segunda-feira, 30 de outubro de 2023

PERDEMOS UM AMIGO: MATTHEW PERRY

Este será um post um pouco polêmico por dois motivos. Primeiro que não vou escrever sobre o genocídio que Israel está cometendo contra os palestinos. É difícil pensar em qualquer outra coisa, mas eu sempre fui pró-Palestina e me dói escrever sobre esse massacre. Segundo que, embora este seja um post em homenagem a um ator muito querido, eu falarei um pouco sobre sua vida difícil.

Apesar de inúmeros problemas (falta de diversidade, gordofobia, transfobia, piadas que envelheceram mal etc), eu e uma multidão de gente adoramos a série Friends. São dez temporadas (entre 1994 e 2004), ou 236 episódios curtos e, na maior parte das vezes, extremamente divertidos, que podem ser vistos ou revistos a qualquer hora. A sitcom é considerada uma das melhores de todos os tempos. Seus seis atores principais tinham uma química perfeita (eram amigos por trás das câmeras), um grande timing cômico, e ajudaram a criar personagens inesquecíveis -- ainda que com muitos defeitos. 

E não há dúvida que um dos melhores nesse elenco só de feras foi Matthew Perry, que interpretava Chandler Bing. Esse rapaz inseguro, que constantemente tentava disfarçar sua baixa autoestima com piadas, continha um pouquinho de cada um de nós. Era fácil se identificar com ele, rir com ele e, inclusive, rir dele. Quase sempre as falas mais engraçadas eram dele. E era esquisito, porque todo mundo fingia que ele não era bonitão (bem mais que Ross e Joey). E seu romance com Monica foi muito mais aceito que o de Ross e Rachel. Eles combinavam. 

A morte de Matthew Perry no sábado pegou todo mundo de surpresa. Ele só tinha 54 anos e as primeiras informações indicam que não havia drogas no local e que a causa foi afogamento. Ele estava em sua jacuzzi. Cinco dias antes, havia postado no instagram uma foto relaxando dentro da jacuzzi, contemplando a vista. Pode ter sido um acidente, pode ter sido uma overdose, pode ter sido álcool, um ataque cardíaco (só não foi a vacina contra a Covid, como negacionistas insistem em atribuir a qualquer morte).

Mas ele já quase havia morrido antes, várias vezes. Em 2019, antes da pandemia, não morreu por um triz. Seu cólon se rompeu (li que explodiu) devido ao uso de opioides. Os médicos disseram que ele tinha 2% de chances de sobreviver aquela noite. Mas ele conseguiu ficar em coma por duas semanas, fora vários meses internado no hospital. Teve também que usar uma bolsa de colostomia durante nove meses.

Dois anos depois, numa clínica de reabilitação na Suíça, seu coração parou de bater após uma reação a sedativos. Os médicos quebraram oito de suas costelas para ressuscitá-lo. Foi por isso que ele teve que desistir de atuar ao lado de Meryl Streep em Não Olhe Para Cima

Não é exatamente fofoca. Ele mesmo contou tudo isso numa autobiografia lançada faz um ano, Friends, Lovers and the Big Terrible Thing. Lá ele também escreveu, aos 53 anos: "Nesse ponto da minha vida, a gratidão derrama de mim porque eu deveria estar morto, e de alguma forma não estou". 

Ele esteve em clínicas de reabilitação diversas vezes, a primeira em 1997, por se viciar em remédio pra dor depois de um acidente de jet ski. Ele calculou que gastou 9 milhões de dólares nesses tratamentos. E transformou uma mansão numa clínica de reabilitação para outros homens. Foi a umas 6 mil reuniões dos Alcoólatras Anônimos.

Na autobiografia, ele estimou que teve que passar por doze cirurgias para salvar sua vida. Contou que chegou num ponto que seu corpo estava tão debilitado que ele perdeu os dentes da frente ao morder uma torrada. 

Ele chegou a tomar 55 comprimidos de Vicodin (pra dor) por dia. E não era pra ir a festas. 

Ele tomava tudo aquilo na casa dele, sozinho. Ele ia a open houses (casas à venda que podem ser visitadas) e pegava nos banheiros as pílulas deixadas pra trás pelos donos. Afirmou que nunca apareceu alterado durante as filmagens. Ao mesmo tempo, disse a um entrevistador em 2016 que não se lembrava de ter filmado três temporadas de Friends. E confidenciou que Jennifer Aniston foi ao seu trailer para carinhosamente lhe dizer "podemos sentir o cheiro do álcool". 

