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quarta-feira, 11 de novembro de 2020

ZVEREV E OLYA E O SILÊNCIO DA ATP SOBRE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Recentemente veio à tona uma acusação de violência doméstica contra o tenista número 7 do mundo, Alexander Zverev, sobre o qual a ATP (Associação de Tenistas Profissionais) ainda não se pronunciou. Publico o guest post da Joseane, que explica tudo (e o texto é mais do que sobre tênis, é sobre violência contra as mulheres).

Há 2 semanas o mundo esportivo foi pego de surpresa por mais um escândalo. Mas dessa vez não se trata de futebol, e sim, de tênis, que, embora seja elitista, ainda é um esporte popular pelo mundo e há resquícios de fanáticos pelo Brasil e Argentina através dos feitos de Gustavo Kuerten ao ser tricampeão do Roland Garros (um dos Grand Slams mais populares entre o público), e outros nomes como Gastón Gáudio, irmãos Cória, Juan Martín Del Potro (lesionado) e atualmente, Diego Schwartzmann.

Apesar da baixa no Brasil, o esporte possui uma audiência cativa: não são apenas trocas de bolas ou “ping-pong” em grandes quadras: o tenista mostra também a sua personalidade, garra ao lutar por cada ponto, seu carisma. Assim, o público decide com quem se identifica mais. Na última década, o esporte na modalidade masculina foi dominado por Roger Federer, Rafael Nadal e Novak Djokovic (envolto em escândalo por ser anti-vacina, promover um torneio na região dos Bálcãs em plena pandemia e acertar acidentalmente com uma bola uma juíza de linha, sendo desclassificado do Aberto dos EUA de 2020).

Mas vamos falar agora de um dos tenistas promissores, fazendo parte da chamada nova geração (NextGen): Alexander Zverev. O alemão de 23 anos possui 11 títulos na ATP (Associação de Tenistas Profissionais), uma semi-final no Aberto da Austrália e uma final no Aberto dos Estados Unidos no mesmo ano. Ele é atualmente o sétimo colocado no ranking dos melhores tenistas do mundo.

Considerado um dos melhores de sua geração, o rapaz, carismático, ganhou uma legião de fãs pelo mundo. A ATP enxergou o que poderia ser provavelmente o sucessor de Roger Federer em sua possível aposentadoria, já que Zverev é visto por muitos como a versão masculina de Maria Sharapova (loiro, alto, americanizado, atraente e com raízes russas). Mas não é apenas dentro das quadras que o alemão chama a atenção: sua vida privada é deveras conturbada. Seu treinador, seu pai, Alexander Zverev Sr., protagonizou cenas lamentáveis de gritos. Trocou de empresário e hoje é agenciado pela Team8, empresa de Federer.

Mas vamos aos fatos: sua última namorada, a modelo alemã Brenda Patea, com quem Zverev se relacionou entre o final de 2019 e agosto de 2020, está grávida de 5 meses do rapaz. A moça se pronunciou nos seus stories no Instagram dizendo que é abençoada por poder criar seu filho sozinha e que não pretende dividir a custódia com o atleta. 

No mesmo dia a fotógrafa russa de Moscou Olga Sharypova, chamada em seu círculo íntimo pelo diminutivo Olya, fez um post no Instagram revelando que havia sido agredida fisicamente e verbalmente em seu último relacionamento, em agosto de 2019. Seus seguidores logo fizeram a associação a Alexander Zverev, ou Sascha, como é chamado. Os relatos da moça são assustadores. Em uma entrevista concedida ao repórter freelancer Ben Rothenberg à revista Racquet, Olya conta os detalhes de como se conheceram: aos 15 anos os dois competiam em torneios juniores, e ali foi pedida em namoro. 

