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segunda-feira, 31 de agosto de 2020

UMA GRANDE SÉRIE DE TV: THE AMERICANS

Ontem eu vi o décimo episódio da sexta temporada de The Americans, que é também o finale de toda a série. Não vou entrar em detalhes nem dar spoilers, mas que finale, hein? Aqueles dez minutos de diálogo no estacionamento, seguidos por dez minutos em movimento quase sem diálogos dentro de um trem!
Esta excelente série de TV -- talvez uma das melhores de todos os tempos -- acabou em 2018, mas só vi ontem. Não lembro por que comecei a ver a série, alguns anos atrás (foi por que alguma leitora ou leitor indicou, pelas críticas sempre positivas, pelas muitas indicações ao Emmy? Realmente não lembro). Eu e o maridão vimos as duas primeiras temporadas. Gostamos bastante, mas, por algum motivo, não continuamos. Paramos um tempão, a ponto da gente não se lembrar onde tínhamos parado. Retomamos com a terceira temporada e aí vimos tudo, até o final.
Que bom que continuamos! A terceira e a quarta temporadas devem ser as melhores da série. Pra quem não sabe, é sobre um casal de espiões soviéticos se passando por americanos em Washington, DC, durante os anos 80, aqueles em que um presidente lunático, Reagan (que os reaças consideram um mito, mas eu lembro bem o desastre que foi seu governo), chamava a URSS de "império do mal". 
Os Jennings (o disfarce que os espiões soviéticos utilizam durante anos) são ótimos espiões. 
Aceitam bem as regras impostas pela KGB (pelo menos Elizabeth, pelo menos no começo), são treinados com esmero, lutam como ninguém, usam todo tipo de peruca, são inteligentes, intuitivos. Não entram em pânico nem ao descobrir que seu novo vizinho é um agente do FBI (que também acaba sendo um personagem incrível). 
Não é que Elizabeth e Philip (seus nomes americanos) se conhecem na escola de espionagem soviética, se apaixonam e resolvem ficar juntos. Eles são selecionados pela KGB pra viverem juntos, pra terem filhos juntos, pra manter toda uma fachada de que são um casal perfeito -- ainda que, em muitos momentos, eles se sintam estranhos um pro outro. 
A série é muito sobre solidão, sobre como é não ter amigos (ou ter um único amigo, logo um agente do FBI!), sobre como é se sentir sozinho mesmo estando casado e com filhos (mas sem gatos ou cachorros! Isso faz falta). É também sobre intimidade, sobre identidade, sobre mentiras e disfarces. Tem seu ritmo próprio, que alguns podem considerar mais lento. Mas tem um monte de sexo e violência em boa parte dos episódios. 
(Um tenebroso, inesquecível, é quando o casal quebra os ossos de uma agente morta, nua, para poder fazer seu cadáver cadáver dentro de uma mala). 
Os atores são sensacionais. Keri Russell e Matthew Rhys interpretam brilhantemente o par de protagonistas, e fiquei feliz em saber que eles se casaram na vida real também.
Noah Emmerich -- aquele melhor amigo enganador de Truman Show aqui vivendo um papel reverso: ele é o melhor amigo enganado; Margo Martindale e Frank Langella como os principais contatos dos agentes; Costa Ronin como um burocrata russo mais acessível; e Alison Wright roubando todas as cenas como Martha, uma secretária do FBI com quem Philip chega a casar pra poder ter mais acesso à inteligência americana. 
E fica a questão no final: René, a segunda esposa de Stan (o agente do FBI) é uma espiã infiltrada ou não? Ela é de verdade ou é mais uma enganação? Taí uma coisa que a série não responde. E uma das provas que The Americans é tão acima da média é justamente isso, de que a gente mude de opinião várias vezes sobre esse tema, que está longe de ser um tema prioritário. 
E, claro, grandes séries são feitas de detalhes. Pra mim, um deles é quando Elizabeth traz pra casa um potinho com um pouco de comida russa típica, pra compartilhar com Philip. Ele não está com fome porque tinha acabado de se empaturrar com comida chinesa. E então ela joga fora o que está no potinho, porque guardar na geladeira de sua própria casa uma amostra da culinária do seu país está fora de cogitação pra espiões. 
