Mostrando postagens com marcador coringa joker. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador coringa joker. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

ARTHUR OU CORINGA: QUEM SOMOS NÓS?

Publico hoje a análise filosófica sobre o filme (e o personagem) Coringa. É de uma leitora querida, Anita Regina Santos, administradora e estudante de Filosofia. 

Através do diagnóstico de Nietzsche, somos uma sociedade niilista. O que isso significa? Significa que não conseguimos perceber sentido em nada, que nada nos faz sentido. Não há tempo de elaborar o que sentimos, o que vivemos. Há muita informação pedindo para ser vista, muita coisa nos chega sem que seja possível sequer filtrar o que gostaríamos ou não de ver. Sabemos que cada dia mais e mais “conhecimento” pode ser adquirido e isso nos exige um estilo “fast food” de apreensão das coisas e do mundo ao redor. A consequência é, não raras vezes, indigestão e mal estar. Não estamos nutridos, nem de nós mesmos, nem do mundo.
Estamos adoecendo enquanto sociedade, e o filme Coringa (Joker, 2019), do diretor Todd Phillips, explora com tanto realismo essa condição social, que faz do longa um retrato cru e desconfortável dos nossos tempos. Essa é a sensação que ficou mais forte o tempo todo: desconforto. Apesar de não ter muitas cenas de violência explícita, a narrativa é construída essencialmente violenta em tudo que é e se torna. A densidade, a agressividade, que se encontra represada em Arthur ao longo da sua trajetória, desenha um cenário para sua própria vida não subjetivada.
O incômodo existencial dele permeia asperamente o tempo todo a sua compreensão dos fatos, do mundo e das pessoas à sua volta, tornando impalatável sua convivência consigo mesmo e com o mundo. Nos é dado conhecer, entre outras coisas, que ele sofre de um transtorno psicológico que o faz rir nas mais inusitadas situações, o que faz com que ele se torne um estranho aos olhos do mundo e aos seus próprios olhos.
Talvez o principal fator de identificação entre espectador e personagem, o que mais nos coloca emparelhados com Arthur seja a cobrança implícita que todos sofremos -– de forma velada ou nem tanto -– de um “bem estar”, de uma “normalidade” perante o mundo. Mundo esse que, em nosso tempo, é por si mesmo patologizante.
Importante notar que a modernidade, na ambiguidade que lhe é própria promoveu o discurso de igualdade humana, e paralelamente a isso, promoveu também diversas anulações na complexidade que permeia cada ser humano e não seria equivocado pensarmos que isso trouxe também anulações e, consequentemente, implicações ao que somos hoje, na forma de sentir, pensar, de se relacionar com o mundo e de como percebemos a nós mesmos. A marca do ser humano é ser diferente. E essa tentativa de equiparações nos fez, na contemporaneidade, buscar ainda mais a nossa individualidade. Individualidade nesse contexto significando cada um, em si, bastando-se. A época em que vivemos parece então gritar reivindicando pelo direito à diferença. Mas, enquanto sociedade, o que isso pode representar?
Nossa busca por termos destacadas e valoradas nossas diferenças fez com que conceitos éticos e morais ficassem ultrapassados. Houve uma grande quebra de paradigmas sociais nos últimos anos. Surgem direitos declarados em documentos de aceitação universal e também pessoas dispostas a que se fizessem cumprir na prática esses direitos agora reconhecidos. Infelizmente, sabemos o quão utópica essa igualdade de condições ainda é, pois até hoje jamais conseguimos contemplar a todos(as) nessa igualdade de cidadania e humanidade. O que vemos hoje na sociedade contemporânea é uma releitura de um quadro dantesco.
Entretanto, o ser humano possui ainda as mesmas inquietações humanas de sempre. Não existe mais uma “verdade” sobre algo que seja, tudo é discurso e linguagem. A afetação e a ampliação que o advento da internet nos trouxe é inegável. Tudo hoje é questionável e descartável. E mais e mais se produz, e não há capacidade humana que dê conta de acompanhar essa dinâmica, sem também afetar-se em maior ou menor grau. Pois, de novo: as questões humanas mais rudimentares permanecem latentes, ainda que hoje, subjugadas e negligenciadas -– tanto socialmente quanto individualmente.