Porém, os dois foram em direções opostas. Olya, amante da psicologia e principalmente da fotografia, deixou o tênis, enquanto o rapaz se mostrava o menino prodígio do esporte. Seis anos depois, Zverev reconheceu a moça através de uma foto postada em seu Instagram, e ali recomeçaram o namoro. “Começamos a conversar e então ele me pediu para ir à Mônaco para nos vermos”. Foi em Mônaco a primeira vez que ele a agrediu fisicamente. (Alerta de gatilho: as situações relatadas podem desencadear lembranças em vítimas de abuso). “Eu ia ir embora porque tivemos uma grande briga. Eu estava em pé no corredor e ele bateu minha cabeça contra a parede.” Com o golpe, ela caiu. Assustado, ele passou a colocar a culpa nela, alegando que ela o teria agredido primeiro, o que ela assegura ser mentira. 

Depois disso veio a violência emocional. Começou numa viagem às Maldivas, em 2018, e continuou. Zverev sempre enfatizava seu sucesso: “Você não ganhou nada nessa vida, eu sou uma pessoa bem sucedida, e você? Você não é ninguém”.

Olya Sharypova também relata que não podia passar o tempo livre com seus amigos em Moscou, sendo sempre chantageada pelo então namorado: “Você não me ama? Você não gosta de ficar comigo? Você os prefere a mim?” Ela era controlada de todas as maneiras pelo namorado, não importando a distância. Qualquer coisa que desse errado para ele, ela sempre se sentia culpada. 

No Aberto dos Estados Unidos em agosto de 2019, em Nova York, Olya diz que temeu “pela sua própria vida”. As brigas nunca tinham um motivo concreto, segundo ela relata, sempre iam do verbal ao físico: “Eu estava gritando, porque ele me jogou na cama, pegou um travesseiro e se sentou em meu rosto. Eu não pude respirar por um momento, eu só estava tentando sair de lá. Eu estava gritando e então comecei a correr”. Um homem de 1,98 m de altura sentou-se em seu rosto e a deixou sem respirar.

Olya correu descalça, apenas com o celular na mão e a bateria prestes a descarregar, sem suas roupas e sem seu passaporte, pois Zverev não queria entregá-lo. Ela então pediu ajuda a um amigo, Vasyl Surduk, que dirigiu de Nova Jersey à Nova York para ajudá-la. Quando Olya contou o que aconteceu, ninguém acreditou, inclusive a madrasta de Vasyl, que fez com que o casal se reconciliasse. 

Mas antes da reconciliação, no dia seguinte, Olya, acompanhada de Vasyl, voltou ao hotel para pegar seus pertences. Quando ela entrou no quarto, encontrou seus pertences jogados no corredor do hotel, faltando muitas das suas coisas, além do passaporte e dos presentes dados a ela. Ele alegou que iria ficar com os presentes por dados a ela por ele, humilhando-a. Depois disso, Zverev, que tinha contato com Vasyl, ligava para ele perguntando por Olya e explica que “Bem, eu sou homem, e homens tendem a confiar em homens”. 

Graças à madrasta de Vasyl, os dois se reconciliaram. Mas o ciclo abusivo continuou. Na Laver Cup (evento criado pela Team8) de 2019 em Genebra, Olya sofreu mais um abuso emocional e físico: “Tivemos uma nova briga, e nessa briga ele socou meu rosto pela primeira vez. Em outras brigas ele me empurrava, me encurralava, torcia meus braços, me asfixiava. Mas essa foi a primeira vez que ele me socou, ele realmente me socou. Depois disso eu deixei o quarto, e eu estava morrendo. Eu estava morrendo emocionalmente. Eu não entendia nada na minha vida. Eu não podia entender por que eu estava lidando com isso, porque ele não me deixava, porque isso continuava acontecendo. Eu entendi que eu não podia viver mais com essa pessoa, mas ele não conseguia me deixar. E não me deixaria ir embora.”

Zverev é diabético, então Olya, que é saudável, pegou uma dose de insulina do seu então namorado e injetou-a em si mesma, tentando o suicídio, dentro do banheiro com a porta trancada. Ele então percebeu o que aconteceu e suplicou para que ela abrisse a porta, e teve que pedir ajuda a um oficial do evento (que não quis se identificar e nem colaborar com o testemunho da moça) para pedir que ela abrisse a porta. “(Eles estavam) dizendo, ‘por favor, Olga, abra a porta, precisamos te ajudar’ eu só chorava, e não sabia o que fazer. Eu abri a porta”. 