Bom, gente, fica a recomendação de uma série fantástica. E antes que me perguntem em que plataforma está, ahn, a gente baixou do Torrent.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

SÉRIE SOBRE JEFFREY EPSTEIN ESCANCARA A IMPUNIDADE DOS PODEROSOS

Acabei de ver os quatro episódios do documentário da Netflix sobre Jeffrey Epstein (JE: Poder e Perversão). É nojento, que raiva que dá! Porém, é um trabalho de fôlego, que entrevista dezenas de pessoas, entre elas várias vítimas, e cobre dezenas de anos. 
Há evidências de que ele abusou sexualmente de pelo menos 400 adolescentes. Ele criou um bem sucedido esquema de pirâmide sexual da prostituição. Uma menina (em idade escolar, no ensino médio, entre 14 e 17 anos) era abusada, e ela indicava uma amiga para também ganhar uns 200 dólares (a promessa geralmente era fazer massagem), que também era abusada, indicava outra... E ele compartilhava algumas delas com outros amigos bilionários. Levava no seu jatinho (chamado de Lolita Express) os estupradores e as garotas para sua ilha particular nas Ilhas Virgens americanas.
São centenas de vítimas que não vão conseguir indenização nem mesmo para pagar as custas judiciais, pois, dois dias antes da sua morte, Epstein transferiu 600 milhões de dólares para uma conta nas Ilhas Virgens, paraíso fiscal, provando (como se ainda precisasse de prova!) de que ele realmente era um péssimo ser humano.
O milionário deveria ter sido condenado à prisão perpétua anos antes de sua prisão definitiva (em julho de 2019) apenas pelos crimes que cometeu em Palm Beach, Flórida. Mas a justiça é suave com os ricos e poderosos. Ele conseguiu um acordo e só ficou preso 13 meses. Aliás, mal ficou preso. Podia permanecer livre 12 horas por dia, seis dias por semana, "trabalhando".
Em 2010, soltinho da silva, Epstein ainda recebia cientistas e prêmios Nobel em sua casa. Esses homens não são pedófilos nem estão sendo acusados de nada (ao contrário do príncipe Andrew, por exemplo, que no documentário fica escancarado como estuprador e mentiroso), se bem que eram patrocinados por Epstein. Mas o mais escandaloso pra mim é que não era vergonha ser visto na companhia de um pedófilo condenado! 
O documentário deixa bem claro que o que mudou esse cenário foi o movimento Me Too. A verdade é que se não fosse essa campanha feminista iniciada em 2017 que revelou os bastidores de assédio permanente de poderosos como Harvey Weintein, Epstein não teria sido preso em definitivo. Infelizmente, o Me Too não foi suficiente para barrar podres como Donald Trump, que foi amigão de Epstein durante anos.
Esptein foi encontrado morto em sua cela em agosto do ano passado, em circunstâncias pra lá de misteriosas. Muita gente não crê em suicídio e sim em queima de arquivo.
A série me lembrou de que, quando eu tinha 12 ou 13 anos, fui abordada em Búzios por uma mulher jovem que queria me apresentar a um velho (ela veio até mim, apontou pra ele) muito rico, que poderia me dar várias coisas se eu saísse com ele.
Última foto de Epstein, já na
cadeia, aos 66 anos
Eu ri, disse que não estava interessada, não levei muito a sério. Fui pra casa que alugávamos na Praia dos Ossos (na mesma rua do cinema e boate) e contei pro meu pai, meio que rindo. Foi a reação dele que me fez ver a gravidade da situação. Ele ficou furioso, saiu correndo, foi ao cinema onde isso tinha acontecido, chamou a polícia.
O casal já tinha ido embora e nunca ficamos sabendo quem eram. Mas imagina quantas meninas e meninos não caem nesses esquemas? Nunca esqueci disso. O caso Jeffrey Epstein é muito mais comum (e universal) do que a gente imagina. 

terça-feira, 28 de agosto de 2018

SÉRIE SOBRE A CAÇA AO UNABOMBER DEIXA DE LADO AS MULHERES

Em poucos dias eu vi os oito episódios de uma série que foi lançada ano passado, Manhunt: Unambomber.
