Tem um monte de coisa acontecendo e estou dando muitas entrevistas sobre o caso do gamer que matou Sol. Não estou dando conta! Mas a parte boa é que as/os jornalistas compartilham bastante informação que sabem comigo, e eu compartilho tudo com a delegada do caso. Afinal, todos nós queremos entender e ajudar a elucidar este terrível feminicídio.
Hoje publiquei um artigo na Carta Capital. Reproduzo parte dele aqui:
Um crime hediondo e ao mesmo tempo aparentemente fútil e inexplicável ocorreu em São Paulo na última segunda à tarde, chocando o país: Guilherme, de 18 anos, matou uma colega gamer, Ingrid, apelido Sol, de 19 anos. Havia um mês que eles tinham se conhecido na internet. Ela foi à casa onde ele morava, e ele a matou com faca e espada. Filmou seu corpo ensanguentado e, no vídeo, exclamou “Olha que maravilha!” Ia se suicidar, mas foi convencido pelo irmão a se entregar à polícia. Está preso.
Às 23:09 da noite de segunda, recebi um e-mail supostamente de Guilherme (de quem eu nunca tinha ouvido falar), com o título “Um ato louvável de Asmodeus”, com quatro links – três de vídeos curtos em que ele se orgulha de ter assassinado Sol, e um com um “livro” de 52 páginas – e um texto que já mostrei aqui. Por que eu, uma professora universitária de meia idade que não entende nada de games, recebi tal email?
Pode ser porque Guilherme tinha fé que eu divulgasse sua obra, já que, como ele escreveu, "para a minha pessoa o importante é toda a humanidade ler esse meu livro". Porém, mais provável é que, como tantos frequentadores de chans (fóruns anônimos) misóginos, ele me conhecia, de tanto que seus amigos virtuais falam de mim (nunca positivamente).
Por ser ativista feminista e ter um blog desde 2008, há pelo menos uma década sou ameaçada e atacada por rapazes de extrema-direita que não odeiam apenas mulheres, mas também negros e pessoas LGBT. Odeiam o mundo, pra falar a verdade. Quase sempre levam vidas miseráveis, sem estudos, sem emprego, sem namorada, sustentados pelos pais, mais especificamente pela mãe. Sentem-se acolhidos em espaços tóxicos e anônimos, em que podem compartilhar seu ódio e fantasias. Uma recorrente é sequestrar alguma menina, prendê-la num porão, estuprá-la e torturá-la até a morte, só pela diversão, só pra demonstrar poder, só pra poder dizer “Olha que maravilha” pros confrades. Outra é cometer massacre numa escola. Engana-se quem pensa que são todos jovens como Guilherme, ou ainda mais novos. Há muito marmanjo de 30, 40 anos. Eu li o “livro” de Guilherme. É uma bobagem genérica em que ele se diz uma pessoa boa, planeja um “ataque contra o cristianismo”, sem entrar em detalhes, lamenta ser dependente da mãe, ao mesmo tempo que considera obrigação dela sustentá-lo, e deixa escapar seu rancor por não conhecer o pai biológico ("Se eu tivesse a capacidade de criar leis, uma das primeiras seria: Em caso de abandono de seu filho(a) você estará sujeito a pena perpétua a caminho da pena de morte. A justiça deveria exterminar todos os pais que abandonam seus filhos"). O que se vê no resto do livro é uma decepção amorosa muito grande ("Eu não amo ninguém, a única coisa que amo é a minha missão neste planeta"), um ódio à humanidade (“Eu odeio profundamente essa humanidade, se eu tivesse a capacidade, eu queimava todos, isso é um sonho, ver todos os humanos queimando e gritando, quando eu penso nisso eu me sinto muito bem"), o apreço pelos “soldados” “nesta caminhada” (“Se eles tivessem alguns recursos, como por exemplo armamento pesado, de fato a nossa comunidade daria início a terceira guerra mundial, com o intuito de exterminar a humanidade deste planeta, nós iria matar sem dó e nenhuma piedade"), e uma insistência que ele é mentalmente são ("Cheguei a um nível magnífico onde consigo manter o controle e o equilíbrio entre o meu cérebro e o meu emocional”). Sim, nota-se o nível magnífico de controle e equilíbrio.
Por que Guilherme matou Sol? Não sabemos. Talvez só porque algum channer o desafiou a fazer isso. Talvez porque Sol “atravessou o seu caminho”, como ele disse. Tem toda pinta de ter sido premeditado.
Ontem recebi um outro email “denunciando” que o tal Crazychan que Guilherme menciona seria “um grupo de whatsapp liderado por um adolescente de 14 anos que atua pelo nickname de EPYSP. Este rapaz sonha em se tornar uma figura conhecida na internet, e então recruta as piores pessoas para o grupo dele: crianças de 10-12 anos, e faz com que elas consumam pornografia infantil e divulguem o dia inteiro no grupo de whatsapp dele".
À noite, como que para complementar a descrição, um covarde me ligou para me ameaçar: se eu não tirasse a menção ao Crazychan do meu blog, ele iria me matar. Pedi pra falar com a mãe dele. Eu queria perguntar se ela sabe que seu filho passa a vida ameaçando mulheres na internet.
Outra informação que tive, e que passei imediatamente à delegada que investiga o caso, refere-se a um post publicado no Firechan, uma extensão do Dogolachan (o criador desse chan foi preso em 2018 e condenado a 41 anos de prisão por vários crimes como racismo, terrorismo, associação criminosa e pedofilia).
Um tal de “Ghostfag” se apresentou como mentor de Guilherme, que pensava que o jovem gamer iria cometer um ato terrorista como bombardear uma escola ou igreja em vez de matar uma “vadia e-girl”. Conta Ghostfag: “Decidi ajudar já que há tempos não temos um sacrifício decente ao recinto, qualquer tentativa de obter um pouco de sangue para destravar as engrenagens da máquina do ódio é sempre bem-vinda”. De acordo com o “mentor”, Guilherme parecia apaixonado por Sol, mas iria matá-la caso ela “desistisse” de cometer o ato na igreja com ele.
Ghostfag termina: “Guilherme é nosso irmão, soldado que jamais deve ser esquecido! Tenho orgulho de poder participar de um momento tão lindo no recinto confrades, saibam que a luta continua, por mais que os tempos sejam obscuros a palavra de Kyo segue com força total na mente dos nossos jovens dogoleiros! Não há judeu, feminista ou esquerdista que possa nos deter”.
Leia o restante do meu artigo na Carta Capital.