Há uma crise identitária, porque os limites e valores também mudaram, mas não estão claros e parecem não contemplar a todos. Há uma constante tentativa de pertencimento ao grupo, a algum grupo (ao bando), o que nos traz a impressão que isso acontece muitas vezes, em detrimento da demanda individual de cada um, ou mesmo pela falta de conhecimento ou mesmo de reconhecimento de si mesmo e, consequentemente, da formação do pensamento próprio sobre o mundo, as coisas e os fatos que nos rodeiam. Há uma ambiguidade de valores e “escolhas”, que exclui e inclui o indivíduo do convívio social. 
Há uma diluição do ser individual no ser social. E cada indivíduo passa a ser valorado ou rechaçado pelo que produz e não pelo que é. (Ninguém tem tempo para descobrir-se, para conhecer-se. É preciso produzir, contentar demandas do mundo que nem sempre coincidem com as do ser).
Os dilemas sociais mudam a cada dia e tornam sufocante a demanda da existência. Há um desconforto quase perene que não pode ser extravasado, pois há também a cobrança de um bem estar que por vezes nos custa a saúde e sanidade.
Vemos um sintoma claro -– principalmente nas redes sociais -– de uma tentativa de hegemonia, onde só os “iguais” podem conviver. Essa identificação tão necessária ao ser parece hoje atingir níveis tão elevados que acaba por ter um efeito quase contrário: ou seja, é muito mais excludente do inclusiva, e essa  “exclusão” do diferente de nós cria um paradoxo importante, se lembrarmos que uma das maiores reivindicações do nosso tempo é justamente a visibilidade, aceitação e valoração de nossas diferenças. E, afinal, separamo-nos de forma simplista entre amigos e inimigos. Aos que não conseguem pertencer, sobra sempre a marginalidade. Tudo hoje pode ser conceituado, patologizado e passível de ser normatizado.
Contudo, insistentemente, gritam dentro do ser as questões que lhe são próprias. Uma pessoa que é posta à margem do que é “bem aceito” socialmente, acaba também por não identificar-se mais com valores humanos de convivência pacífica. Ela acaba criando e vivendo em uma “realidade própria”, onde leis e regras deixam de ter a relevância esperada. Ela rompe com esses valores, rompe com a sociedade. Existir, portanto, é sobreviver às escolhas que nem sempre podemos escolher.
E nesse sentido, o filme traz muitos simbolismos, arquétipos, de forma crua e densa. O personagem é construído arquetipicamente, o que o humaniza. E a violência crua perturba, porque a vemos como normal do ser humano em seu estado talvez mais bruto. Arthur, nosso personagem principal, tem um forte vínculo com a mãe, uma pessoa extremamente tóxica que o faz crer o tempo todo que ele é alguém desprezível e incapaz. 
Ele não teve nenhuma presença masculina na infância, e ao longo do filme, ele denota claramente essa falta, pois mostra uma necessidade de aceitação dos homens com quem ele convive, e principalmente os que representam alguma autoridade na vida dele; o chefe é um exemplo disso. Diante de outros homens, ele coloca-se numa postura de subserviência, de bajulação. E o que tem de retorno desses homens é zombaria, exploração, humilhação.
Em vários momentos do filme ele tenta fugir dele mesmo; busca desesperadamente nas pessoas, algum afeto, algum acolhimento. Tenta fugir do aspecto sombrio do seu próprio ser. A dor é inerente a esse processo que ele é tomado. Eclode quando ele mata pela primeira vez. Matar o opressor para ele é algo libertador. Não apenas pelo contexto do momento, mas porque muita energia de ação dele que estava submersa surge junto ao ato de matar, e começa a se fazer presente em sua vida, ainda que de forma deturpada.
Noutra cena do filme (talvez a que fere mais fortemente nosso entendimento de moral) acontece claramente a ruptura total dele com valores humanos, e onde, paradoxalmente, ele mostra o seu lado mais humano. O processo dele, agora tomado pelo próprio aspecto sombrio de sua personalidade, não lhe permite simbolizar nada do que sente e pensa, agindo a partir de então, quase que só instintivamente. 
Ele consegue compreender que ele existe, apenas quando faz com que outros deixem de existir. Ou seja, através da morte, do ato de matar, compreende que há vida nele, enxerga-se, e compreende que ele também existe no mundo. Para isso, dissocia-se da realidade, de valores humanos/ morais. Ele precisa literalizar vida e morte da forma mais pungente que pode conceber. E busca nessa energia que sente quando mata alguém a energia da vida que ele precisa para si. 