Como cheguei a essa série? É que vi que, entre os indicados do Emmy, estava Law and Order True Crime, que falava dos irmãos Menendez, dois americanos que em 1989 mataram o pai e a mãe. O crime foi tão popular lá quanto o assassinato dos Richthofen foi aqui. O julgamento foi televisado e todo mundo ficou sabendo que aquela imagem de família rica e tradicional envolvia pedofilia e estupro. A série, que foca na advogada de defesa dos irmãos, claramente adota esse ponto de vista (outras pessoas acreditam que os irmãos Menendez mataram os pais pra ficar com a fortuna). 
De um jeito ou de outro, os irmãos foram condenados à prisão perpétua (escaparam da pena de morte). E mesmo que a série (também de oito episódios) esteja longe da excelência de The People v. O. J. Simpson: American Crime Story (ou de O Assassinato de Gianni Versace), ainda assim é interessante.
Então sem querer fiquei sabendo dessa outra série baseada em fatos reais, sobre o Unabomber. Porque, pô, se séries sobre crimes e julgamentos já são bacanas, crimes sobre crimes e julgamentos que aconteceram de verdade prometem ser ainda melhores. 
Eu não me lembrava muito do Unabomber. Na minha cabeça, misturei com o caso da anthrax, mas isso aconteceu muito depois, em 2001 (cinco pessoas foram mortas ao receberem cartas com a bactéria). O Unabomber foi (é, está preso desde 1996) um terrorista americano que, entre 1978 e 1995, mandou 16 pacotes com explosivos para várias pessoas, matando três e ferindo 23. Foi também o caso mais longo e mais caro do FBI.
Ted Kaczynski, o tal terrorista, hoje com 76 anos, foi uma criança-prodígio com QI altíssimo. Entrou em Harvard com apenas 16 anos, formou-se em matemática, fez mestrado e doutorado na Universidade de Michigan e depois, com 25, foi o professor-assistente mais jovem do departamento de matemática noutra universidade conceituada, Berkeley. Mas em 1969 largou tudo e voltou pra casa dos pais. 
Dois anos depois, foi morar sozinho numa cabana sem água nem eletricidade no estado de Montana. Em 1978, enviou sua primeira bomba pelo correio. A terceira bomba que mandou, em 1979, felizmente falhou. O pacote foi aberto em pleno voo da American Airlines. Se a bomba tivesse funcionado, derrubaria o avião.
Kacynski culpava a sociedade industrial pelo declínio do mundo. Defendia que todos fossem viver numa cabana no meio do mato. Detestava a tecnologia.
Ted na vida real com seu
irmãozinho, em 1952
Como tantos serial killers, ele odiava também as mulheres. A série (mais especificamente o sétimo episódio, que lida com as origens do Unabomber) mostra que ele tinha um melhor amigo quando era criança, e que esse amigo o abandonou ao chegar à puberdade e arranjar uma namorada. Ele também criticava severamente o irmão mais novo por ter se casado, por ter se deixado prender. Chamava todos de "gado", "ovelhas" (parece familiar?). E era o que hoje seria chamado de incel (celibatário involuntário). Nunca transou, nunca namorou. Saiu com uma moça do trabalho uma vez, que não quis mais saber dele. Então, ele espalhou bilhetes no escritório chamando-a de vadia e afins. Foi despedido. 
Enquanto eu via a série, pensava em como esses mascus são parecidos (tirando a parte do alto QI). Não por acaso, o Unabomber é um ídolo pra eles -- assim como todos os serial killers. Eles se sentem únicos e especiais num mundo que os ignora, e fazem tudo para chamar a atenção. Incapazes de qualquer tipo de autocrítica, culpam as mulheres por tudo que há de ruim em suas vidas.
No fundo, a série é muito mais sobre a vida de um agente do FBI, Jim Fitzgerald (interpretado por Sam Worthington), que sobre Kacynski (feito por Paul Bettany). Mostra a obsessão do agente em tentar descobrir e capturar o serial killer, analisando principalmente a linguagem dos manifestos e cartas que Kacynski escrevia (pra quem é de Letras, é um prato cheio, apesar da série sugerir que o agente praticamente inventou a linguística forense -- uma ferramenta de identificação baseada na crença que cada pessoa tem sua maneira de se expressar, e que esta característica é tão única como suas impressões digitais ou DNA --, o que obviamente não é verdade). A família de Fitzgerald o larga após anos de negligência, e ele acaba se tornando tão recluso quanto seu alvo.
