terça-feira, 31 de agosto de 2021

QUEM VOTOU EM BOLSO OU NULO É RESPONSÁVEL PELO DESASTRE

Reproduzo aqui o texto da advogada e jornalista Lygia Jobim, filha de José Jobim, diplomata assassinado pelo regime militar.  

A informação trazida pelo repórter Johanns Eller e divulgada pelo blog de Malu Gaspar, no último dia 29, de que a procura na internet por uniformes militares aumentaram quatro vezes, durante o mês de agosto, quando comparada com meses anteriores, constitui um fato da mais alta gravidade.

Que isto aconteça às vésperas das manifestações incentivadas por Bolsonaro para o 7 de setembro, manifestações com viés claramente golpistas, faz com que se acenda uma luz vermelha. Seus seguidores, não escondem que o objetivo das mesmas é instaurar o caos, defendendo inclusive a invasão do Supremo Tribunal Federal.

O uso das fardas nas manifestações desse dia está sendo incentivado através de grupos de WhatsApp e das redes sociais por essa mesma corja de baderneiros antidemocráticos. Assim ficaria caracterizado o “exército” de Bolsonaro, prontos para se transformarem nas S.A. tupiniquins e instalarem o terror e tentar impedir a resistência.

Não podemos esquecer que grande parte dos manifestantes estarão armados – o que vem sendo, desde 2019, incentivado pelo psicopata que nos governa através, não só de portarias e decretos que facilitam sua aquisição e porte, como através de declarações do tipo “um povo armado jamais será escravizado”.

Na outra ponta temos uma grande parte de nossa população que não consegue comprar feijão nem fuzis. Sabendo que violência gera violência temo que talvez se achem no direito de, não tendo armas, pegar em paus e pedras para conseguir matar sua fome. Afinal, um povo sem fome também jamais será escravizado...

Tudo isto não passa de um preâmbulo para o que realmente interessa. Responsáveis pelo caos que possa ocorrer são todos aqueles que deixaram um psicopata nazista, que nunca escondeu seu racismo, sua misoginia, sua homofobia, sua falta de empatia, respeito ao próximo e perversidade ser eleito.

Quando digo todos quero dizer todos os que não apertaram o 13 nas urnas. Os que se omitiram porque “não gosto do PT”, os que não se omitiram “para o Haddad não ganhar”.

Entenda: você que acreditou que o MST tinha um exército armado, você que se esqueceu que o Muro de Berlin há muito havia caído, você é responsável. Você é diretamente responsável por tudo o que já aconteceu e o que ainda vai acontecer até este homem deixar o poder. Você é individualmente responsável pelas mortes desnecessárias por Covid-19. Cada vidraça quebrada, seja por quem for, terá a sua digital. Cada olho vazado e cada morte que ocorrer terá sido pelo gatilho que você, através de outra mão, apertou.

Você pariu Mateus, mas não o embalará a não ser na sua consciência. No seu seguro lugar de conforto continuará a assistir o drama que o país vive com seus 580.000 mortos e as violências que já estão na esquina, como se assistisse a um seriado na TV.

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

O GOLPE VEM AÍ?

São vários assuntos. Em primeiro lugar, um registro do nosso desânimo.

O Fantástico, através do repórter Guilherme Belarmino (nos tornamos amigos depois do Profissão Repórter em 2015), fez uma ótima reportagem mostrando como o presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, não faz nada além de perseguir servidores, hostilizar os movimentos negros, e redigir tuítes para lacrar na extrema-direita.

Ou seja, está fazendo seu trabalho. Foi colocado na Fundação (pelo plagiador de Goebbels, o Alvim) para fazer exatamente isso. E, quando sair, terá que fugir do país, como tantos outros no pior governo de todos os tempos.

Eu coloquei no Twitter a indignação do maridão: "A gente não consegue nem tirar esse cara, vai tirar o presidente?!" E quase todo mundo concordou com ele.

Mas tem muita gente que resiste, claro. No fim de semana, uma intervenção artística espalhou lambe-lambes na Av. Faria Lima e na Av. Paulista sobre Paulo Guedes, o banqueiro imbecil elitista com doutorado que, junto a Bolso, já tem lugar garantido na lata de lixo da história.