Foi uma vida difícil, apesar de todo seu sucesso (nas últimas temporadas ele estava recebendo um milhão de dólares por episódio, e seu patrimônio está estimado em US$ 120 milhões). Ele namorou lindas atrizes como Julia Roberts, Heather Graham, Gwyneth Paltrow, entre outras, mas nunca casou.

O que todo mundo que trabalhou e conviveu com ele está dizendo é que ele era genuinamente um cara legal, um grande amigo. Claro que é normal que digam isso quando uma celebridade morre, mas dá pra ver pelas declarações quando é mais verdadeiro e unânime (vi isso recentemente, em julho, na morte do Treat Williams -- todos gostavam dele). 

E, pro resto do mundo, que só o conhecia por seu trabalho, principalmente pelo seu papel em Friends (ao ler o roteiro da série pela primeira vez, ele decidiu: "Não é que eu pensava que poderia interpretar o Chandler. Eu era o Chandler"), a sensação é de ter perdido um amigo. Não é por acaso que a frase mais repetida é "Aquele [episódio] em que todos perdemos um amigo". Matthew Perry fará falta.

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

UFA! MASSA VAI DISPUTAR SEGUNDO TURNO COM O LUNÁTICO MILEI

Ufa! O mundo todo respira aliviado, enquanto os reaças choram e gritam "fraude!". O candidato da extrema-direita Javier Milei não ganhou as eleições argentinas ontem. Ficou em segundo lugar. Agora vamos para um segundo turno duríssimo a se realizar no dia 19 de novembro.

Tal qual Jair, Javier também foi deputado federal medíocre (não aprovou nenhum projeto, só compareceu à metade das sessões). Porém, ao contrário do brasileiro, que passou quase 30 anos sem fazer nada de bom na Câmara, o argentino ficou só dois anos. É o candidato do Tik Tok, do meme, que cativa homens jovens com pouca instrução formal, aqueles que sempre viveram numa Argentina em crise e que, por acharem que não podem contar com o Estado para nada, aceitam destrui-lo. 

Milei, que afirma sem corar em entrevistas que seu pai começou a trabalhar com 3 anos, promete acabar com o Estado. Quer reduzir os ministérios para apenas oito, dolarizar a economia (mesmo que o país não tenha recursos para isso), liquidar o Banco Central, privatizar empresas públicas (e também a educação e a saúde), tirar direitos trabalhistas, revogar a lei aprovada em 2020 que legalizou o aborto, proibir educação sexual nas escolas, reduzir a maioridade penal, permitir posse de armas. Defende a venda de órgãos e apoia a ditadura militar. Prometeu uma nova guerra com a Inglaterra para recuperar as Malvinas. E, como desgraça pouca é bobagem, ontem ainda corria o boato de que o lunático convidaria Paulo Guedes pra ser ministro da Economia de lá. 

Além de todas essas barbaridades, "El Loco", como é conhecido, acha que seu cachorro Conan era um leão. Gastou uma fortuna para cloná-lo, e hoje contrata uma médium para se comunicar com o espírito do seu cachorro morto. Foi o cão que lhe disse que ele deveria ser presidente. Como brincou Gregório Duvivier num programa muito divertido, pode ser que a médium ouviu "au auf" e entendeu "au au", e aí o "você deve usar um pente" foi interpretado para "você deve ser presidente". 

Sua irmã é estrategista da campanha, e Milei já disse que, caso eleito, ela desempenhará o papel de primeira-dama. Ele não é casado nem tem filhos (fora os cães), o que deve fazer dele o ídolo dos mascus argentinos. 

Com esse currículo, não é difícil prever que, se Milei virar presidente (que as deusas proíbam), ele quebra a Argentina em menos de dois anos e não termina o mandato. Teremos um cenário como o de 2001, quando o país na sua maior crise teve cinco presidentes em duas semanas. E como o projeto da extrema-direita é a destruição total, é lógico que ela torce pelo "quanto pior, melhor". Dudu Bananinha, também chamado de Eduardo Bolsonaro, esteve em Buenos Aires (com nosso dinheiro) para apoiar Milei. Ao dar uma entrevista ao vivo defendendo porte de armas, foi tirado do ar na hora. "Por sorte os brasileiros removeram seu pai do poder", disse o apresentador sobre "esse tipo de gente". 