Embora o agente Fitz exista na vida real, o resto é liberdade poética. Mais de 150 agentes do FBI atuaram no caso, e Fitz foi apenas um deles, longe de ser o mais importante. Ao contrário do que mostra a série, Fitz e Kacynski nunca se encontraram, nunca se falaram, nunca desenvolveram qualquer tipo de relação. O Fitz da série representa vários personagens em um (e, ironicamente, esse protagonista ficcional se sente injustiçado ao não ser reconhecido como o homem que prendeu o Unabomber).
Mas o que me deixou com o cabelo em pé é como as mulheres são menosprezadas, mesmo numa série que toma tantas liberdades com os "fatos reais" em que diz se basear. No quinto episódio, vemos uma outra agente, Tabby (Keisha Castle-Hughes), ser fundamental para se chegar à identidade do Unabomber. É ela que vê e investiga uma ficha enviada ao FBI e a manda a Fitz. E aí, em vez de ser aplaudida (sem ela o FBI não chegaria a Kacynski), ela é punida por quebrar o protocolo. A série falha ao demonstrar essa injustiça como algo pessoal, não como um modus operandi histórico de como mulheres são varridas pra baixo do tapete da história. 
Outro exemplo é que, apesar do FBI ter investido tanto tempo (quase 20 anos) e dinheiro para desvendar o assassino, a descoberta só se deu por causa da cunhada de Kacynski. Foi ela quem leu o manifesto publicado no Washington Post e pensou, "Putz, esse Unambomber é Ted, meu cunhado!". Foi ela que contou isso pro seu marido David e insistiu, porque o irmão não queria acreditar nisso de jeito nenhum. Mas quem ficou com a glória de ser visto como o grande herói americano que denunciou o próprio irmão em nome da lei? David. 
Uma outra linguista que ajuda Fitz (uma personagem mal explorada pela série) também fica sem crédito algum. E assim são feitas as lendas sobre os corajosos e brilhantes homens que capturam outros homens que usaram suas mentes brilhantes para o mal.
Eu gostei da série e a recomendo (é muito superior à outra série recente baseada em fatos reais, Waco, sobre outro caso emblemático nos EUA). Foi legal relembrar o Unabomber e compará-lo aos terroristas mascus. Veja sabendo que ela não está tão preocupada com os "fatos reais" e que, mais uma vez, as mulheres não recebem importância, e isso não é apontado como errado. 

quinta-feira, 21 de junho de 2018

PESADELO SEM FIM: POR QUE DISTOPIAS FEMINISTAS DEVEM PARAR DE TORTURAR MULHERES

Assim que vi este artigo de Sarah Ditum no The Guardian, pensei no meu curso da pós-graduação. 
Vou oferecer uma segunda parte da disciplina Utopias e Distopias Feministas no semestre que vem (veja aqui o cronograma inteiro da primeira parte, com links pros textos), e planejo incluir uma discussão sobre a segunda temporada da série de TV Conto da Aia. Então pedi pro querido Vinicius Simões traduzir o artigo, que agora compartilho com vocês. 
Não concordo com tudo que diz Ditum (por exemplo, não acho que ficção, feminista ou não, deve apresentar soluções, e gostei pacas do romance Only Ever Yours). Porém, seu artigo rende ótimas discussões e, no mínimo, novas indicações de leituras. 
Estou assistindo (e gostando) da série Conto da Aia, mas tem muita gente incomodada com a violência contra as mulheres. Como diz a chamada: "O Conto da Aia inspirou uma nova geração de escritoras cujos mundos distópicos são cada vez mais sombrios, tenebrosos e sádicos. Mas onde está a esperança?"

A uma mulher, grávida por conta de um estupro, é negado um aborto. Ela é legalmente detida e submetida a uma cesariana forçada. Uma mulher com baixa renda quer deixar seu parceiro controlador, mas não pode, porque uma política de governo destinada a “impedir o colapso familiar” significa que todos os benefícios são pagos na conta dele. Uma mulher relata uma agressão sexual, mas a polícia não acredita nela, então a processa por fazer uma falsa alegação enquanto seu agressor continua livre para atacar mais vítimas. Meninas são sistematicamente preparadas para a prostituição e a polícia ignora seus agressores. Um homem se vangloria de que ele pode “agarrar” mulheres “pela boceta”: ele é eleito presidente. Tudo isso aconteceu na Irlanda, no Reino Unido e nos EUA na última década.