Ela diz no relato a Racquet que tomou o que acredita ser pastilhas de glicose, mas que ficou durante três dias na cama, até se recuperar completamente. Eles terminaram o namoro em outubro de 2019, no Masters de Xangai, onde ela diz terem acontecido mais coisas, que ela ainda não está preparada para contar. Ela diz em seu post no Instagram que não tem mais medo, que ela é uma pessoa e que ela vai ser ouvida. Ela encoraja outras mulheres que passaram por relacionamentos abusivos, e não têm intenção de levar a violência aos tribunais ou ganhar fama com isso, a desabafar sobre um pesadelo  que, a princípio, pelo menos para Olya, parecia um conto de fadas.

Depois dessa história de terror vivida por Olya, ela mostra provas para corroborar sua narrativa, como prints de conversas no Whatsapp, fotos (ainda não reveladas) do rosto e braços machucados, e até fala em vídeos do Lotte New York Palace, hotel onde ficaram hospedados durante o Aberto dos EUA (os vídeos não foram cedidos pelos seguranças do hotel e provavelmente, pelo tempo, não devem nem existir mais). Muitos duvidam da palavra da fotógrafa. Muitos continuam acusando-a de querer fama às custas de um tenista em ascensão, dizendo que ela não superou o fim do namoro, que é uma golpista. Vários perguntam: “Mas por que ela não denunciou antes?”, “Por que ela está falando somente agora?”, “E o princípio da presunção de inocência?”. Bem, todas essas perguntas possuem resposta.

Medo do julgamento de pessoas de seu próprio entorno e de seu companheiro. Vergonha de falar publicamente que foi/está sendo vítima de abuso. O descrédito: assim como aconteceu com Olya Sharypova, muitas pessoas não acreditam na palavra da vítima e reproduzem falas machistas, desencorajando outras vítimas de denunciarem. O vínculo afetivo. “Eu continuei porque eu o amava”. 

A insistência no “inocente até que se prove o contrário" só imputa que, caso a vítima não tenha ido à polícia denunciar, a violência não ocorreu. Se um caso não chega aos tribunais, é porque não aconteceu. O que sabemos não ser verdade. A maior parte das agressões contra mulheres não são denunciadas.

Esses são apenas alguns dos motivos que faz com que as vítimas não denunciem seus agressores. 

O outro lado

Logo que vieram à tona as acusações de agressão contra Olya e o anúncio da gravidez de sua última namorada, Alexander Zverev fez uma declaração no Instagram declarando que seria pai e que possui uma ótima relação com sua ex, Brenda (com quem ele não tem contato desde agosto deste ano, quando terminaram, segundo a própria), e que as acusações de Olya “simplesmente não são verdadeiras”, um verdadeiro show de gaslighting.

E a ATP?

Para quem não sabe, a Associação de Tenistas Profissionais possui um manual onde devem ser respeitadas condutas, dentro e fora das quadras. Por exemplo: 

“É obrigação dos jogadores da ATP e Pessoas Vinculadas abster-se de praticar condutas contrárias à integridade do jogo de tênis. [...] Um jogador, ou pessoa relacionada, que a qualquer momento se comportou de maneira gravemente prejudicial à reputação do esporte pode ser julgado em virtude de tal comportamento como tendo praticado conduta contrária à integridade do Jogo de Tênis. [...] Um jogador acusado de uma violação de uma lei criminal ou civil de qualquer jurisdição pode ser [suspenso] provisoriamente de futuras participações em torneios ATP enquanto se aguarda a determinação final do processo civil ou criminal. [...] A violação desta seção sujeitará o jogador a uma multa de até $ 100.000 e/ou suspensão do jogo em torneios ATP Tour ou ATP Challenger Tour por um período de até três (3) anos."

Agora, fica a pergunta: por que após as alegações de Olya Sharypova não aconteceu nada com Alexander Zverev, sequer uma investigação da ATP? Sabemos que tênis tende a ser um esporte elitista, e quanto mais elitista, mais machista. Sabemos como funciona o patriarcado. Além disso, há o fato de Zverev possuir mecanismos de defesa financeiros, sendo apadrinhado por Roger Federer que, durante toda sua carreira, nunca se envolveu em nenhum escândalo e sempre prezou pela discrição, sendo admirado por colegas e por torcedores. 