Bolso evidentemente tira votos de Milei. Um comercial comparando os dois está sendo muito eficaz. Espero que nossos hermanos continuem mostrando o quanto o projeto da extrema-direita foi catastrófico por aqui. 

A eleição está longe de estar ganha, mas eu e um monte de gente estamos mais otimistas agora. Primeiro que 78% dos argentinos votaram (a alienação e a falta de entusiasmo político sempre favorecem a direita). Segundo que o candidato governista, Sergio Massa, foi bem melhor do que se esperava -- teve quase 37% dos votos válidos, contra 30% de Milei. 

Não será fácil, pois Massa é o atual ministro da Economia num país arrasado. Mas os cerca de 10% dos votos do quarto e da quinta candidatos, ambos de esquerda, devem ir pra ele. E, com parte dos votos de Patricia Bullrich (que teve quase 24% e é de direita, da turma do Macri), Massa pode chegar lá. Ele deve adotar o mesmo discurso de Lula e outros líderes da esquerda na América Latina, pedindo um pacto nacional, um governo de coalizão pela democracia e contra o ódio.

Como Bullrich é de direita também, muitos pensam que esses votos irão pra Milei, fazendo dele o favorito. Mas não é tão simples assim. Tem reaça que pode não querer um selvagem da motosserra na presidência. Sem falar que, durante a campanha do primeiro turno, Milei chamou Bullrich de "assassina" (porque ela já foi guerrilheira, antes de se converter à direita). Mesmo que parte dos eleitores de Bullrich não votem em Massa, mas deixem de comparecer às urnas, isso impulsiona o peronista. Além disso, o dono do único instituto de pesquisa que acertou a vitória de Massa ontem lembra que a principal bandeira de Milei -- a dolarização da economia -- é rejeitada pela maioria da população. 57% dos argentinos são contra. E o receio de perder subsídios de energia, metrô e ônibus assusta o eleitor mais pobre de Milei.

Outra boa notícia para Massa é que o governador de Buenos Aires Axel Kicillof, do mesmo partido que ele, foi reeleito no primeiro turno. Metade dos eleitores da Argentina estão em Buenos Aires. Massa ganhou fácil lá. Se ampliar essa margem, leva as eleições.

Pra mim, o melhor sinal das boas chances de Massa é que Milei não cresceu nada entre as primárias de agosto e ontem. Ele teve 30% em agosto e teve 30% ontem, apesar de todo mundo só falar nele há meses, e da extrema-direita do mundo inteiro se unir em torno dele. Ele era favorito nas eleições de ontem e chegou a dizer que estava a 3 pontos de ganhar no primeiro turno (lá é diferente daqui, em que quem tem 50% dos votos mais um se elege já no primeiro turno. Lá basta 45% dos votos, ou 40% com mais de 10 pontos sobre o segundo colocado. Logo, quem ficou a 3 pontos da vitória foi Massa). 

Milei também alegou que, se não ganhasse, seria por fraude (a principal defesa de Bolso e Trump quando perdem). E isso num país com voto impresso e auditável! A maior parte dos analistas acreditava que haveria segundo turno, mas uma coisa é chegar no dia 19 de novembro com quase 37% dos votos (o que Massa conseguiu fazer), outra é chegar com 30% (a situação de Milei). Essa vitória inesperada de Massa dá um ânimo e tanto na reta final, e esse ânimo costuma contagiar o eleitorado. 

Vamulá, hermanas e hermanos! Livrem o mundo de mais um pelotudo fascista!

segunda-feira, 9 de outubro de 2023

COM QUANTAS PILOTAS E COMISSÁRIAS DE BORDO NEGRAS VOCÊ JÁ VOOU?

Eu me lembro da Luana Tolentino dos primórdios deste blog. Ela comentava sempre aqui. Minha mãe sempre falava dela, tinha uma enorme admiração por ela. Foi lindo ver a Luana crescer cada vez mais. Hoje ela é educadora, doutoranda da UFMG, palestrante, referência na luta antirracista, autora dos livros Sobrevivendo ao Racismo e Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula, entre inúmeros atributos.

