao cumprimentá-la: “Isso é que é mulher bonita, o resto é conversa”. Eu estava perto e mal acreditei, mas juro que a forma de elogiar do rapaz foi exatamente essa: diminuindo outras mulheres, colocando uma como melhor que as outras, e ainda por cima utilizando essa régua: beleza. Essa frase não saiu de minha cabeça e me prometi que escreveria sobre ela.
(Para piorar, o cara que falou isso é artista. E eu bato e sempre vou bater nessa tecla: artista tem que ir contra a corrente, porra! Não é para reforçar valores que a mídia enaltece, não é para agir sem pensamento crítico, não é para apenas sair repetindo o que falam por aí, em qualquer esquina, de qualquer jeito, sem pensar antes. Daí me pergunto se ele e outros artistas caretas- normopatas que vejo por aí não se confundiram e caíram na profissão errada: talvez uma carreira mais certinha, sem as dissonâncias e diversidades da arte, combinasse mais com o modus operandi deles.)
Esse texto estava na garganta e nos dedos há tempos, e sei que este assunto poderia render um livro, sem exageros. São muitos e muitos casos, muitas frases, muitos momentos que me marcaram e que me fazem ter a certeza, hoje em dia, do quanto essa história de beleza causa danos que não poderemos nunca contabilizar exatamente. Porque, se há pessoas como o ativista Oskar T. Brand fazendo vídeos sobre os efeitos danosos das revistas de moda na autoestima das mulheres, ainda há muitas e muitas meninas vivendo cheias de medo de serem algum dia chamadas de “feias” na balada, na escola, na rua, e suspirando de alívio cada vez que um zé-mané qualquer elogia sua beleza.
E mesmo que mulheres incríveis como Lizzie Velasquez e Cameron Russell coloquem por terra o mito de que beleza = felicidade, ainda assim há várias meninas e mulheres realmente se importando com suas aparências de forma obsessiva, perdendo tempo de vida com isso, imaginando o quanto seriam muito mais amadas pelo namorado, pelas amigas, pela família, se fossem mais magras, se fossem mais altas, se tivessem um rosto mais “delicado”.
Fico na torcida para que a cada dia mais mulheres se sintam confiantes e felizes e que também escrevam sobre suas experiências neste campo, façam vídeos, conversem sobre o assunto, se tornem pesquisadoras; ajudem a desmistificar cada vez mais a questão desta beleza normativa. Porque, apesar de tudo, acho que estamos num bom caminho, num momento de muita contestação de “verdades”, e ainda veremos muitas mudanças positivas nesse sentido.