E esta moça desafiou os vizinhos bolsonaristas com uma dança e a música "O arroz tá caro! O feijão tá caro! Traz de volta o Lula e mande embora o Bolsonaro". 

Dia 7 de setembro, que vem sendo anunciado como um test-drive golpista para o genocida, está chegando. O Recontaí expõe algumas das mentiras e delírios. O que o pessoal que adora uma ditadura quer é uma intervenção militar (golpe) com Bolso no poder. 

O excelente Boletim Ponto, do Brasil de Fato, resumiu bem:

A revolução dos bichos. A República começou a semana em polvorosa com a promessa de uma marcha de policiais sobre São Paulo no dia 7 de setembro. O movimento é puxado principalmente por policiais aposentados, financiados por setores do agronegócio e insuflados por pastores evangélicos.  A ameaça deve ser levada a sério, especialmente porque conta com a conivência das Forças Armadas, que convenientemente cancelaram seu desfile oficial do Dia da Independência. Porém, mais do que sinal de força, essa convocatória pode denunciar a fraqueza de Bolsonaro. A tempestade perfeita contra o capitão foi resultado de uma sucessão de blefes e derrotas: da PEC do voto impresso à prisão de Roberto Jefferson, passando pela sabatina de Braga Netto na Câmara e a desmoralização de Sérgio Reis. Mas Bolsonaro sabe que o pior dos mundos para um mito é a perda da fé de seus seguidores e por isso apela para seu último recurso: o uso da força. Com isso, talvez ele esperasse não ter mais que obedecer às decisões do STF ou inviabilizar a chegada de Alexandre de Moraes à presidência do TSE. Mas mesmo que o pedido de impeachment contra o ministro do Supremo tenha sido arquivado por Rodrigo Pacheco, blindando ações mais ousadas contra o STF, o tom da reunião do Fórum dos Governadores, que defendeu o diálogo entre os poderes, mostra que ninguém está disposto a pagar para ver se o golpe é ou não é apenas mais um blefe.

Como não me canso de repetir, é possível haver um golpe como o boliviano. Não é necessário que as Forças Armadas deem o golpe. Basta que elas não façam nada para impedir a ação (fascista e violenta) de policiais militares, milicianos e outros bolsonaristas que, apesar da idade avançada, podem chegar fortemente armados. 

A Corregedoria da PM anda dizendo que tentará reprimir a presença de PMs fardados ou armados nos atos golpistas de 7 de setembro. Até porque a presença de PMs em manifestações político-partidárias é proibida pela Constituição. Mas será verdade que a PM fará alguma coisa?

O que temos de certo até agora são as bravatas do Capetão. No sábado, ele afirmou para líderes evangélicos em Goiânia que vê três opções no seu futuro: ser preso, morrer ou a vitória. Confesso que fiquei em dúvida quanto a minha preferência para o destino do Coisa Ruim.

Por isso criei uma pesquisa no Twitter. Mais de cinco mil pessoas da minha bolha vermelha responderam. Elas querem mesmo é que o "presida" usado para abreviar "presidente" seja usado pra descrever "presidiário". 
O melhor cenário é que Bolso e seu gado adestrado (cada vez menor) tente o golpe no próximo sábado, falhe miseravelmente, e vá direto pra cadeia. Mas pra que isso acontecesse, precisaríamos ter todas as instituições funcionando.

Temos?

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

QUEM COMPRA EM SUPERMERCADO CONSEGUE APOIAR BOLSONARO?

Semana passada Silvio e eu fomos ao supermercado e gastamos, estupefatos, 375 reais. Compartilhei essa informação no meu Twitter e acrescentei: "Tudo bem que 100 foi em ração de gato, mas ainda assim... Tá tudo caríssimo! A gente não come carne bovina faz tempo, só frango e ovos -- que aumentaram pra caramba! Como alguém que compra em supermercado pode apoiar o Bolso?"

Um montão de gente bacana que me segue concordou, colocou quanto gasta a cada ida de supermercado, comparou preços, apontou o que todo mundo vem sentindo (uma enorme alta dos alimentos e o aumento da inflação, que foi quase 9% nos últimos doze meses, e que vários especialistas preveem que vá alcançar os dois dígitos logo). Mas um carinha que não conheço (embora já bloqueava) decidiu me atacar gratuitamente. Ele escreveu: "O típico elitismo da esquerda acadêmica que quer fazer cosplay de pobre enquanto o povo (povo mesmo!) está passando fome. Ganha R$11mil por mês, gasta R$100 com ração de gato e 'só' come frango e ovos". 

