A maior tragédia da vida de uma mulher: deixar de ser loira
Hoje a Talita me mandou uma notícia que me deixou indignada: a novela das 19h da Globo "ensina" que ficar feia é mudar seu cabelo loiro e liso por um crespo e negro. Isso sim é cabelo de feia -- e pobre.
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Antes e depois |
Minha revolta foi ainda maior porque ontem mesmo respondi um email de uma moça que quer se matar (literalmente!) por estar fora do padrão de beleza e, principalmente, por não ser branca de olhos claros. Vou publicar o relato dela semana que vem.
Discuti isso no Twitter e a Tuany, uma publicitária de 27 anos que mora em Floripa, apontou outros problemas da novela. Pedi para ela escrever um guest post, e ei-lo:
Desde que estreou a novela Alto Astral, o folhetim das 19h da Globo, eu torci o nariz. A premissa é que se trata de uma história espiritual, que fala sobre reencarnação e eu, como seguidora da doutrina espírita, sei que se esses pontos não forem colocados da maneira correta, vão apenas reforçar os estereótipos que já existem em relação ao espiritismo.
Mas antes fosse esse o único problema. Gostaria de deixar bem claro que não acompanho assiduamente a novela, portanto, em alguns momentos citarei o nome dos personagens; em outros, dos atores. O horário coincide com quando chego em casa e deixo a TV ligada enquanto faço o que tem que ser feito e, como moro sozinha, é bom ter um “barulhinho”.
Vou tentar relatar os fatos pela ordem de flagrante.
Na primeira vez que sentei no sofá e parei para ver a novela, estava passando uma cena onde a Sofia Abrahão discutia com o (ex-)namorado no portão de casa. Aparentemente, ela já havia terminado o relacionamento. O moço tentava argumentar e, diante da negativa dela, a agarrou. Ela relutou. Ele insistiu. Ela se rendeu. Ou seja, era apenas “charminho”. A moça entra em casa e relata o beijo apaixonado para a mãe, que fica maravilhada e torce para que eles se acertem.
Menos de cinco minutos depois (sério!), a mesma cena com outros personagens. Dessa vez, o casal protagonista, Caíque e Laura. Ele a agarra. Ela resiste. Ele insiste, segurando-a mais forte. Ela se rende. Apaixonada.
Mas, gente, que problema existe? Eles eram namorados, óbvio que ela queria! Além do mais, eles são o casal protagonista, é claro que devem ficar juntos, mesmo que ele não saiba ouvir não e a agarre à força!
Troquei de canal mas, no dia seguinte, lá estava eu novamente, dessa vez já atenta pra pescar novos sinais. Que não demoraram a chegar, claro.
Dois irmãos conversam na cozinha. Um deles, na casa dos seus 20 anos. O mais novo, por volta dos 8 ou 9.
O mais velho desabafa com o menor (quem nunca, né, gente?) sobre como gostaria de namorar uma menina, mas ela não parecia muito a fim. Aí, o mais novo explica para o irmão como é que as coisas realmente funcionam: “A mãe uma vez me disse que quando a menina diz não, ela quer dizer sim”. Peço perdão pela falta de exatidão, não lembro se a frase foi “quando a menina diz não, ela quer dizer sim” ou “quando a menina diz não, ela só está fazendo charme”. Não sei o que me choca mais nesse contexto.
Outro núcleo, vamos lá: uma moça, enfermeira, virgem, se envolve com um rapaz “pegador”. O que ela não sabia que é o moço havia apostado uma caixa de cerveja que ele iria, sim, conseguir desvirginá-la. Ela, apaixonada e encantada com as investidas dele; ele, cada vez mais insistente, consegue o que quer. E filma. E cai na internet. A moça, claro, sofreu toda sorte de torturas psicológicas. Pediu afastamento do emprego e não conseguia mais sair de casa.
Até que... surge ele! O MACHO SENSÍVEL E SALVADOR! Ele é apaixonado pela moça em questão e é médico do hospital em que ela trabalha (ele é médico e ela é enfermeira, coincidência?), e a incentiva a voltar a trabalhar, a seguir a vida e, como não poderia deixar de ser, a ficar com ele. Afinal, quem mais iria querer ficar com uma moça que já teve vídeo íntimo postado na rede? Apenas os machos sensíveis e salvadores!
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Itália recebe lição de moral |
Um dia, ela lamenta sobre tudo que aconteceu com ela, sobre como isso foi injusto e nojento. E ele, do auge da sua sensibilidade: “Olha, Itália, você é adulta e tem que admitir que também tem responsabilidade sobre tudo que aconteceu! Afinal, todo mundo te avisou que ele não prestava”.
Aí, quando você pensa que consertaram o cano de vazamento de chorume, ele explode na sua cara: o moço que vazou o vídeo está arrependido. Chorando, inconsolável, pois acabou de descobrir que a ama. O pobre moço encontra consolo no colinho da mamãe, que não entende por que essa moça não perdoa seu filho. Tão arrependido, tão apaixonado. Tão babaca.
Mas, a última é a entrada da Monica Iozzi, na pele de Scarlett. Scarlett é filha de um dos donos do hospital em que a trama é ambientada. Ela é loira, rica sem nunca ter trabalhado, mora em Nova York. Até que seu pai falece e, para que possa conseguir colocar as mãos na herança, precisa passar um ano trabalhando na lanchonete do padrinho para “aprender a dar valor ao dinheiro”.
Claro que todo pai zeloso deixa para ensinar isso à filha no postmortem, nada mais natural. É aí que vem: para que ela vá para o Brasil trabalhar na lanchonete, ela passa por uma transformação. Tem seus lindos e hidratados cabelos transformados por um cabeleireiro que brada ao entrar em sua casa: “Vim fazer o que me mandaram: te deixar feia”. A cena acaba com ela gritando, horrorizada em frente ao espelho.
No próximo capítulo, descobrimos o que de tão horrendo tinha acontecido à nossa pobre menina rica: seus lindos cabelos loiros foram substituídos por cabelos escuros, crespos e curtos. Ou seja, isso é “enfeiar” a personagem. Cabelos loiros e lisos = pessoa rica e bonita. Cabelos curtos e crespos = pobre e feia. A empregada.
Ah! Claro que o nome dela também mudou! Vocês já viram empregada feia e pobre se chamando Scarlett? Não, né? E Cida? Muito mais nome de empregada, né!
Fora as inúmeras cenas de racismo (o irmão mais velho citado acima, negro, acusado de roubo, a empregada negra), disputa entre as mulheres (por causa de homem, lógico! Por que mais elas poderiam competir?), mulher fazendo de tudo, inclusive inventar uma doença terminal, para segurar o marido e chamando a mulher por quem ele é apaixonado de vagabunda e vários adjetivos de embrulhar o estômago.
Como eu disse antes, se não acompanho com frequência e já consigo perceber tudo isso. Imagina se acompanhasse? Mas tem algo que me deixa ainda mais incomodada: novelas do horário das 19h são as novelas “bobinhas”, “família”, “bem humoradas”. Dói saber que é isso que tá fazendo as pessoas rirem. Dói saber que esse tipo de discurso é oferecido como entretenimento pós-dia-cheio-no-trabalho.
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"Scarlett, você tá horrorosa!", diz seu padrinho, rindo.
Não sei o que é mais triste: presenciar esta cena ou ver
Leopoldo Pacheco, que brilhou no remake de Escrava Isaura,
ser tão rebaixado na sua carreira |