quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

A NARRATIVA DA DIREITA PARA AS TENTATIVAS DE GOLPE NO BRASIL E NOS EUA

Como a extrema-direita está longe de ser enterrada, e como ela segue criando e espalhando suas versões mentirosas pro que aconteceu nos EUA em 6 de janeiro de 2021 e no Brasil em 8 de janeiro de 2023, vale muito ler a coluna de Natalia Viana, publicada na newsletter da Agência Pública. 

Capitólio nos EUA e 8 de janeiro no Brasil seguem sendo objeto de disputa

Na semana [do primeiro aniversário da tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023], olhamos para um copo com um tanto de água e quase todo mundo viu ali um copo meio cheio. A pesquisa da Qaest sobre o 8 de janeiro quantificou: 89% dos brasileiros reprovam atos golpistas de 8 de janeiro e 6% aprovam. 

Encontrei só um colunista que viu ali um copo meio vazio, meu amigo Leonardo Sakamoto, a quem sempre acho prudente ouvir. Ele alertou que 6%, calculando assim meio por cima, cerca de 9,5 milhões de pessoas, é muita gente, uma “multidão que pode ajudar a desestabilizar a democracia através da propagação de mentiras, do bloqueio de estradas, da violência civil organizada”. 

Eu acrescentaria outro dado da pesquisa: há um ano, eram 94% os que diziam reprovar os atos, ou seja, existem aí possivelmente, sem contar a margem de erro, uns 8 milhões de brasileiros que passaram a achar que o golpismo era, sim, desejável e quiçá necessário. 

Prova de que o passado nunca é estanque e de que, quando carregado politicamente como foi nosso Capitólio abrazucado, seu significado e interpretação seguem em disputa. Como, aliás, o Capitólio original, ocorrido em 6 de janeiro de 2021 em Washington, e do qual a invasão da Praça dos Três Poderes foi apenas uma cópia, instigada, insuflada e, ao que tudo indica, orientada pelos mesmos mentores, tais como Steve Bannon, cuja coordenação com Eduardo Bolsonaro nós cansamos de demonstrar aqui na Agência Pública.  

Para marcar o 6 de janeiro em ano eleitoral, Joe Biden fez um duro discurso na sexta-feira anterior, afirmando que os republicanos “abandonaram a verdade e abandonaram a nossa democracia”. Foi seu primeiro grande discurso de campanha. No dia seguinte, marcando a data, o presidente americano postou no Twitter (ou “X”, vá lá) um vídeo que mostra Trump elogiando os golpistas do Capitólio, dizendo que “havia amor e unidade” entre os invasores. Assim, Biden demonstrou que pretende levar o atentado à democracia americana como mote principal da campanha. Os aliados de Trump, aparentemente, querem o mesmo.     

No mesmo dia, a newsletter de Steve Bannon, à qual eu, infelizmente, submetendo-me aos ossos do ofício, assino e leio, trouxe um artigo do ex-chefe de gabinete do Departamento de Defesa durante a administração Trump, Kash Patel, que dava o tom da linha que será adotada pela candidatura do republicano. Segundo ele, “a narrativa dos democratas sobre o 6 de janeiro está desmoronando, o Estado profundo [deep state] está na defensiva e há uma enorme operação para encobrir corrupção em andamento” – tudo porque o maior temor dos democratas, diz Patel, é a volta de Trump. 

Adotando um tom irônico, Patel finaliza o texto com uma pergunta: “Não há chance de o FBI e a mídia estarem conduzindo outra operação de desinformação para manipular as eleições desta vez usando mentiras e sobre a insurreição de 6 de janeiro, não é verdade?” 

O texto de Patel dá a senha: os trumpistas já estão preparando uma nova onda de mentiras sobre eleições manipuladas. Sim, veremos isso em 2024. 

O mesmo Patel apareceu no podcast de Steve Bannon em dezembro do ano passado explicando que a tchurma de Trump tem planos de perseguir todos aqueles que tentaram frear ou punir o atentado golpista – ele usa, de maneira sórdida, o argumento reverso de que são eles, na verdade, os guardiães da democracia.

“Nós vamos atrás e vamos encontrar os conspiradores – não apenas no governo, mas na mídia… vamos perseguir as pessoas na mídia que mentiram sobre cidadãos americanos, que ajudaram Joe Biden a manipular eleições presidenciais… Vamos atrás de vocês. Seja criminal ou civilmente, vamos descobrir isso. Estamos avisando. E Steve, é por isso que nos odeiam. É por isso que somos ‘tirânicos’. É por isso que somos ‘ditadores’… Porque vamos realmente usar a Constituição para processá-los por crimes dos quais disseram que sempre fomos culpados, mas nunca fomos.”