Como as mulheres do elenco do Saturday Night Live cantaram em sua resposta musical aos homens chocados com as revelações do #MeToo: “Bem-vindos ao inferno/ Isso não é novidade/ Nossa situação tem sido um incômodo desde que temos peitos”. 
Do abuso teocrático de garotas nas regiões controladas pelo Boko Haram na África ocidental, até o assassinato da jornalista Kim Wall por Peter Madsen, inspirado na pornografia da tortura, 
o mundo oferece uma variedade tão rica de pesadelos para mulheres que parece supérfluo para a ficção inventar mundos ainda vez mais horripilantes. Mas não importa: com a segunda temporada da aclamada adaptação de TV de O Conto da Aia, de Margaret Atwood, prestes a começar [em maio 2018], o apetite por distopias feministas não mostra sinais de diminuir, e as editoras mostraram-se mais do que dispostas a satisfazer essa demanda.
No livro Red Clocks, de Leni Zumas, o aborto é proibido nos EUA e um “muro rosa” impede que as mulheres voem para o Canadá. Em Future Home of the Living God, de Louise Erdrich, o aquecimento global parece ter precipitado uma crise reprodutiva: mulheres grávidas são mantidas em centros de detenção e mulheres férteis recrutadas para carregar embriões. The Growing Season, de Helen Sedgwick, imagina um mundo em que úteros artificiais se tornaram a norma. The Book of Joan, de Lidia Yuknavitch, se passa em uma Terra envenenada, comparada a um “preservativo espacial idiota”, onde um punhado de sobreviventes ricos sofre mutação até ficarem sem sexo. 
No encantador The Water Cure, de Sophie Mackintosh, as mulheres têm sido atingidas por uma sensibilidade terrível que torna os homens tóxicos para elas. Gather the Daughters, de Jennie Melamed, indicado ao prêmio Arthur C. Clarke, é ambientado numa apavorante comunidade fechada em que os pais devem estuprar suas meninas pré-púberes para substituir o sexo reprodutivo -- uma medida de controle populacional.
O sofrimento vende, especialmente quando são mulheres que estão sofrendo e, como acontece com qualquer tendência, a pressão para cada nova iteração é superar o que veio antes. Os resultados, às vezes, escapam ao absurdo: em Vox, de Christina Dalcher, que será publicado em agosto, as mulheres são equipadas com pulseiras que emitem choques elétricos caso falem mais do que cem palavras por dia. E há mais por vir. Na Feira do Livro de Londres, em março, os grandes lançamentos foram histórias de coisas terríveis que acontecem com mulheres: 
The Farm de Joanne Ramos, a ser publicada pela Bloomsbury no ano que vem, se passa em uma fábrica de barrigas de aluguel; Vardø, de Kiran Millwood Hargrave, sobre os julgamentos de bruxas do século XVII, foi adquirido pela editora Picador por uma soma de seis dígitos após uma guerra de leilão em 13 rodadas de lances. Na literatura jovem o mesmo fascínio prevalece: Only Ever Yours, de Louise O'Neill, publicado em 2014 [traduzido em Portugal com o título As Filhas de Eva], estabeleceu o tom, revisitando O Conto da Aia para o mercado adolescente.
O romance de 1985 de Atwood permanece como um marco porque seu poder de chocar nunca desapareceu. Limitando-se à tecnologia existente e aos eventos que já haviam acontecido, Atwood criou uma visão do totalitarismo patriarcal que radicalizou geração após geração de leitoras. Atualizado até os dias atuais em sua adaptação para TV, adquiriu nova ressonância. Encomendado antes da presidência de Trump, mas transmitido durante a mesma, O Conto da Aia se tornou um ponto de referência instantaneamente reconhecível. Feministas vestiram trajes de aia para protestar contra a legislação anti-aborto; estilistas enviaram roupas chiques de aias para suas passarelas.
No entanto, com a segunda temporada já sendo exibida nos Estados Unidos e prestes a começar no Canal 4 [Reino Unido], algumas espectadoras começaram a manifestar seu desconforto com os níveis de brutalidade no drama. A primeira temporada, aproximando-se bastante do romance, tinha um conhecido arco de dor para Offred. A segunda temporada, solta de seu material de origem, tem um potencial de desprazeres ilimitados em Gilead. A revista New York classificou-a de “uma horrível cavalgada incessante de pornografia da tortura feminista para rivalizar com nossos maiores autores misóginos”, e perguntou se havia justificativa para ser tão chocante, dado o assunto, ou se a série estava simplesmente sendo sádica.