Mas por que o Team8 insiste neste rapaz problemático que, além das acusações e a paternidade, se envolveu em uma polêmica festejando em pleno lockdown? O que se sabe é que o mesmo Team8 gastou milhões com Zverev. Protegê-lo é proteger a imagem imaculada de Federer. Mais uma vez o dinheiro vale mais que a palavra de uma mulher que sofreu abusos psicológicos e físicos. 

Também é sabido que Bela Anda, o especialista em relações públicas em gestão de crises contratado por Zverev, foi porta-voz do governo alemão e chefe do Gabinete de Imprensa e Informação do Governo Federal alemão durante alguns anos quando Gerhard Schröder foi chanceler, de 1998 a 2005, provavelmente custeado pelo Team8. O que se sabe até então é que seu contrato com a empresa Adidas termina no final do ano, e uma das motivações da empresa é o lado social, como o combate à violência doméstica. 

Então, como ter como garoto-propaganda um homem acusado de tal crime? Todos os tipos de violência citados, a violência psicológica, patriarcal, física, todos foram relatados com riqueza de detalhes e muita coragem por parte de Olya. Até então a única a se manifestar em defesa da russa foi a tenista australiana Daria Gavrilova, pois na Austrália há uma forte campanha contra violência de gênero, subindo a hashtag #IStandWithOlya (Eu apoio Olya). Do restante, apenas silêncio. 

O jornalista Jon Wertheim do Sports Illustrated perguntou a um executivo da NBA o que aconteceria com Zverev se ele fosse jogador de basquete. A resposta foi: “Ele provavelmente seria suspenso provisoriamente com pagamento enquanto se aguarda o resultado da investigação; pelo menos de acordo com a política de violência doméstica aplicável da NBA”. Na NFL (Liga Nacional de Futebol Americano), da mesma maneira. 

Aqui no Brasil setores da sociedade (principalmente os movimentos feministas) se mobilizaram para que fosse suspenso o contrato do jogador de futebol Robinho pelo Santos, condenado por estupro em primeira instância na Itália e acusado de estupro também na Inglaterra, quando atuava pelo Manchester, em 2009. 

Por que então apesar de tanta repercussão, o tenista segue livre, leve e solto, jogando torneios pela ATP como se nada tivesse acontecido? Por que o público do tênis não enfatiza sua indignação? Bem, o certo é que realmente há indignação. O que é necessário é que se faça mais barulho para que a ATP se comprometa em situações como essa e não promova abusadores (ele é o segundo caso esse ano, o primeiro foi o top 30 Nikoloz Basilashvili), investigue e puna. 

Todos os esportes possuem um papel transformador na sociedade, e não podemos aceitar ídolos com tais condutas dentro do esporte. O esporte educa, e com o tênis não é diferente. Por isso sim, eu apoio Olya e como acompanho o esporte, exijo um posicionamento da ATP e a suspensão de Alexander Zverev. Assinem a petição pedindo a suspensão de Zverev.

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

A PRESSÃO CONTRA ROBINHO E A COMPARAÇÃO COM UM ESTUPRO DE 33 ANOS ATRÁS

Até agora, eu não estava acompanhando direito a história do jogador de futebol Robinho, que foi condenado em novembro de 2017 por participar, junto com outros quatro amigos, de um estupro coletivo contra uma mulher de 23 anos de origem albanesa, numa boate em Milão, em 2013.

Ele e o amigo Ricardo Falco foram condenados em primeira instância a nove anos pela justiça italiana e a um pagamento de indenização de 60 mil euros. O processo está em andamento (apenas depois de passar pelas três instâncias alguém é visto como culpado, e é aí que acontece o início do cumprimento da pena), mas só os trechos da sentença divulgados hoje pelo jornalista Lucas Ferraz já dizem muito sobre o caráter, ou a falta de caráter, de Robinho, que não viu nada de errado em "transar", ou "tentar transar", com uma mulher completamente bêbada, sem condições sequer de ficar em pé. Uma pessoa bêbada não tem como consentir. 