Só fiquei sabendo desse ataque de pelanca um dia depois, através de um motoboy de treta. Fui ao perfil dele e percebi de cara que era um cirista. Quem está no Twitter sabe que Ciro Gomes (não tão carinhosamente apelidado de Cinco Gomes ou Six Gomes, dependendo da pesquisa) vem investindo pesado no seu gabinete do ódio particular. Muitas vezes os cirobots só ficam devendo aos bolsobots em volume, porque a tática de vasculhar as redes sociais dos desafetos e tentar destrui-los é a mesma. 

No penúltimo parágrafo eu escrevi "atacar gratuitamente", mas não é gratuito. Não é picuinha, não é pessoal. É orquestrado. Eles têm seus alvos, e eu sou um deles faz tempo, já que nunca gostei do Ciro. Nesse caso, alguém da campanha dele achou que, na falta de coisa melhor, dava pra destacar o meu tuíte sobre supermercado. Um outro abriu uma conta com o único intuito de colocar um print do meu salário no Portal da Transparência (a conta foi apagada poucos dias depois). Um dos coordenadores, se não me engano um pastor, deu RT no tuíte com o print, e pronto, outros receberam a pauta.

Não foi exatamente uma ação bem sucedida, pois a imensa maioria das pessoas que comentaram o tuíte do "fiscal de salário", como o carinha foi chamado, acharam um absurdo a pegação no meu pé, explicaram que em nenhum momento eu disse que não podia comprar carne bovina, indagaram se classe média pode ter gatos, e, se pode, se deve alimentá-los, lembraram que 11 mil reais, apesar de ser um salário muito acima da média brasileira, ainda assim está longe de ser salário de rico, e, principalmente, perguntaram quanto tinham que ganhar pra ter o direito de reclamar dos preços no supermercado na sua rede social.

Creio que meu tuíte foi bem simples e auto-explicativo. Na minha Timeline, a discussão descambou pra quanto se gasta com animais domésticos. Algumas pessoas, brincando, quiseram saber como eu gastava tão pouco com meus quatro gatinhos. Em geral eles comem dois sacos de 3 quilos de ração por mês, que a gente compra quase sempre uma vez por mês. É ração comprada em supermercado (Whiskas, Friskies, Qualita), nada de luxo, mas o preço aumentou uma barbaridade (na semana anterior, no mesmo supermercado, a Whiskas 3 kg de carne para gato castrado estava em R$ 45; uma semana depois, tinha subido pra R$ 59!). 

Sei que essas rações não são boas, mas eu já tentei comprar uma que é considerada melhor, a Golden, e uma dos quatro gatos não gostou. Muita gente pontuou que vale a pena comprar saco de dez quilos (eu sei, minha vizinha compra). Trocamos ideias de como armazenar esse volume (a ração não fica menos fresca ao ser aberta?). Essas coisas bacanas e úteis que a gente faz no Twitter.

Desde 1997, eu anoto tudo que ganho e gasto. Creio que só assim é possível ter controle das finanças. Dessa forma, sei que em 2020 gastamos em compras de supermercado (o que inclui tudo menos algum creminho que eventualmente compramos em farmácia) um total de R$ 14.540, uma média de 1.212 por mês. Acho isso muito, muito alto pra um casal sem filhos. Em 2019, gastamos R$ 980  por mês. Em 2018, 928. Em 2017, 907. Este ano, até agora, a média não está tão diferente da do ano passado: são R$ 1.228 por mês.

Mas passamos por algumas mudanças alimentares. Por exemplo, barra de chocolate, meu vício, a gente agora só compra ocasionalmente, pra fazer algumas receitas. Carne bovina, que costumávamos consumir moída, de segunda (músculo), paramos. Desde novembro, passamos a fazer nossa própria mussarela caseira (faça você também: você transforma 200 gramas de mussarela em quase 2 quilos). Nossa maior mudança foi ter adquirido uma Air Fryer, em julho do ano passado. Vale muito a pena! Reduzimos nossa encomenda de comida pela metade (na realidade, é uma pizza em promoção por semana. Antes da Air Fryer eram duas). E a sobrecoxa de frango na fritadeira elétrica sem óleo fica tão incrível que a gente não se cansa de comer isso quase todo dia. 