E nesse ponto, o filme causa uma confusão, uma ambiguidade em nosso senso moral, ou no que concebemos como comportamentalmente correto, com o que compreendemos por bem e mal -- o que deu margem para que o filme tenha sido entendido por alguns como uma forma de justificar “bandidos”. Mas a leitura possível, que pode mesmo perpassar por esse caminho, nos leva também a pensar que não há propriamente uma justificativa, mas a reflexão que ele, Arthur, é só mais um no mundo, ou seja, poderia ser qualquer um de nós. 
E novamente, isso não seria uma tentativa de aludir qualquer justificativa para crimes que pessoas comentem pelo mundo, apenas uma visão sem mascaramento de que um ser humano, sendo também fruto de seu meio, tem potencial para qualquer coisa. Acompanhar a trajetória de Arthur mostra que qualquer ser humano quando submetido a situações extremas pode reagir de forma monstruosa. 
Mostra que alguém que é marginalizado da sociedade, e não se sente a ela pertencente, pode perder o fator identitário que, por vezes, sustenta sua humanidade, isto é, valores primordiais que definem o humano. E ao mesmo tempo que nos choca, nos suscita questionamentos acerca do que é "ser" humano.
O filme traz para nós uma reflexão do que é ser uma pessoa subjugada desde sempre pela sociedade; uma construção que perverte o ser humano, que o adoece ao ponto de não haver mais diálogo possível com o mundo e consigo mesmo. Mostra como nascem os monstros. E o que torna o filme tão perturbador é o fato de trazer à tona o que já sabemos: com quantos Coringas cruzamos todos os dias? Qual a responsabilidade coletiva sobre cada indivíduo que rompeu com o que chamamos de humano? 

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

CORINGA, AGORA ÍDOLOS DOS INCELS, NÃO OS REPRESENTA

Antes de mais nada, quero registrar que adorei Coringa. É um grande filme. Joaquin Phoenix está fantástico (deem logo o Oscar pra ele, por favor!). E concordo com os críticos que andam dizendo que, depois dele, nenhum filme de superherói será mais o mesmo. Coringa é muito sombrio, muito psicológico, quase sem humor, sem explosões, sem duelos climáticos. Tudo que é preciso para uma necessária reconstrução da fórmula. 
Coringa é complexo e pode ser interpretado de inúmeras formas. Um guru jovem da extrema-direita brazuca escreveu num tuíte: “Assisti Joker. É uma demonstração do que a anomia social e o ressentimento esquerdista podem fazer com uma mente perturbada; um retrato desesperador das consequências do mundo sem Deus, sem propósito, sem transcendência e sem redenção que a geração de maio de 1968 tentou criar”.  
Já um brasileiro de esquerda achou Coringa tão esquerdista que intitulou sua crítica "Marx vai às telas", apontando o filme como uma grande luta de classes. E um filósofo marxista disse que é o filme mais anti-esquerda que ele já viu na vida por mostrar movimentos antifascistas como o fim da civilização. Mas o documentarista Michael Moore achou que é um filme sobre “a América que nos deu Trump”. Detalhe: todos amaram o filme. 
Infelizmente, Coringa, que conta as origens do arquirrival de Batman, o palhaço Arthur Fleck, também é amado por homens que aparentemente ainda nem o viram. O filme chega acompanhado de ameaças de atentados. Familiares do massacre de Aurora, Colorado, em 2012 (em que doze pessoas foram mortas e 70 ficaram feridas num cinema que exibia O Cavaleiro das Trevas, por um atirador que hoje cumpre prisão perpétua) pediram a Warner Bros (estúdio que produziu Coringa) que fizesse campanha contra as armas de fogo. 
Sete anos depois de outro Batman ser palco de um massacre, os cinemas americanos ampliaram a segurança para tentar evitar que Coringa inspire um novo ataque. Vários cinemas proibiram que espectadores vão com maquiagem ou máscaras de palhaços. 
Sem dúvida, o filme gera grandes expectativas. Este foi um comentário deixado no meu blog em 1o de outubro: 
"Dois dias pro maior filme de todos os tempos!!! Chora, leitoa maldita, você e todas as malditas feminazis, não adiantou a lacração toda, mesmo com sua militância 24h, eu e meus camaradas seremos representados no cinema, num filme que será Oscar e maior bilheteria da história de filmes baseados em personagens de quadrinhos. O futuro é lindo, é brilhante. Vou estar lá, na estreia do fodendo Coringa!!!"