O Conto da Aia efetivamente inaugurou a distopia feminista como um gênero, e à medida que a distopia feminista florescia, seu oposto -- a utopia feminista -- desaparecia. A obra do século XVII de Margaret Cavendish, O Mundo Resplandecente, o livro  de 1915 de Charlotte Perkins Gilman, Terra das Mulheres, A Mão Esquerda da Escuridão, de Ursula K. Le Guin (1969), e The Female Man (1975), de Joanna Russ, todos ofereciam não-lugares onde ser mulher não significava mais ser inferior. Revisitar estes “e se...” é revigorante.
No mundo imaginário de Mão Esquerda de Gethen, por exemplo, não há seres humanos masculinos e femininos: em vez disso, todo indivíduo é capaz de ovular e inseminar, e assume cada papel dependendo da situação. Em tal mundo, escreve Le Guin, não há “divisão da humanidade em metades fortes e fracas, protegidas/ protetoras, dominantes/ submissas, proprietárias/ propriedades, ativas/ passivas”. É uma invenção que aponta para a crueldade das classes sexuais humanas existentes e a possibilidade de uma vida sem restrições de gênero.
Um dos poucos romances que revisitaram esse escopo imaginativo nos últimos anos é O Poder, de Naomi Alderman. No romance de Alderman, as mulheres desenvolvem um órgão especializado chamado meada que lhes permite dar grandes choques elétricos, o que, por sua vez, permite que elas dominem os homens, do jeito que homens dominaram historicamente as mulheres. É gratificante entrar em um mundo em que as mulheres podem ser condescendentes com os homens com a autoridade alegre dos temidos, e as inversões do romance são deliciosamente reveladoras sobre o padrão masculino da nossa própria sociedade. É engraçado ler uma personagem feminina nobre dizendo a um homem servil que a ideia dele de um “mundo dirigido por homens” seria “certamente mais gentil, mais carinhoso e -- ouso dizer isso? -- mais sexy do que aquele em que vivemos”.
Mas quando um protagonista masculino, Tunde, descreve o que é ser a classe sexual inferior, é chocante ouvir essas palavras da boca de um homem. Somente quando você vê um homem sendo tratado como as mulheres são tratadas você entende o quão longe estamos da noção radical de que mulheres são pessoas. No entanto, O Poder não é exatamente um manifesto de mudança. Em um trecho do texto religioso do seu futuro matriarcal, O Livro de Eva, nos é dito: “A forma do poder é sempre a mesma”. Quando os homens têm poder, eles o usam sobre as mulheres; quando as mulheres têm poder, elas o usam sobre os homens. A perspectiva de uma sociedade que não é definida por um sistema de classe de sexo é uma impossibilidade nebulosa aqui.
Claro, essa crítica sugere que um romance tenha alguma obrigação de ser um manifesto para a mudança, o que levanta a questão espinhosa de o que significa para uma obra de arte ser feminista. Para Atwood (mentora de Alderman durante a criação de O Poder), este sempre foi um ponto de discórdia, e sua relação com o rótulo “feminista” e com o movimento em geral há muito tem sido incerto. Em um artigo opinativo de 2017 para o New York Times, ela respondeu à pergunta se O Conto da Aia é um romance feminista:
"Se você quer dizer um tratado ideológico em que todas as mulheres são anjos e/ou tão vitimizadas que são incapazes de fazer uma escolha moral, não. Se você quer dizer um romance em que as mulheres são seres humanos -- com toda a variedade de caráter e comportamento que isso implica -- e também são interessantes e importantes, e o que acontece com elas é crucial para o tema, estrutura e enredo do livro, então sim. Nesse sentido, muitos livros são 'feministas'”.
É uma resposta que engenhosamente se exime da demanda sufocante de fazer propaganda de seu romance, mas também não é tanto uma resposta quanto um deslize entre dois espantalhos feministas. O feminismo não é nem a afirmação de que mulheres são perfeitas, nem é qualquer coisa que por acaso seja sobre mulheres: é um movimento para desmantelar um sistema no qual os homens sistematicamente detêm o poder sobre as mulheres e as exploram economicamente, sexualmente e (como O Conto da Aia examina mais obviamente) reprodutivamente.