Poderia até parecer verborragia de algum fanático radical, mas uma reportagem do site Axios afirma que Patel está sendo cotado para uma posição de primeiro ou segundo escalão na política de defesa e segurança, se Trump for eleito. O quê, como sabemos, é uma possibilidade real nestes dias que abrem o ano de 2024.  

Por aqui, parece que por ora a narrativa em torno do 8 de janeiro não será objeto de disputa tão feroz, uma vez que a inelegibilidade de Jair Bolsonaro decretada pelo TSE parece, por ora, ter resolvido a questão. Além do fracasso da CPI do Golpe de tentar culpar o governo. 

No entanto, quem observa as redes sociais do ex-presidente não pode deixar de notar que a estratégia de desacreditar (e talvez reverter) essa inelegibilidade está sempre presente: há meses, quase todos os vídeos e fotos mostram Bolsonaro sendo recebido por pequenas multidões de fãs, demonstrando sua “enorme popularidade” (muitas aspas), em contraste com o que repetem ser a “impopularidade de Lula”. São frequentes comentários perguntando: onde estão os 60 milhões de eleitores de Lula”, por exemplo.   

No dia 6 de janeiro, Bolsonaro repostou no seu Twitter um vídeo do presidente do PCO, Rui Costa, para fomentar a narrativa de perseguição. “Presidente do PCO, Rui Costa Pimenta: ‘o único candidato capaz de derrotar o Lula é o Bolsonaro, por isso a perseguição…’, escreveu o ex-presidente. Dias antes, como mensagem de ano novo publicou também um videozinho caminhando pela Barra, no Rio, e evocando os batidíssimos versos bíblicos de João 8:32: “a verdade nos libertará”, uma alusão nada discreta à investigação judicial do 8 de Janeiro. 

Se é um fato que nenhum milagre vai salvar os golpistas – como demonstrou o discurso de Alexandre de Moraes e a nova ação da PF especificamente contra os mandantes no próprio dia 8 –, é fato também que há muita gente trabalhando para reduzir a aceitação popular ao fato de que houve, sim, uma tentativa de golpe de Estado. Como os mais de 400 membros e voluntários da Associação dos Familiares e Vítimas de 8 de Janeiro (Asfav) – retratada em reportagem da Pública [na primeira semana de janeiro], que decidiram ser indissociável a defesa dos seus entes queridos de atacar o STF pelo que chamam de “violações de direitos humanos” e de “prerrogativas dos advogados”. 

Não há como defender os seus familiares, ainda, sem negar que houve tentativa de golpe. E nessa toada a associação conseguiu portas abertas em gabinetes dos bolsonaristas no Congresso e a realização de algumas audiências públicas na Câmara e no Senado para discutir a situação dos presos. A morte de Cleriston Cunha, de 46 anos, que faleceu na Papuda em novembro, embora tivesse parecer de soltura expedido pela PGR, deu uma nova bandeira a essa turma. 

O que fica claro é que não há ainda uma versão final do que ocorreu em 8 de janeiro – afinal, ainda estamos descobrindo muita coisa – e nem a sociedade brasileira como um todo está convencida de que se tratou de uma tentativa de golpe de Estado. O que é grave. Porque demonstra que as bolhas informacionais seguem funcionando a toda e que, como sociedade, ainda não estamos na mesma página.   

E, claro: este é um ano eleitoral, quando a polarização, as cisões, os ataques virulentos e o pânico moral rendem dividendos em forma de votos.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

8 DE JANEIRO, UM DIA PARA NÃO ESQUECER

Bora escrever sobre o 8 de janeiro antes de chegarmos ao segundo aniversário desse dia trágico que envergonha a história do Brasil, mas que não pode ser esquecido. 

Segunda-feira marcou um ano da tentativa de golpe dos bolsonaristas, quando centenas de terroristas invadiram e destruíram instituições em Brasília. Vou começar citando as palavras de um especialista, o ministro da Justiça e da Segurança Pública em exercício, Ricardo Cappelli. Ele teve um papel marcante no dia e nas semanas seguintes, pois foi nomeado por Lula interventor da segurança pública do Distrito Federal:

"O dia 8 de Janeiro não começou no dia 8 de Janeiro. Foram quatro anos do ex-presidente atacando as instituições, incitando a população contra as instituições, e essa situação se agravou após o resultado do segundo turno, quando foram montados aqueles acampamentos em frente aos quartéis-generais do Exército. Não há precedente na história do Brasil de acampamentos golpistas montados em frente aos quartéis-generais do Exército.