Não sei se dá pra ver daí, mas nosso cardápio do dia a dia está longe de ser luxuoso. E, mesmo assim gastamos mais de R$ 1.200 por mês! Não consigo parar de imaginar o que os 19 milhões de pessoas em situação de fome (dois anos atrás eram 10 milhões), ou as milhões de pessoas recebendo R$ 300 de auxílio-emergencial, estão comendo. Ou melhor, não estão comendo.  

Quero dizer, até posso, porque a mídia de vez em quando noticia: fragmentos de arroz e feijão, pé e pescoço de frango, e doações de ossos de carne. Tudo cozinhado à lenha, por que desde quando quem sobrevive com 300 reais (ou mesmo com um salário mínimo de R$ 1.100) pode pagar mais de 100 por um botijão de gás?

Não consigo imaginar, sinceramente, qualquer pessoa votando neste governo da morte. Um governo cujo chefe maior, um genocida golpista medíocre, disse hoje mesmo que é preferível comprar fuzil que feijão, e que, mês passado, sua secretaria de comunicação divulgou uma arte comemorativa do Dia do Agricultor com uma homenagem aos capangas do campo, os Lázaros da vida. 

É óbvio que o Brasil não era nenhum oásis antes do golpe de 2016, antes das catastróficas eleições de 2018, antes de 2020, em que passamos a contar com a mais corrupta e incompetente liderança do mundo para lidar com a pior crise sanitária do planeta em mais de cem anos. Mas basta comparar o Brasil de hoje com o de alguns anos atrás pra medir o tamanho da destruição. 

Nunca vou me conformar. Nem perdoar. Já entender por que cirista defende Bolsonaro, eu até entendo. Não acho muito ético ou eleitoralmente eficaz, mas entendo.
Grande Cris Vector!

UPDATE:
Reportagem do Fantástico deste domingo mostrou que milhões de brasileiros estão mais pobres, mesmo os "privilegiados" que continuamos empregados durante a pandemia. A inflação de 9,30% corrói os salários: a conta de luz subiu 21% nos últimos 12 meses; gasolina, 40%; arroz, 36%, gás de cozinha, 31%. Claro que essa alta impacta muito mais as famílias mais pobres. Vão culpar quem? O PT que não está no governo há cinco anos? A pandemia que o governo genocida nega?

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

O VALOR LITERÁRIO DO ESCAPISMO

Publico hoje um excelente texto da escritora e fã de ficção científica Lady Sybylla. Ela o publicou no seu blog, Momentum Saga

Os fãs de ficção especulativa (ficção científica, fantasia e terror e todos os seus subgêneros) já ouviram várias vezes que suas leituras favoritas são "apenas escapismo". Não só isso, estamos também acostumadas a ver os grandes prêmios literários preterirem obras que se encaixam neste gênero para aquelas consideradas "literárias", que tenham mérito, ou então eles criam categorias de "entretenimento" para encaixar obras de FC, fantasia e horror (os outros são chatos, então?). Na academia não é muito diferente. Grupos de estudos se debruçam sobre obras literárias que fujam de qualquer ligação com as "ficções especulativas". A elite literária e acadêmica continua repetindo a questão do escapismo dessas obras. Enfim, a hipocrisia.

A ficção, toda ela, é por definição uma construção de eventos, lugares e indivíduos irreais e imaginados. Eles podem ser inspirados em eventos, lugares e indivíduos reais, mas nunca serão, fenomenologicamente reais. A mentira é a base e a premissa para a ficção, já dizia nossa saudosa Ursula K. Le Guin que dizia que a função do romancista é mentir. Se um trabalho de ficção conta uma história real, ele passa a ser de não ficção.

Todo e qualquer trabalho de ficção transporta aqueles que o leem para mundos que, apesar de parecerem com a realidade ou de terem semelhanças com a realidade, não são a própria realidade. Para que possamos mergulhar e usufruir do texto ficcional é preciso nos desconectar dos fenômenos reais e da contemporaneidade. É preciso suspender nossa descrença para viajar na ficção.