Os trechos adquiridos através de grampos que constam na sentença (em segredo de justiça) foram fundamentais para a condenação, pois serviram como prova de que Robinho e os demais sabiam como a vítima estava. Por exemplo, num dos trechos o jogador declara: "Olha, os caras estão na merda... Ainda bem que existe Deus, porque eu nem toquei aquela garota. Vi [nome de amigo], e os outros foderam ela, eles vão ter problemas, não eu... Lembro que os caras que pegaram ela foram [nomes de dois amigos]. [...] Eram cinco em cima dela".

Em outro momento, ao ser avisado por um músico sobre a investigação policial, Robinho responde: "Estou rindo porque não estou nem aí, a mulher estava completamente bêbada, não sabe nem o que aconteceu". O amigo músico então pergunta: "Mas você também transou com a mulher?"

Robinho: Não, eu tentei.

Amigo: Eu te vi quando colocava o pênis dentro da boca dela.

Robinho: Isso não significa transar.

Um dos advogados de Robinho afirma que insistirá que a relação foi consensual e que não há prova de que os envolvidos no crime induziram a mulher a beber ou tomar droga para em seguida se aproveitar sexualmente dela. "Fazer sexo com uma pessoa bêbada ou drogada não fere a lei. Não estou dizendo que ele é uma pessoa perfeita. Ele mesmo reconheceu ter tido uma conduta pouco séria, mas crime não cometeu".

Dois meses depois do Santos fazer uma campanha condenando a violência contra a mulher, em agosto deste ano, o clube contratou Robinho, que já havia atuado lá. Um dos dirigentes do Santos alegou: "Robinho não está condenado com trânsito em julgado. Quem somos nós para atirar pedra no Robinho? Atire a primeira pedra quem nunca pecou e será que ele pecou? Vamos esperar o desfecho do processo".

Ao perder a Orthopride, um dos patrocinadores, o Santos disse que garante a presunção da inocência ao jogador. E se queixou dos "cancelamentos", da "cultura dos tribunais da internet". Outra advogada de Robinho já havia reclamado da "lacração".

Como diz Ricardo Fulgoni, que já contou sua terrível história aqui de como conseguiu justiça para o feminicida de sua irmã, "É possível conciliar a pressão sobre o Santos no caso Robinho com a defesa da presunção de inocência. Os efeitos penais, só após o trânsito em julgado. No entanto, as provas legitimamente publicizadas  -- não o processo, mas as provas - geram desde logo seus efeitos morais e sociais. Por isso o processo tem de ser, em regra, público. Para que não se retarde os efeitos dos fatos. Os efeitos não penais (sociais, morais, etc), portanto, não advém do processo, mas dos fatos contados pelas provas nele produzidas. Presume-se o réu inocente até o trânsito. Mas os fatos não dependem do trânsito para, ressalvados os efeitos penais, serem considerados verdade".

Casagrande falou hoje: "Eu tô assustado com a sociedade brasileira. O Brasil solta traficante. O vice-líder é preso com dinheiro na cueca. A Carol Solberg, por se manifestar politicamente, a CBV faz censura. E o Santos contrata um jogador condenado por estupro". Já Robinho jurou estar "tranquilão" depois do vazamento da sentença. Para ele, a Globo só quer ganhar ibope ao dar "muita ênfase para coisa negativa".

Um perfil que vende camisas desenterrou esta história de 1987 que eu nunca tinha ouvido falar, mas que é extremamente pertinente ao caso atual. Leia, revolte-se, e não pare de questionar: "Mudamos?" Eu volto no final. 

Em 1987, uma multidão de gremistas e colorados lotou o saguão do aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, pra recepcionar com entusiasmo uma pequena comitiva de quatro reservas do Grêmio que estavam voltando da Suíça. O motivo mostra como o Brasil tem orgulho do seu machismo.

O Grêmio era pela terceira vez consecutiva campeão gaúcho. Próximo passo: cruzar o Atlântico em excursão para a Philips Cup, na cidade de Berna, Suíça. De cara, o Grêmio venceu o Benfica, de Portugal, impressionando pelo segundo ano seguido a garota Sandra, de 13 anos.