Tomo a liberdade de reproduzir aqui seu artigo mais recentes na Carta Capital, "Racismo explica a ausência de comissários de bordo negros nas empresas aéreas do Brasil", onde ela declara, citando dados, que ano passado não havia uma única mulher negra trabalhando como pilota no Brasil. No serviço de bordo não melhora muito: há 2,3% de negras que são comissárias (não se diz mais -- faz tempo -- "aeromoças"). Mas sabe onde tem negras? Na limpeza. Pois é, é puro racismo!

Ontem divulguei o artigo no meu Twitter e uma leitora, a Lorrene, recomendou o site Quilombo Aéreo, uma instituição incrível com um grupo de psicólogas, advogadas, mestres e doutoras negras que buscam visibilizar tripulantes negras e negros da aviação civil brasileira.

No site deles descobri que o aeroporto de Fortaleza, Pinto Martins, leva esse nome como homenagem a um aviador pioneiro dos anos 1920, que era negro

Segue o excelente artigo desta profissional maravilhosa que é a Luana!

Tenho trabalhado e viajado muito. Nos últimos 15 dias, estive em São Paulo, Taubaté, Campinas e Curitiba, participando de eventos em que a educação e o racismo foram temas destacados, o que me deixa muito feliz.

Sem sombra de dúvida, o crescente interesse pelo tema se deve à Lei Federal n.º 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira, como também à luta de ativistas e pesquisadores negros, que tensionam as escolas e toda a sociedade quanto à importância de se promover o combate à discriminação racial nas instituições de ensino.

Nesses dias em que fazer e desfazer malas têm sido uma atividade corriqueira, passei por vários aeroportos e companhias aéreas. Os primeiros pouco ou nada lembram os que tínhamos antes da Copa do Mundo de 2014. Ficaram enormes e, em alguns casos, as distâncias até os portões de embarque são quilométricas. Já o serviço oferecido pelas companhias aéreas, com raríssimas exceções… meu Deus do céu! É praticamente impossível se mexer nas poltronas de tão apertadas. Viajar nos assentos do meio é um verdadeiro castigo. Sem falar nos preços altos das passagens e na impossibilidade de despachar malas sem pagar uma pequena fortuna. Tudo cansativo e estressante demais.

Mas a visível piora da qualidade dos serviços não é o assunto principal desse texto. Viajando pelas principais empresas aéreas do país e aguardando a escala entre um voo e outro, não vi um único negro ou negra exercendo a função de comissário de bordo. E isso não é coisa da minha cabeça ou “vitimismo”, como gostam de dizer os que negam a persistência do racismo no Brasil. Muito pelo contrário. Minha observação encontra fundamento em pesquisas recentes.

Um estudo realizado pelo Organização Quilombo Aéreo, em parceria com a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), aponta que, em 2022, não havia uma única mulher negra trabalhando como pilota no país. O estudo mostrou ainda que, em funções relacionadas aos serviços de bordo, as afro-brasileiras representavam apenas 2,3% do quadro de funcionários efetivos das companhias aéreas.

Em entrevista à EBC, ao ser perguntada sobre as razões dessa baixa representatividade de pessoas negras na aviação civil, Natália Oliveira, professora e pesquisadora da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), foi taxativa ao apontar o racismo como principal responsável pela falta de afrodescendentes nesses espaços:

“O corpo negro incomoda e é rejeitado. Olhando para o cabelo da mulher negra, por exemplo, identificamos profissionais negras que foram barradas em processos seletivos porque estavam com seus cabelos naturais soltos nas entrevistas de emprego. É explícito como essas mulheres não são selecionadas, mesmo tendo um currículo bem qualificado ou até melhor que candidatas brancas.”

Em meio a esse processo de exclusão e discriminação, é explícito também que, nos aeroportos, os corpos negros são empurrados para as funções de limpeza. Um olhar atento nos corredores e nos banheiros permite perceber que é lá que as mulheres negras estão.

A ausência de profissionais da aviação negros é mais uma faceta de um Brasil racista que não se envergonha de sê-lo. Muito pelo contrário: banaliza os abismos que separam brancos e pretos no país.