A gente não está falando de uma barraquinha, mas de cozinha industrial, de fileiras de banheiros químicos, verdadeiras cidades montadas em frente aos quartéis do Exército. Para quem ainda tem dúvidas sobre isso, eu sugiro que tente montar uma barraquinha em frente ao quartel-general do Exército agora para ver quantos minutos fica naquela área de segurança nacional.

Então, jamais aqueles acampamentos teriam sido montados sem que houvesse a conivência ou a permissão do comandante em chefe das Forças Armadas de então, que era o senhor Jair Bolsonaro.

O 8 de Janeiro é fruto de um processo de ataque às instituições, mas ele se agrava. A escalada começa no dia seguinte às eleições, com a montagem dos acampamentos. E todos os eventos que aconteceram em Brasília passam pelo acampamento. Ou eles são planejados no acampamento, ou começam no acampamento ou acabam no acampamento."

Pois é, falar dos bolsonaristas que acamparam em frente a quartéis por todo o país durante dois meses é essencial, já que mostra que houve muito planejamento e financiamento para tentar dar o golpe. 

Em sua coluna na Folha de SP na sexta, Celso Rocha de Barros resumiu o que aconteceu: 
"Em 8 de janeiro de 2023, os soldados rasos do bolsonarismo defecaram no STF, esfaquearam uma tela de Portinari, rasgaram exemplares da Constituição e vandalizaram as sedes dos três Poderes.
Fizeram tudo com a complacência da polícia do governador bolsonarista Ibaneis Rocha, cujo secretário de segurança pública era o ex-ministro da justiça de Bolsonaro, Anderson Torres.
O 8 de janeiro foi o clímax de dois meses de agitação golpista após a derrota de Bolsonaro. Bloqueios de estradas, acampamentos em frente a quartéis, conflitos de rua às vésperas da diplomação de Lula, uma tentativa de atentado terrorista na véspera de Natal, tudo isso tinha o mesmo objetivo do vandalismo na Praça dos Três Poderes: criar um clima de caos que servisse de pretexto para um golpe militar.
Quando os militares não apareceram, os soldados rasos foram presos.
Mas ainda falta prender muita gente.
Os vândalos do 8 de janeiro não eram cidadãos comuns em uma explosão de radicalismo: eram soldados rasos de um movimento político organizado com extensa e bem financiada rede de desinformação, bancada parlamentar própria e quartel-general no Palácio do Planalto."

Em seu excelente texto, Barros ainda cita um "intensivão do golpe", dirigido pelo senador Eduardo Girão (uma das maiores vergonhas do Ceará), realizado no Congresso em 30 de novembro de 2022. Os convidados pediam a "intervenção militar" (eufemismo para golpe militar), e um deles, o deputado José Medeiros (PL-MT), contou orgulhosamente que já havia entrado com pedido de GLO (Garantia da Lei e da Ordem, que convoca as Forças Armadas para reestabelecer a ordem). Colocar os tanques nas ruas seria o pontapé pra um golpe de Estado. Pra isso, valia qualquer coisa, como planejar um ato terrorista que poderia matar dezenas de pessoas no aeroporto de Brasília. George Washington de Souza, um dos que por muito pouco não explodiram um caminhão cheio de combustível no aeroporto semanas depois, estava presente no "intensivão". 

No dia 8 de janeiro, a primeira-dama Janja foi a primeira a dizer "GLO não!" Ela imediatamente viu que Lula não poderia dar chances pros milicos. Lula e Janja estavam em Araraquara, SP (para se solidarizar com a população pelos estragos da chuva na região), com o prefeito Edinho (PT) quando o ministro da Defesa José Múcio ligou e contou o que estava ocorrendo em Brasília. Ele sugeriu que Lula baixasse um decreto de GLO. Ao ouvir isso (a ligação estava em viva-voz), Janja, inteligente que só ela, disse: "GLO não! GLO é golpe! É golpe!" De fato, era tudo que os golpistas queriam -- que o Exército entrasse na história, obviamente não para estabelecer qualquer ordem, mas para instalar um Estado de exceção, tirar Lula, fechar o Congresso e o STF, enforcar Alexandre de Moraes, e por aí vai. Não estou dizendo que, se não fosse Janja, Lula iria baixar o GLO. Só creio que temos que registrar os instintos políticos dessa mulher incrível.

E tudo tem que ficar registrado, pois Bolso e seus asseclas tentam criar sua própria narrativa. São extremamente contraditórios, lógico, mas o bom de ser de direita é que as teorias da conspiração não precisam fazer qualquer sentido. Eles falam que foi uma "armadilha da esquerda", que nunca que aqueles cidadãos de bem quebrariam alguma coisa, que era tudo petista infiltrado, que a invasão toda foi criada e executada pelo governo Lula para derrubar o governo Lula. É absurdo que tenhamos uma guerra de narrativas para algo que está tão óbvio e documentado. Os próprios golpistas bolsonarentos se filmaram destruindo tudo e colocaram as imagens em suas redes sociais. Bolso passou os quatro anos de seu desgoverno pregando o golpe. Ele já está inelegível por causa disso.