Pois então, quem são esses bizarros homens anônimos que chamam feministas de feminazis e pensam que um filme de sucesso nos fará chorar? Ora, são os incels (celibatários involuntários, vulgos “virjões”). Incels acham que já já os homens irão se rebelar e, Deus meu, começar a matar mulheres (alguém poderia avisá-los que isso já acontece). 
Incels são um subgrupo de um movimento muito maior, que nos países de língua inglesa se autointitulam Men's Rights Activists (Ativistas pelos Direitos dos Homens), e, aqui no Brasil, se chamavam de masculinistas, até que uma feminista (eu, modéstia à parte) passou a apelidá-los de mascus (uma mera abreviação!), e acabou com o masculinismo, pelo menos no nome, pois ninguém quer ser tachado de mascu. 
Mas eles continuam se chamando de Sanctos, Guerreiros da Real, MGTOWs (Men Going Their Own Way, ou Homens Seguindo seu Próprio Caminho), PUA (pick-up artists, ou artistas da sedução), incels, por aí vai. Esses grupos vivem brigando entre si, mas são todos iguais. Todos são compostos por homens de direita que odeiam mulheres (principalmente feministas), negros, LGBT, e a sociedade de forma geral. Obviamente, ninguém precisa passar mais de dois minutos num fórum ou canal mascu para sacar que o único direito que eles defendem é aquele de ser babaca e de poder atacar impunemente grupos historicamente oprimidos. 
O termo incel ganhou força a partir de maio de 2014, quando um americano de 22 anos chamado Elliot Rodger deixou um manifesto de 140 páginas em que escreveu "Um dia incels vão perceber sua força real e quantidade, e irão derrubar este sistema feminista opressivo. Comece a enxergar um mundo em que as mulheres te temem". Seu passatempo era estacionar o carrão nas ruas da Califórnia e espiar casais interraciais. 
Ele não entendia como "aquelas vadias" podiam preferir um negro a ele, um cara tão bonzinho! Tentou as táticas PUA para conquistar mulheres que, surpresa, não funcionaram, e passou a odiar os PUA também. Numa tarde saiu de casa, matou seis pessoas (um massacre frustrado; ele planejava matar muito mais), e se suicidou em confronto com a polícia. Rodger odiava as mulheres por ser virgem, pois se via como um “cavaleiro supremo”.
De um incel num fórum mascu no Brasil em 2014: "Não adianta minha família me dar um celular, quando na verdade me sinto infeliz sem uma mulher pra ter sexo nesse exato momento, o que tem de errado comigo pras mulheres me desprezarem? Como queria agir como o Elliot Rodger agora, sair aniquilando todas aquelas que me desprezam, todas elas caindo no chão, mortas em minhas mãos, isso me faria bem, me faria entrar pra história. Ah, se eu tivesse duas armas, e acesso a todas as vadias que me desprezaram, juro que aniquilava todas com maior prazer. Elas dão sexo pra outros caras, enquanto pra mim tentam me humilhar, não acho justo isso, eu queria fazer alguma coisa contra isso, mas é uma merda não ter dinheiro nem pra armas". 
Rodger influenciou muitos mascus a se vingarem. Afinal, os fóruns mascus que pregam "O mundo te odeia. Devolva este ódio", dizem que, se você é um homem sem destaque entre as mulheres, sem a admiração e inveja de outros homens, o que você prefere ser: "a hero or a zero" (um herói ou um zero)? Pra ser herói, tem que matar “a escória” e, preferencialmente, morrer num confronto. 
Um dos inspirados por Rodger foi Alek Minassian, um canadense que alugou uma van para atropelar e matar dez pessoas (oito delas mulheres) em abril de 2018, em Toronto. Ele sobreviveu e disse que fez o que fez pra incitar uma revolução incel. Ao definir incels, disse que “É um movimento para homens como eu, incapazes de conseguir uma mulher para transar, portanto queremos derrubar os Chads [machos alfa] para forçar as Stacys [mulheres bonitas] a se reproduzirem com os celibatários involuntários". 
Dois meses antes de Missanian, Nikolas Cruz, 22 anos, matou 17 pessoas na escola onde havia estudado na Flórida. Deixou escrito num vídeo: "Elliot Rodger não será esquecido". Há vários outros casos. 
Fica a pergunta: como esses sujeitos podem ser vistos como "lobos solitários" ou "doentes mentais" se fazem parte de um movimento de ódio que diariamente os motiva, recruta e celebra?