Quando uma leitora pega um livro como Dom Casmurro, existe um limite bem nítido entre a contemporaneidade da leitora e sua realidade com a realidade do texto. Bentinho nos conta suas histórias e desventuras, em um Rio de Janeiro do século XIX. Não importa que a cidade do Rio de Janeiro exista de fato. A cidade de Bentinho está longe de nossa realidade, de nossa contemporaneidade e também da realidade de críticos literários e acadêmicos. Ao mergulhar no livro que é baseado em uma cidade real, ela ainda está situada em um tempo e contexto específicos -- o século XIX. Estamos escapando de nossa realidade contemporânea, de nossa realidade fenomenológica e entrando em um universo ficcional criado por Machado de Assis.

Este escapismo de Dom Casmurro não é diferente do escapismo oferecido por Guerra do Velho, de John Scalzi. É uma realidade diferente da nossa, que sai da Terra e se passa no espaço e em outros planetas, em naves espaciais, mas que discute guerra, política e sociedade, além dos dilemas humanos. É um mundo totalmente ficcional, mas com as mesmas idiossincrasias de nossa realidade, com alienígenas e sobre-humanos atuando em situações familiares. De novo somos transportadas para uma realidade largamente diferente da nossa ao mergulharmos no texto, escapando de nossa contemporaneidade.

Quem tenha preconceito com a ficção especulativa ao ler um livro como esse do Scalzi vai ignorar os comentários tecidos pelo autor sobre guerra, política e sociedade, focando apenas nas naves estelares e nos planetas exóticos. Estes temas podem ser bem mais metaforizados na figura de alienígenas e situações extremas em um ambiente espacial, mas não significa que não estejam presentes.

Ou seja, não há nenhuma diferença entre transportar as leitoras para as ruas do Rio de Janeiro do século XIX ou para os planetas da União Colonial. Para nós no século XXI não há outra maneira de mergulhar nestes lugares sem a ficção. O Rio de Janeiro de Bentinho é tão ficcional para nós quando o planeta Phoenix, sede da União Colonial de Scalzi. Qualquer trabalho de ficção, por mais próximo da realidade que ele seja, não é real; são construtos da imaginação, são criações das mentes daqueles que as escrevem.

É aqui que chegamos à hipocrisia do escapismo e o que prejudica muito a ficção especulativa de ser reconhecida como alta literatura. Se um livro fala de um dilema político e social situado nas ruas de São Paulo dos anos 1990 ele é tido como alta literatura. Se o livro fala dos mesmos dilemas políticos e sociais, mas ele se passa em um planeta orbitando Próxima Centauri, é tido como "ficção de gênero" e jogado na gaveta da "literatura de entretenimento". Críticos e acadêmicos se aproximam de textos literários como Dom Casmurro ignorando seus elementos escapistas, mas não fazem o mesmo com um livro como A Mão Esquerda da Escuridão. Se o livro se passa em outro planeta, de repente não tem valor literário.

É óbvio que ficção especulativa pode ser lida apenas por seu escapismo. Mas esse escapismo é julgado como uma tola frivolidade por aqueles que não consideram a ficção especulativa como algo sério. Ao encarar o texto como apenas entretenimento, eles estão perdendo as grandes discussões do nosso mundo envelopados em raças alienígenas, monstros, planetas e universos paralelos. Uma história é uma série de eventos imaginados intercalados de maneira a evocar o prazer da leitura, do entretenimento, da reflexão. Não importa se é pelas ruas de São Paulo ou à bordo de uma nave espacial.

Usar apenas o escapismo para criticar a ficção especulativa é ser reducionista e elitista, já que qualquer trabalho ficcional é escapista por definição e natureza. Se críticos e acadêmicos dessem a atenção necessária a esses textos como dão para ficções literárias, descobririam que o mundo fantástico tem muito mais a oferecer do que apenas fadas, duendes e alienígenas. Todos os trabalhos ficcionais são escapismo e se forem tratados como tal, talvez o preconceito com esse tipo de literatura diminuísse e, quem sabe, começasse a ser tratado com o mesmo respeito com que outros gêneros são.