Parte desse movimento sempre foi chamado de “conscientização”, no qual mulheres compartilham suas experiências e afirmam a natureza do problema. O boom das distopias feministas parece se encaixar exatamente nessa descrição -- elas estão identificando problemas, às vezes com exagero satírico, e dando às leitoras o alívio do reconhecimento. Mas a conscientização é um primeiro estágio, apenas significativo quando forma a base para uma ação coordenada, e como a comentarista política e cultural Helen Lewis apontou, o feminismo contemporâneo mostrou incrível força na conscientização, mas muito menos convicção quando se trata de objetivos concretos.
Há campanhas vitais e sucessos notáveis ​​(a campanha Revogue a Oitava Emenda, para remover as restrições brutais da Irlanda ao aborto, por exemplo, e o trabalho de Caroline Criado-Perez sobre representação feminina), mas enquanto movimentos de grande repercussão como o projeto Everyday Sexism (o machismo de todos os dias) e o #MeToo estabeleceram inequivocamente que temos um problema de sexismo e assédio sexual, eles ainda não se uniram em torno de uma solução. O mesmo dilema -- um senso aguçado do que está errado, um impasse quando se trata de formas de corrigi-lo -- caracteriza grande parte da atual literatura de distopia feminista.
Essa tendência se manifesta de algumas maneiras. A obra de Sedgwick, The Growing Season, questiona se úteros artificiais forneceriam a liberação definitiva dos papéis de gênero ou deixariam as mulheres ainda mais vulneráveis ​​à coerção masculina. Com a reprodução terceirizada do corpo feminino, as mulheres não são mais estereotipadas em papéis de “cuidado”: ​​um recepcionista homem é tão pouco memorável quanto uma executiva mulher. 
Mas a violência masculina persiste, e os úteros externos oferecem um novo alvo para ela. “Nós inventamos uma nova forma de abuso. Demos aos homens o poder definitivo sobre as mulheres”, lamentou a feminista inventora da “bolsa”. Mas essas grandes ideias são deixadas de lado à medida que o romance muda para o modo conspiração/ suspense e, de certa forma enganosa, estabelece a gestação interna e externa como escolhas igualmente válidas. (Diz algo sobre como só a “escolha” é vazia como meta feminista que Sedgwick deva conjurar esse improvável equilíbrio para torná-lo convincente.)
O romance de Dalcher, Vox, acerta um pouco em relação a como a socialização feminina é simplesmente o processo de habituação das mulheres a consequências violentas -- a protagonista Jean observa com horror sua filha de cinco anos adquirir habilmente o silêncio feminino -- mas chega a um clímax que é tanto um ato de wishful thinking [auto-engano, "bem que eu queria"] como Cinquenta Tons de Liberdade, de EL James. Jean não só derrota o patriarcado, como também foge com um sexy linguista italiano. É uma espécie de vitória, mas não responde a nenhuma das questões levantadas por Dalcher sobre linguagem, poder e consentimento.
No livro de Erdrich, Future Home of the Living God, a fuga desesperada da narradora Cedar das autoridades que querem tomar seu bebê e controlar seu corpo é apenas um pequeno desvio da realidade de coerção reprodutiva para as mulheres nativas americanas, que sofreram esterilização forçada e a retirada de seus filhos (Erdrich, como Cedar, pertence à tribo Ojibwe). Não há como escrever uma conclusão satisfatória para essa situação. 
Onde O Conto da Aia (o livro) evita tanto a salvação desonesta quanto o tormento desgastante, cortando abruptamente a história de Offred, Future Home insiste em uma desolação paralisante. A ferrovia subterrânea das parteiras que protegiam Cedar fracassa e termina com a captura dela e seu bebê levado embora: “Espero na minha cela pela próxima gravidez”, ela escreve para a criança que nunca conhecerá. “Onde você estará, minha querida, na última vez em que nevar na Terra?”
Tal conclusão pode aparentar ser contundente, enquanto na verdade se regojiza na dor feminina. Erdrich se esquiva dessa armadilha, mas algumas distopias feministas não. Em Only Ever Yours, de O’Neill, garotas são criadas como “Evas”, escrupulosamente inculcadas na feminilidade para tornarem-se esposas agradáveis ​​para os homens da classe dominante. Aquelas que fracassam são jogadas mais para baixo no sistema de castas de mulheres até que, no fundo do poço, são enviadas ao “Subterrâneo” para o extermínio. Em um trecho desgastante, a protagonista Freida é punida por uma infração sendo trancada em seu quarto, onde as paredes são telões que mostram repetidamente sua humilhação pública em cadeia nacional.
É uma cena que capta a auto-aversão da adolescente ampliada pelas mídias sociais, mas uma reflexão não é o mesmo que uma crítica. Ao ler isso, com o foco preciso no peso e na aparência, uma jovem pode ficar mais propensa a reforçar suas ansiedades do que a desconstruir o mito da beleza. O desfecho mostra Freida abraçando seu final no Subterrâneo com uma paixão quase erótica: “A agulha afunda na minha pele, o líquido sussurra, esquece, esquece, ao meu sangue… Estou pronta para não sentir nada, para sempre”. Ao contrário do que diz Atwood, feminismo não se trata nem de idealizar mulheres, nem de simplesmente representá-las, mas ambas as opções parecem muito mais preferíveis a um tipo de “feminismo” que oferece consolo na autodestruição.
Se a distopia verdadeiramente feminista deve retratar honestamente as lutas das mulheres sem sensacionalizar suas dores e dramatizar uma análise política sem cair em slogans pesados, então talvez tal coisa nunca possa existir. Afinal, uma das razões para Atwood ter cautela com o rótulo “feminista” é que muitas vezes ele é um padrão a mais aplicado apenas às mulheres escritoras -- um padrão que falhará, já que o propósito da maioria dos padrões aplicados apenas às mulheres é garantir que elas nunca serão boas o suficiente.
Mas há ficção que entende a opressão das mulheres, reconhece a subjetividade delas, tem a imaginação para testar como o pior dos casos pode acontecer e a esperança de que possamos encontrar algum tipo de futuro melhor no final. Uma distopia feminista, em outras palavras, deve conter um pouco de utopia feminista. Em Red Clocks, o horror do “Muro Rosa” (um cenário que é mais ou menos um fato para mulheres sem passaporte na Irlanda, ou mulheres em regiões conservadoras nos EUA que não têm recursos para o transporte através das divisas estaduais) é entrelaçado com uma comovente resistência feminina, à medida em que as personagens de Zuma aprendem a olhar umas às outras em busca de ajuda. 
Há um vínculo que se estende não apenas entre mulheres, mas através do tempo: “Milhares de anos em desenvolvimento, aprimorados pelas mulheres nas obscuras dobras da história, ajudando umas às outras”, pensa uma. 
A sororidade também é resgatada em The Water Cure, embora de maneira um tanto perturbadora. No final, suas personagens femininas matam um homem para proteger seu mundo fechado: elas o deixam na praia como uma mensagem para outros intrusos de que “aqui não é seu lugar”, e sua utopia ambígua utopia. 
The Book of Joan, com seu estranho e contínuo sentido de tempo (a narradora, Christine, e seu adversário, Jean de Men, são reproduções da proto-feminista medieval Christine de Pizan e do autor hiper-misógino de The Romance of the Rose), não oferece exatamente progressismo: como você pode progredir quando a história está se autodesmoronando? Mas há algo de esperançoso na reivindicação que delimita uma volta ao reconhecimento da materialidade na política, e não à expropriação insustentável do planeta ou do corpo: “O corpo é um lugar real”, diz a rebelde Joan, enquanto comanda as sobreviventes terrestres em um exército. "Um território tão vasto quanto a Terra."
E há o soberbo A Parábola do Semeador, de Octavia Butler (1993). Em uma Terra superaquecida e pobre em recursos num futuro próximo, onde as mulheres são mais um recurso a ser explorado, a protagonista Lauren lidera um grupo de peregrinas através de uma selva violenta com o sonho de começar algo novo. Esse algo é Earthseed: parte religião, parte projeto de colonização interestelar, “a derradeira mudança humana à beira da morte... um destino que é bom buscarmos se esperamos ser algo diferente de dinossauros de pele suave”. 
Enquanto o mundo em que vivemos ainda não é um lugar para as mulheres, o feminismo precisa desses sonhos de coisas melhores. Enumerar nossas feridas, por si só, não nos levará a um lugar além do mal.