De Marcelo Valle, criador de um fórum mascu, em fevereiro de 2018, dois meses antes de ser preso: 
"Estamos indo para o 4o ano do aniversário do Massacre de Isla Vista, uma data simbólica onde o primeiro passo da luta contra o feminismo e a degeneração foi dado. A vida de Elliot [Rodger] não foi em vão, motivou vários outros e abriu os corações para o Uprising Beta [a revolta dos homens que não são alfa]. Porém, peço que vcs não se matem, não AGORA. Esperem o Bolsonaro legalizar o porte da armas. Vivam suas vidas, façam o que vcs querem fazer, rodem o mundo, transem com prostitutas. Quando vc tiver feito tudo o que quer fazer nesta vida, pegue uma arma de fogo e saia atirando contra a escória. E sempre atire em mulheres para MATAR. A vida de um homem não tem valor na sociedade matriarcal. Se a vida de vcs é uma merda a culpa é dos judeus, mas lembre-se que os judeus só conseguem te atingir porque usam as MULHERES. Matar mulheres é como acabar com o instrumento que o JUDEU usa para perverter a sociedade".
Certo, mas o que isso tudo tem a ver com Coringa? Por que incels veem a produção como seu filme de cabeceira, e estão dispostos a matar por ele
Primeiro é preciso explicar que Coringa não se passa nos dias de hoje. Passa-se em Gotham City, que é a cara da Nova York dos anos 70 e 80, uma cidade suja e abandonada. Não é só um universo alternativo por retratar uma história em quadrinhos, mas por ser um filme de época (antes de existir internet. Talvez, hoje, Arthur ficaria o dia todo no computador odiando). 
Aliás, se passa num cenário que parece tirado diretamente de Taxi Driver, clássico de 1976. Todas as cenas de Arthur apontando uma arma pra TV, de seus encontros com a “namorada”, vem de lá. Mas Travis Bickle, personagem de Taxi Driver, apesar de perturbado e paranoico e inadequado com as mulheres (ele leva sua paquera para ver um filme pornô no primeiro encontro), não era um incel. Ele tenta salvar uma menina prostituta, algo que mascus jamais fariam. 
Mais uma referência de Coringa é outro excelente filme de Martin Scorsese com Robert De Niro, O Rei da Comédia, em que um inapto social que mora com a mãe e que quer muito se tornar comediante (em parte para impressionar seu interesse romântico, também uma mulher negra, como em Coringa) sequestra o apresentador de um programa de TV para poder participar. 
Devo confessar que recentemente ouvi um podcast de um mascu que imitava O Rei da Comédia. Suponho que ele não saiba da existência do filme de 1983, mas era parecido. Ele fazia sua própria claque para se sentir o sujeito mais engraçado do mundo enquanto despejava solitariamente seu ódio pelas mulheres.
No começo de Coringa Arthur é espancado por um grupo de jovens pobres e negros. Em seguida uma mãe negra manda que ele pare de perturbar seu filho no ônibus (tudo isso está no trailer). 
Toda a vida de Arthur é uma miséria, mas em nenhum momento ele culpa as mulheres. “Tudo que tenho são pensamentos negativos”, conta ele à assistente social, que mais tarde lhe dirá: “Eles não dão uma f*da por pessoas como você”, ao explicar que o programa social acabou (e Arthur não receberá mais os sete medicamentos que toma para controlar suas emoções). “Eles não dão uma f*da por pessoas como eu”, acrescenta ela, que é negra. Arthur não tem empatia por ela. 
Nem pela moça que três rapazes assediam no metrô. Meio sem querer, meio querendo, Arthur (spoiler) mata jovens investidores no metrô (se eles fossem realmente ricos, andariam de metrô?). Duas dessas mortes quase podem ser vistas como auto-defesa. 
Isso faz com que a plebe o encare como um justiceiro e passe a gritar “Matem os ricos!” Claro que apenas a ação de Arthur não é suficiente para iniciar o "movimento". O discurso preconceituoso do magnata Thomas Wayne, que quer ser prefeito, ajuda a acirrar os ânimos. Num momento, conhecemos Bruce quando criança. O filme sobreviveria bem sem essas cenas, mas aí não teria ligação com Batman. 
Na vida real, incels não querem matar ricos (talvez ricas). Eles querem ser ricos e transar com as ricas. E, curiosamente, vários incels são ricos, embora não por mérito próprio. Por exemplo, Elliot Rodger era filho de produtor de cinema de Hollywood. Marcelo Valle, quando foi preso em 2012, tinha R$ 440 mil na sua conta. Nada mal para um rapaz de 27 anos que não trabalhava nem estudava (é filho único de mãe funcionária pública de alto escalão). O fascínio que tantos incels têm com finanças pessoais é um indicador do quanto eles idolatram dinheiro. Com grana, eles acham que podem comprar mulheres e causar inveja em todos os homens. 
De um mascu que tinha um bem-sucedido blog de misoginia, racismo e misoginia uns anos atrás: 
“Vejo no supermercado algumas loirinhas gostosinhas fazendo compras. Otárias vadias de merda nem me olhar olham. Porque? O que eu fiz pra ser tão lixo geneticamente que eu causo repulsa nas mulheres? Porque elas não podem me desejar como eu desejo elas? Vou pra sessão de bebidas, compro minha bebida que estou afim, vou pro caixa, as caixas são estúpidas comigo devido feiúra, fico irritado e vou embora pra casa. […] Que tipo de vida é essa? Eu nasci pra isso? Elas (mulheres) e os alfas me oprimem pra isso? Pra ser um merda? […] Qual o sentido da vida afinal se nascemos geneticamente inferiores, betas, pobres e trabalhamos 12 horas por dia por um salário de merda, sem amor de ninguém, sem sexo de ninguém, sem admiração, respeito de ninguém? Estamos no mundo pra ser a chacota da elite e do sexo feminino? Até quando? Até quando?”
Pela fala desse mascu, que não era incel, já que pagava prostitutas para transar com ele (e fazia listas e as compartilhava com seus leitores), o ódio maior é contra as mulheres que o ignoram ou o olham com repulsa, mas também há o rancor de ser “a chacota da elite”. Arthur, se não fosse invisível, poderia ser essa chacota. No metrô, ele é. Mas um mascu jamais se vingaria da elite. Pelo contrário, tudo que ele quer é fazer parte da elite.  
Ao que me leva à outra questão: o que quer Arthur? Ser aceito? Por quem? Ele quer que não riam dele ou que riam dele? Quer ter uma namorada? Liderar um movimento? (não mesmo). Oferecer uma vida melhor para a mãe, antes de descobrir a verdade sobre ela? (aliás, qual é a verdade?).
Algo que fica claro no filme é que Arthur quer uma figura paterna. E, isso sim, o aproxima bastante dos mascus. 
Por algum motivo, muitos mascus são filhos de mães solo, não têm figura paterna e se ressentem disso. Vários foram largados pelo pai quando criança ou não sabem quem é o pai. Porém, em vez de culparem os homens que os abandonaram, eles culpam a mãe. Por sinal, essa é uma diferença clássica entre machistas genéricos e mascus. 
Os primeiros acham que nenhuma mulher presta, exceto a mãe, que é uma santa. Já os segundos acham que nenhuma mulher presta, ponto. Isso inclui suas próprias mães, que eles chamam de vadias. “Não existe mulher exceção”, repetem eles. 
De um incel: "Antes de conhecer a Real [um movimento mascu] eu tinha pena de mães solteiras e as via como 'guerreiras', depois percebi que não passam de vadias que estão colhendo o que plantaram rebolando em picas de cafas”. 
De um mascu contando num fórum seus conselhos para um menino de 8 anos que não é seu filho: "Falamos de desenho animado e eu sempre aproveitava para dar alguma lição para ele. Falar como um homem deveria se comportar diante dos fatos. Falei que ele tinha que falar outro idioma, pois ele seria alguém mais preparado para ser alguém de sucesso, ai ele disse, humm, eu quero ser alguém de sucesso, tipo o Batman da Liga da Justiça e aí eu disse que eu era o Flash."
Há duas palavras-chave quando falamos de mascus. Uma é ressentimento, que pode também ser compreendida como ódio. Eles se ressentem por não serem levados a sério (não à toa, esta é também uma palavra fundamental para descrever Bolsonaro, seus ministros e gurus). 
A outra é entitlement, que pode-se traduzir como um sentimento de merecimento. Mascus em geral creem que, por terem nascido homens, a grande maioria homens brancos e héteros, merecem vagas nas escolas e faculdades, ótimos empregos, as “melhores” mulheres. Muito da sua revolta é porque tantas vezes esses privilégios não são imediatos nem chegam tão fácil. Mas Arthur não se acha merecedor de nada disso, e tampouco parece ressentido. 