Como no ano anterior, Sandra decidiu visitar a delegação do Grêmio  que estava hospedada no Hotel Metropole. Acabou batendo de forma aleatória no quarto 204. Foi atendida. Lutando contra a barreira do idioma, tentou comunicar que gostaria de ganhar uma camiseta como souvenir. Do outro lado da porta estavam os reservas do Grêmio Eduardo Hamester e Fernando Castoldi, que convidaram os visitantes a entrar, tentaram manter uma comunicação por grunhidos e gestos sem sucesso. A situação chamou a atenção de Henrique Etges e Alexi Stival, conhecido como Cuca. Ao verem a movimentação no quarto, entraram. Fecha-se a porta.

Sandra foi estuprada dentro do quarto no que os jogadores consideraram uma orgia. Jogaram-se sobre ela, imobilizaram. Dois homens a violaram, enquanto outros dois a acariciavam e seguravam.

Após 30 minutos de terror, Sandra foi à polícia e a equipe, aos treinos. Henrique e Eduardo foram presos na noite de quinta-feira. No dia seguinte, toda a delegação do Grêmio foi convocada pra reconhecimento dos demais envolvidos através de um espelho falso.

E assim estavam presos na Suíça, sob a acusação de estupro, os reservas gremistas Henrique, Eduardo, Cuca e Fernando, cada um em uma cela distinta e incomunicáveis – exceto por advogados – até o fim do inquérito, conforme a legislação do país.

Comitivas, advogados, Itamaraty, Embaixada, até João Havelange, à época chefão da FIFA foram tentativas de intervir sem sucesso pra livrar os rapazes entre 21 e 24 anos. O chefe da delegação insistia em dizer que foi um mal entendido pela barreira da língua que causou a situação.

A legislação da Suíça proibia relação sexual com menores de 16 anos. Crime sério. A denúncia de estupro, então, dispensa qualquer tipo de comentário em relação à gravidade.

O fato ganha destaque no noticiário internacional, respeitando a identidade da vítima. No Brasil, com especial destaque nos jornais gaúchos, foi dada abertura a palpites, comentários e achismos diversos, porém quase unânimes na defesa dos jogadores.

Presos, os jogadores estavam incomunicáveis até o término do processo, o que poderia durar até 30 dias. Não tinha como obter informações ou qualquer tipo de privilégio na Suíça, pois o sigilo judiciário lá é quase hermético.

Um embaixador da Suíça teve acesso às acusações e de fato, disse que eram gravíssimas. Entretanto, a menina, que até então tinha 13 anos, passa a ter “14 anos incompletos” que logo, por comodismo de discurso, viraram 14 anos. Para os jogadores, a idade era outra: 18. Parecia 18.

Foi dito que Sandra entrou no quarto dos rapazes e começou a tirar a roupa, se oferecendo. Quem afirmou foi o China, titular do time que já conhecia a menina da excursão do ano anterior. Ela estava tentando tirar a blusa que usava na hora para trocar por uma camisa do Grêmio.

A família também era entrevistada, afirmando que os jogadores seriam incapazes de fazer isso. Muito se falou sobre a índole impecável dos quatro. Aliás, se isso aconteceu mesmo, a culpa é da menina, que não deveria se meter no meio de quatro marmanjos assim.

Quase ninguém acreditava que eles tivessem estuprado a garota. Afinal, era uma “mocetona”, conforme expressão da época. A teoria difundida que ela havia se oferecido para orgia, pois no dia seguinte estava com uma camisa do Grêmio vendo um jogo. 

Diziam também ela já tinha transado antes e com o namorado, que estava com ciúme do que aconteceu no quarto 204 e foi enganado com a história do estupro. Na imprensa brasileira, informavam que jovens europeias têm vida sexual ativa muito cedo, inclusive tomam pílula desde novas. 