Uma pesquisa Quaest de agora revelou que 9 em cada 10 brasileiros reprovam a invasão dos prédios dos Três Poderes. 85% dos eleitores de Bolso são contra. Mas são contra porque mentem descaradamente, contra qualquer evidência e todas as provas, de que a tentativa de golpe não foi um ato convocado e comandado por Bolsonaro, mas por Lula. 

Na segunda, Paulo Pimenta, ministro-chefe da Secretaria de Comunicação, fez uma série de perguntas no Twitter: “Não existe dúvida de que essa organização criminosa que forjou a tentativa de golpe em 08 de janeiro tinha uma cadeia de comando vertical e hierárquica. Quem foi responsável por atacar a democracia, o TSE e o STF? Quem criou uma narrativa para desacreditar as urnas eletrônicas e o processo eleitoral? Quem se recusou a reconhecer o resultado da eleição e a dar posse ao vencedor? Quem impulsionou e possibilitou o financiamento de acampamentos golpistas e a chegada de criminosos em Brasília? Quem fugiu do Brasil e se refugiou nos EUA para assistir ao golpe bem confortavelmente? Responda essas perguntas e descubra quem é o cérebro dessa gangue que atacou a democracia e a Constituição Federal".

Também é fundamental chamar as coisas pelo nome. O 8 de Janeiro foi uma tentativa de golpe de Estado explícita. O doutor em Ciência Política Caio Barbosa ensina por que o dia infame foi sim (óbvio!) uma tentativa de golpe. É absurdo que isso precise ser explicado, mas os bolsonaristas dizem que não foi, porque tava cheio de velhinhos. E Ciro chamou de "vandalismo e depredação" (pra não usar a palavra golpe) e Aldo Rebelo, hoje venerado pela extrema-direita (esteve no último congresso do MBL, por exemplo), disse que chamar aquilo de golpe é "fantasia para legitimar a polarização". Segundo Caio, o golpe era o objetivo, como provam as chamadas nas redes ("tomada de poder"). Muitos dos manifestantes foram treinados (por quem? Quem custeou?) e estavam armados, mas o que eles queriam era forçar uma intervenção militar. Queriam o GLO, os tanques nas ruas, não para tirá-los dos prédios dos Três Poderes, mas para tirar Lula do poder e reinstalar Bolsonaro.  

A vereadora Luna Zarattini (PT-SP) explica bem alguns acontecimentos de 8 de janeiro, como o bate-boca entre Flavio Dino e um general que não aceitava que os golpistas fossem presos  

O secretário nacional de Políticas Digitais, João Brant, analisa que as plataformas de redes sociais e de aplicativos, as chamadas big techs, contribuíram para a tentativa de golpe e não fizeram nada para combater a difusão de mentiras contra a democracia desde então. Brant tem razão: "Não se explica a adesão ao 8 de janeiro sem três ondas de desinformação, entre 2021 e 2022, que sustentaram e disseminaram a ideia de uma eleição 'fraudada' aproveitando 'falhas de segurança' das urnas eletrônicas e de 'manipulação' do TSE".

Na segunda houve manifestações em várias cidades do país rechaçando a tentativa de golpe. Não houve celebrações dos golpistas. Lembram que os vereadores de Porto Alegre instituíram em julho do ano passado o 8 de janeiro como o Dia do Patriota, para comemorar o golpe? O STF depois revogou a lei, e o vereador bolsonarista autor dessa aberração foi cassado (não por isso, mas por abuso de poder econômico). 

Num ato político intitulado Democracia Inabalada em Brasília na segunda, Lula discursou: "Todos aqueles que financiaram, planejaram e executaram a tentativa de golpe devem ser exemplarmente punidos. Não há perdão para quem atenta contra a democracia, contra seu país e contra o seu próprio povo. O perdão soaria como impunidade. E a impunidade, como salvo conduto para novos atos terroristas". 

Até agora, a Suprema Corte condenou 30 pessoas por participação direta na tentativa do golpe. 150 acusados aguardam julgamento, e há 1.345 processos em aberto contra os participantes do ato. Porém, 
provando como a Justiça é lenta, nenhum dos peixes grandes foi punido. Eu ainda tenho fé que serão. Cada dia que Bolsonaro permanece solto é uma risada de escárnio na cara da democracia brasileira.