Permitam-me um spoiler. Quase no final do filme, vemos um motim que ocorre diante de um outdoor de uma mulher nua de quatro, numa propaganda de algum filme pornô chamado Ace in the Hole (que também é o título de um clássico de 1951 conhecido no Brasil como A Montanha dos Sete Abutres, que critica o sensacionalismo da mídia). A mulher de quatro no outdoor é praticamente a única mulher presente no meio daquela multidão. 
Ainda assim, a cena não parece ter muito a ver com o tão sonhado “beta uprising” dos incels, “o dia da retribuição” que pedia Rodger. E no entanto esta deve ser a parte mais perigosa do filme, talvez a que fale mais alto aos incels. Mas não há ódio às mulheres. Há ódio ao sistema, ódio de classes. Mascus nunca embarcariam nessa, já que são de direita.
Comentário deixado no meu blog em 8 de outubro: "Eu, assim como Arthur, sofri por toda a minha vida, fui rejeitado e desprezado, nunca perdi a virgindade, trabalho em um emprego de bosta pra ganhar um salário mínimo de merda que não dá nem pra suprir a maioria das minhas necessidades. Arthur Fleck é alguém falido, tendo de sobreviver com uma merreca como palhaço fracassado, é despedido, e o único relacionamento amoroso dele, beirando os 40 anos, é fruto ilusório da mente dele. SE ISSO NÃO É NOS REPRESENTAR, EU NÃO SEI O QUE É. Vadia mau caráter, desgraçada".
Sim, certeza que a DC se juntou com a Warner para fazer um filme pra representar terroristas misóginos, floquinho de neve especial. 
Um leitor meu arriscou um outro palpite para a identificação incel com Coringa: "Tem um motivo meta também que é o fato de considerarem uma resposta a DC que tem tentado investir em um público mais progressivo, com personagens mulheres e LGBT. O que reaças chamam de 'SJW' (social justice warriors, ou justiceiros da justiça social). Assim, Coringa seria filme para homem de verdade, diferente do 'lixo SJW' da Marvel e DC".
Pode ser, mas tudo indica que incels acreditaram que Coringa foi feito pra eles antes de ver o filme. São tão carentes que precisam ter uma superprodução pra chamar de sua. Há algo menos representativo dos “jorges de quarto” que o fato que Arthur sequer se masturba –- ele prefere dançar? Ou será que incels brasileiros ainda se lembram de uma dica de um guru do masculinismo que, quase duas décadas atrás, sugeriu aos seus discípulos um jeito infalível de atrair mulheres: gargalhar de jeito estranho? Isso Arthur faz. Não se pode dizer que funciona. 

Pessoalmente, não achei o filme tóxico. A parte mais "perigosa" é no final, quando Coringa é visto como um herói, um mártir, um modelo, pelos manifestantes. Como estamos falando de incels, rapazes que acham que não têm nada a perder, muitos com tendências suicidas, que passam o dia em fóruns online em que são incitados a "devolver o ódio" que a sociedade supostamente despeja contra eles, o final de redenção através do sacrifício é instigante para eles. Mas isso é como eles enxergam o filme, não necessariamente como o filme é. Coringa só é uma inspiração a ser seguida para mentes perturbadas como as dos mascus. 
Na noite de 7 de outubro recebi este comentário no meu blog: "Eu pensava que a minha vida era uma tragédia, hoje percebo que é uma comédia. Lola, depois de assistir Coringa, minha visão sobre o mundo e sociedade mudou completamente. Antes eu me odiava por te odiar tanto, agora eu odeio todo mundo e não estou nem aí. Foda-se a sociedade. Obrigado, Coringa! Eu ainda estou vivo, Lola, eu ainda estou aqui, eu sou o verdadeiro marginalizado, o fantasma, a sombra que ninguém enxerga. E agora, mais do que nunca, eu te odeio. E eu amo te odiar! Não viveria sem odiar, e não mais me culpo por isso. Esse é o meu destino na vida, não vou mais tentar mudar minha natureza, JAMAIS. Ao invés disso, vou pôr um sorriso no meu rosto". 
Que coisa. Eu sou o Batman dele.
Vejam meu vídeo sobre Coringa no Fala Lola Fala, com spoilers. É bem diferente deste texto.