Ontem publiquei um post sobre a iniciativa destemida da tenente-coronel Camila Paiva, do Corpo de Bombeiros de Alagoas, que começou a campanha #SomosTodasMarias, em que várias mulheres contam o machismo que enfrentam nos quartéis.
Duas semanas atrás eu já havia publicado uma entrevista com uma mulher da segurança pública do Ceará.
Hoje deixo aqui o relato de uma moça que trabalha na segurança pública do Acre, e que ficou indignada ao ver que uma corporação militar homenageou as mulheres, colocando uma imagem das bombeiras, em que junto aparece um sub-comandante acusado de assédio sexual e violência doméstica.
A ex-esposa dele moveu 15 processos contra ele nos últimos 3 anos. Em abril, ele foi preso em Rondônia, por quebrar uma medida protetiva que o proibia de se aproximar da ex. Foi condenado a um ano e 20 dias por violência contra a mulher, mas até agora não foi punido pelo Corpo de Bombeiros Militares do Acre. Não só não foi punido, mas sua imagem aparece numa homenagem às mulheres!
Não posso deixar de registrar que hoje li duas notícias bastante relacionadas. Uma é sobre a técnica de futebol feminino do Rio Branco, Rose Costa, que corajosamente se demitiu em protesto à contratação do goleiro Bruno, um feminicida condenado. E a outra é que, numa palestra de retreinamento para 70 mil policiais militares em SP, um major disse que a PM comete abusos "há 188 anos e sempre vai fazer. Você, policial, tem que ficar atento porque sempre terá alguém filmando". Ou seja: o problema não são os abusos, são as filmagens desses abusos.
É parecido com quem não vê nada de errado com os assédios cometidos contra as mulheres na segurança pública, mas ataca as mensageiras. Leiam o relato:
Nos últimos dias a internet, mais precisamente o Instagram, está estranhamente surpresa ao descobrir que mulheres não são bem vindas no militarismo, que sofrem machismo dentro dos quartéis e que alguns homens acham que deveríamos estar lá apenas para servi-los sexualmente.
A narrativa fantasiosa de que militar é um humano superior atrapalha na desconstrução desse cenário hostil para mulheres porque há o estigma de que o homem empático que daria a vida pelo próximo seria incapaz de tratar mulheres com desrespeito, de diminuir, silenciar, ridicularizar. Essa estrutura de silenciamento não começa no plantão, começou quando foi preciso obrigar as corporações a aceitar mulheres por força da lei, uma obrigação de 10% das vagas que geralmente é seguida à risca, nem uma a mais.
Em julho de 2018 um jornal acreano noticiou uma acusação a um coronel do CBMAC. O coronel havia espancado sua ex-companheira grávida e a agressão resultou em um abortamento. O coronel estava prestes a assumir o subcomando da corporação e nós decidimos que isso não deveria acontecer, que seria um desrespeito com as mulheres da corporação. Uma parte das mulheres comprou o discurso da "ex louca que estaria destruindo a vida do pobre homem", a outra parte resolveu lutar.
Ao levantar a nossa voz fomos abafadas por ameaças sutis, aquelas que não se tem coragem para fazer abertamente mas que deixam bem claro que se quiser fazer, pode. Algumas vindas de terceiros em forma de conselho. Continuamos firmes e o coronel não assumiu o subcomando. Porém, foi promovido ao último posto em maio de 2019. A vítima continuou sendo ameaçada, perseguida e agredida mesmo com várias medidas protetivas. O coronel nunca foi punido, e as mulheres pararam de se indispor com o comando por medo das retaliações.
A nós, mulheres, restou a indignação de ver uma corporação que deveria proteger as pessoas vulneráveis protegendo um homem que é capaz de manipular, agredir, ferir, na certeza da impunidade, porque sabe exatamente como o sistema funciona e que será protegido por ele. Tanto que há contra esse mesmo homem uma grave acusação de assédio sexual em outro estado, que também continua impune.
Dói muito ver que nossa missão, nossa farda, foi usada para cobrir o sangue de uma mulher que não teve paz nem quando mudou de cidade para fugir do agressor.
Dói ver cada movimento feito para proteger um homem violento. Recentemente o instagram oficial do CBMAC usou uma foto antiga das mulheres reunidas em que o coronel citado aqui aparece sorrindo ao nosso lado, um posicionamento raso e hipócrita, um pronunciamento apenas para gerar engajamento, usando nossa imagem para fingir que se importa com nossa luta.
Escrevo esse texto na esperança de que as atuais discussões tirem de baixo do tapete tantas histórias de dor e sofrimento que as corporações militares escondem para não manchar a imagem. Que tantas mulheres que sofreram assédio moral e sexual por parte de seus companheiros e superiores se sintam abraçadas nesse momento e percebam que esta é a hora de fortalecer essa discussão e tornar os quartéis menos tóxicos para as mulheres.