Para provar que era uma “mocetona” o fotógrafo Paulo Dias do Zero Hora fez de tudo pra tirar uma foto da menina, apesar do sigilo da sua identidade. Conseguiu pegar ela na saída da escola com a mãe. Quase apanhou de uns suíços no ato pela falta de respeito de fotografar uma menor. Tentou vender a foto pra imprensa europeia, mas não conseguiu. Em compensação, a foto foi destaque no jornal O Globo e Jornal do Brasil. O repórter que o acompanhava conta, aos risos, que também chantageou um repórter pra obter o nome completo da Sandra.

Depois de 28 dias presos, os jogadores foram liberados. Pagaram fiança e uma indenização à garota. Depois foram condenados, mas nunca cumpriram a pena. Os rapazes podem circular por aí livremente, como estão até hoje. Basta não pisarem na Suíça.

Após saírem da prisão, os rapazes admitiram sua culpa. Eles estavam muito envergonhados. Saíram da Suíça com medo da recepção, de como seriam julgados após 28 dias incomunicáveis. O horário do voo pra Porto Alegre foi escolhido a dedo para evitar a imprensa.

De fato, mal sabiam o que esperava os “Doces Devassos”, apelido que a imprensa esportiva gaúcha deu para os rapazes: um grupo de 500 pessoas entre imprensa e torcedores colorados e gremistas ocupava o Salgado Filho. No topo, as bandeiras do Inter e do Grêmio unidas.

O clima no desembarque era de festa. Envergonhados e pedindo desculpa, os jogadores do Grêmio demoraram para entender o que os gritos ensurdecedores de “PUTA, PUTA, PUTA!” e seu real significado. Eles eram heróis. Vítimas solitárias. Machos.

Depois, a retomada. Fizeram ensaio de foto, entrevista de heróis sobreviventes. Vítimas. Só voltaram a ser notícia quando saiu a condenação na Suíça. Seguiram jogando no Grêmio, já que a diretoria recebeu milhares de cartas pedindo pra que os garotos não fossem punidos. Só precisaram pagar as custas dos advogados, processo e indenização mensalmente para o Grêmio.

Hoje, Cuca é treinador de um dos maiores times do país, o Santos, e teve passagem em diversos clubes no Brasil e no exterior.

Sandra teve depressão e tentou suicídio aos 15 anos.

Eu, Lola, uma eterna otimista, acho que sim, mudamos nesses 33 anos. E pra melhor, ou pra menos pior, apesar de Bolsonaro. 

Certo, ainda temos exposição e condenação pública de meninas, como vimos no caso recente da garota de 10 anos que foi estuprada pelo tio e conseguiu abortar. Ainda se culpam as vítimas, e muito. Um assassino como o goleiro Bruno ainda é idolatrado por alguns. Cuca, um dos quatro do Grêmio, hoje é treinador do Santos (imagino as conversas fraternais que ele tenha com Robinho). Já o elogiou como "exemplo de jogador". 

Mas duvido que hoje, de cada 20 entrevistados na rua por uma emissora de TV, apenas um consideraria Robinho culpado, como ocorreu com os quatro jogadores do Grêmio na época. Por conta do ECA (Estatuto da Criança e Adolescente, que este ano completou três décadas), seria crime a imprensa publicar foto de uma vítima de estupro de 13 anos.
 
Hoje, em vez de um repórter fazer qualquer coisa para revelar a identidade de uma menina, um jornalista vai atrás da sentença em segredo de justiça. Também seria impensável a mídia chamar o jogador do Santos de "doce devasso". Ele ainda pode ser recebido com glórias e honras no aeroporto (aeroportos onde multidões se reuniam pra chamar quem idolatra torturador de "mito"), mas certamente haverá patrocinadores que cortam as verbas. 

Hoje fazemos muito barulho. Fazemos ativismo. Não aceitamos machismo, racismo, LGBTfobia. É o que alguns que são contra essas mudanças culturais chamam pejorativamente de lacração, cultura do cancelamento, tribunais da internet. Se não fosse a gente e a nossa pressão, haveria apenas quem consagrasse Robinho, quem o tratasse como herói por participar de um estupro coletivo. Como fazia a galera pré-internet de 1987. Estamos melhor hoje. E não vamos parar.

Update: