No final de semana retrasado, uma jornalista da Folha de S. Paulo me enviou um email pedindo minha opinião sobre a série de livros iniciados com Cinquenta Tons de Cinza (várias de vcs já tinham me pedido isso também). Eu, sempre atrasada, mal sabia que a trilogia da britânica E. L. James já vendeu 31 milhões de exemplares só em inglês e foi traduzida para 37 línguas. 50 Tons será lançado no Brasil amanhã, numa primeira edição de 200 mil cópias. A Marie Claire tá promovendo concurso cultural, o livro já ganhou capas e reportagens de revistas -– enfim, o hype é grande.
Só pra resumir pra quem não conhece, Fifty Shades of Grey foi escrito por uma ex-executiva de TV e atual dona de casa de meia idade (estranho que essas descrições nunca são importantes quando o escritor é homem), e trata de Anastasia, uma universitária americana, virgem e bobinha, e seu relacionamento com um jovem e difícil bilionário, Christian Grey (o “50 tons de cinza” faz um trocadilho com seu sobrenome, Grey), que a convida para que ela seja sua escrava sexual durante alguns meses. Por conta das descrições explícitas das cenas de sexo, o livro vem sendo considerado “pornô para mulheres”, principalmente para mães e donas de casa na faixa etária da autora.
Eu tentei ler o livro rapidinho e enviei essas linhas pra Folha:
Apesar do sucesso da trilogia, eu não conhecia 50 Tons de Cinza. Li apenas o primeiro volume, em algumas horas, correndo. Está, de fato, muito mal escrito. Se o livro tivesse apenas longos contratos, diálogos e emails entre Anastasia e Christian Grey, e descrições sexuais em terceira pessoa, seria mais fácil de engolir. É altamente irritante o que Ana “pensa”, que consiste basicamente em apelar para sua “deusa interior”, repetir como Christian é lindo, e usar e abusar de três expressões, presentes em todas as páginas do livro (“Holy crap”, e às vezes apenas “Crap”, “Holy cow”, e “Holy hell”). Depois do trigésimo “Holy alguma coisa”, a gente fica torcendo para que Christian utilize sua experiência sado-masô e amordace a narradora Ana.
Não vejo grandes semelhanças entre 50 Tons e Crepúsculo. Precisamos parar de comparar todos os livros ou filmes feitos para o público feminino com Crepúsculo! [Atenção: leitoras informaram que 50 Tons começou sendo escrito como fanfiction de Crepúsculo]. Christian é um stalker cheio de problemas, assim como Edward, mas acaba aí. Não existe triângulo amoroso em 50 Tons, assim como não existe sexo explícito em Crepúsculo.
O livro mistura amor romântico com sexo explícito, e claramente existe um grande mercado feminino pra esse tipo de literatura que, imagino, daqui pra frente será melhor explorado. Não creio que o principal atrativo do livro para as leitoras seja o universo sadomasoquista. Ele funciona apenas como uma justificativa para que seja apresentado um tipo de sexo minimamente mais transgressor. Mas os ingredientes básicos de qualquer história para o público feminino (e sim, é terrível que ainda acreditemos em príncipes encantados) estão ali: a heroína virgem e o milionário (que, por conta da inflação, vira bilionário). Christian Grey quer que Ana seja sexualmente submissa a ele, mas é ela que vai domar seu coração.
Agora, não concordo em desmerecer a trilogia porque ela foi escrita por uma mulher (E. L. James) para mulheres. É o que a mídia faz sempre, como se, sei lá, Transformers, feito para meninos, fosse algo superior. Se 50 Tons fizer com que suas leitoras alimentem novas fantasias eróticas ou reacendam a vida sexual no casamento, dou todo o meu apoio. Pelo menos o orgasmo feminino aparece frequentemente na trilogia, embora muito menos que os “Holy crap” da narradora.
Hoje saiu um curto artigo na Folha, “Água, Açúcar e Algemas”, em que eu sou citada neste trecho:
“As feministas não têm respondido nada bem. É que além de amordaçar Anastasia na cama, Christian Grey controla seus passos e sua dieta, exige que ela o chame de senhor, esteja sempre depilada e pronta para o sexo.
Mas Lola Aronovich, professora de literatura e autora do blog feminista 'Escreva, Lola, Escreva', não acha que o livro seja machista: 'Se ele faz com que as leitoras alimentem novas fantasias eróticas ou reacendam a vida sexual no casamento, apoio. Pelo menos o orgasmo feminino é frequente na trilogia'.
A pedra no sapato não é tanto o feminismo, mas as acusações de que a série é só um plágio picante de 'Crepúsculo'.”
Quer dizer, eu não disse se o livro é ou não machista, até porque ninguém perguntou. Um cenário de BDSM (Bondage e Disciplina, Dominação e Submissão, Sadismo e Masoquismo) em que uma mulher é submissa (sub) de um dom é machista? (Leitoras praticantes de sadomasô ainda estão me devendo um guest post relacionando como é ser feminista e sub). Não necessariamente, né? Aquilo é uma fantasia sexual, um jogo com muitas coisas acertadas previamente, safe words (senhas pra parar no momento em que a sub quiser parar)...
Embora Ana seja irritantemente estúpida, é ela quem controla a narração da história. E, pelo menos no primeiro livro (tenho muito pouca vontade de ler os dois outros), é Christian que está “dominado”, correndo atrás dela, implorando para que ela aceite o acordo. Mas só isso não faz do livro machista ou feminista, ou nenhuma das alternativas anteriores.
O que mais me interessa é a recepção ao livro. O que o sociológo disse na matéria da Folha, se é que alguém realmente diz aquilo que lhe é atribuído numa matéria (“As mulheres sofrem hoje uma crise de excesso de controle. Precisam ter controle sobre a carreira, a casa, os filhos. Natural que a vontade de se submeter ao controle de outro surja como fantasia sexual, sem significar um retorno ao machismo"), eu já ouvi de mascus: que 50 Tons mostra o que a mulher realmente quer, que é ser dominada e controlada por um macho alfa.
Gente, quanta besteira. Sem levar em consideração os mascus, que têm imensas dificuldades de diferenciarem vida real de ficção (eles têm certeza que Cisne Negro é um documentário sobre o lado obscuro da mulher!), é preciso ficar com um pé atrás sempre que a mídia pega um fato isolado (o sucesso editorial de um livro, no caso) para determinar que estamos diante de uma tendência.
Estamos? Mesmo? Mulheres estão querendo ceder controle sexual aos seus parceiros para compensar a atitude de “estar no comando” que levamos no nosso dia a dia? Pra começar, a própria ideia de que alcançamos a igualdade e de que estamos no comando contradiz a dura realidade de que apenas 5% das cem maiores empresas brasileiras são comandadas por diretoras, ou de que só 1% de toda a propriedade no mundo pertence a mulheres.
Depois que tenho minhas dúvidas que legiões de mulheres estejam correndo a sex shops para comprar algemas, chicotinhos, cordas, vendas para tapar os olhos, e sei lá mais o quê. O livro parece proporcionar uma oportunidade para que o público feminino leia cenas de sexo, não tanto cenas de BDSM. Lógico, há muitos livros eróticos (recomendo fortemente o clássico O Amante de Lady Chatterley, de D. H. Lawrence), e imagino que mais bem escritos. Mas 50 Tons conseguiu a façanha de virar onda. Eu posso não gostar do livro, mas tem muita mulher apimentando sua vida sexual por causa dele. E isso não é ruim.
Só pra resumir pra quem não conhece, Fifty Shades of Grey foi escrito por uma ex-executiva de TV e atual dona de casa de meia idade (estranho que essas descrições nunca são importantes quando o escritor é homem), e trata de Anastasia, uma universitária americana, virgem e bobinha, e seu relacionamento com um jovem e difícil bilionário, Christian Grey (o “50 tons de cinza” faz um trocadilho com seu sobrenome, Grey), que a convida para que ela seja sua escrava sexual durante alguns meses. Por conta das descrições explícitas das cenas de sexo, o livro vem sendo considerado “pornô para mulheres”, principalmente para mães e donas de casa na faixa etária da autora.
Eu tentei ler o livro rapidinho e enviei essas linhas pra Folha:
Apesar do sucesso da trilogia, eu não conhecia 50 Tons de Cinza. Li apenas o primeiro volume, em algumas horas, correndo. Está, de fato, muito mal escrito. Se o livro tivesse apenas longos contratos, diálogos e emails entre Anastasia e Christian Grey, e descrições sexuais em terceira pessoa, seria mais fácil de engolir. É altamente irritante o que Ana “pensa”, que consiste basicamente em apelar para sua “deusa interior”, repetir como Christian é lindo, e usar e abusar de três expressões, presentes em todas as páginas do livro (“Holy crap”, e às vezes apenas “Crap”, “Holy cow”, e “Holy hell”). Depois do trigésimo “Holy alguma coisa”, a gente fica torcendo para que Christian utilize sua experiência sado-masô e amordace a narradora Ana.
Não vejo grandes semelhanças entre 50 Tons e Crepúsculo. Precisamos parar de comparar todos os livros ou filmes feitos para o público feminino com Crepúsculo! [Atenção: leitoras informaram que 50 Tons começou sendo escrito como fanfiction de Crepúsculo]. Christian é um stalker cheio de problemas, assim como Edward, mas acaba aí. Não existe triângulo amoroso em 50 Tons, assim como não existe sexo explícito em Crepúsculo.
O livro mistura amor romântico com sexo explícito, e claramente existe um grande mercado feminino pra esse tipo de literatura que, imagino, daqui pra frente será melhor explorado. Não creio que o principal atrativo do livro para as leitoras seja o universo sadomasoquista. Ele funciona apenas como uma justificativa para que seja apresentado um tipo de sexo minimamente mais transgressor. Mas os ingredientes básicos de qualquer história para o público feminino (e sim, é terrível que ainda acreditemos em príncipes encantados) estão ali: a heroína virgem e o milionário (que, por conta da inflação, vira bilionário). Christian Grey quer que Ana seja sexualmente submissa a ele, mas é ela que vai domar seu coração.
Agora, não concordo em desmerecer a trilogia porque ela foi escrita por uma mulher (E. L. James) para mulheres. É o que a mídia faz sempre, como se, sei lá, Transformers, feito para meninos, fosse algo superior. Se 50 Tons fizer com que suas leitoras alimentem novas fantasias eróticas ou reacendam a vida sexual no casamento, dou todo o meu apoio. Pelo menos o orgasmo feminino aparece frequentemente na trilogia, embora muito menos que os “Holy crap” da narradora.
Hoje saiu um curto artigo na Folha, “Água, Açúcar e Algemas”, em que eu sou citada neste trecho:
“As feministas não têm respondido nada bem. É que além de amordaçar Anastasia na cama, Christian Grey controla seus passos e sua dieta, exige que ela o chame de senhor, esteja sempre depilada e pronta para o sexo.
Mas Lola Aronovich, professora de literatura e autora do blog feminista 'Escreva, Lola, Escreva', não acha que o livro seja machista: 'Se ele faz com que as leitoras alimentem novas fantasias eróticas ou reacendam a vida sexual no casamento, apoio. Pelo menos o orgasmo feminino é frequente na trilogia'.
A pedra no sapato não é tanto o feminismo, mas as acusações de que a série é só um plágio picante de 'Crepúsculo'.”
Quer dizer, eu não disse se o livro é ou não machista, até porque ninguém perguntou. Um cenário de BDSM (Bondage e Disciplina, Dominação e Submissão, Sadismo e Masoquismo) em que uma mulher é submissa (sub) de um dom é machista? (Leitoras praticantes de sadomasô ainda estão me devendo um guest post relacionando como é ser feminista e sub). Não necessariamente, né? Aquilo é uma fantasia sexual, um jogo com muitas coisas acertadas previamente, safe words (senhas pra parar no momento em que a sub quiser parar)...
Embora Ana seja irritantemente estúpida, é ela quem controla a narração da história. E, pelo menos no primeiro livro (tenho muito pouca vontade de ler os dois outros), é Christian que está “dominado”, correndo atrás dela, implorando para que ela aceite o acordo. Mas só isso não faz do livro machista ou feminista, ou nenhuma das alternativas anteriores.
O que mais me interessa é a recepção ao livro. O que o sociológo disse na matéria da Folha, se é que alguém realmente diz aquilo que lhe é atribuído numa matéria (“As mulheres sofrem hoje uma crise de excesso de controle. Precisam ter controle sobre a carreira, a casa, os filhos. Natural que a vontade de se submeter ao controle de outro surja como fantasia sexual, sem significar um retorno ao machismo"), eu já ouvi de mascus: que 50 Tons mostra o que a mulher realmente quer, que é ser dominada e controlada por um macho alfa.
Gente, quanta besteira. Sem levar em consideração os mascus, que têm imensas dificuldades de diferenciarem vida real de ficção (eles têm certeza que Cisne Negro é um documentário sobre o lado obscuro da mulher!), é preciso ficar com um pé atrás sempre que a mídia pega um fato isolado (o sucesso editorial de um livro, no caso) para determinar que estamos diante de uma tendência.
Estamos? Mesmo? Mulheres estão querendo ceder controle sexual aos seus parceiros para compensar a atitude de “estar no comando” que levamos no nosso dia a dia? Pra começar, a própria ideia de que alcançamos a igualdade e de que estamos no comando contradiz a dura realidade de que apenas 5% das cem maiores empresas brasileiras são comandadas por diretoras, ou de que só 1% de toda a propriedade no mundo pertence a mulheres.
Depois que tenho minhas dúvidas que legiões de mulheres estejam correndo a sex shops para comprar algemas, chicotinhos, cordas, vendas para tapar os olhos, e sei lá mais o quê. O livro parece proporcionar uma oportunidade para que o público feminino leia cenas de sexo, não tanto cenas de BDSM. Lógico, há muitos livros eróticos (recomendo fortemente o clássico O Amante de Lady Chatterley, de D. H. Lawrence), e imagino que mais bem escritos. Mas 50 Tons conseguiu a façanha de virar onda. Eu posso não gostar do livro, mas tem muita mulher apimentando sua vida sexual por causa dele. E isso não é ruim.