quarta-feira, 11 de maio de 2022

POR QUE A CÂMARA DE CURITIBA QUER CASSAR O VEREADOR NEGRO RENATO FREITAS?

Renato Freitas (PT) é um dos poucos vereadores negros na história da Câmara de Vereadores de Curitiba. E está pra ser cassado. Ontem, o Conselho de Ética da Câmara aprovou sua cassação por quebra de decoro.
No dia 5 de fevereiro o Coletivo Núcleo Periférico promoveu um ato antiracista. Ativistas se reuniram no Largo da Ordem, em Curitiba, em frente à Igreja Nossa Senhora do Rosário de São Benedito, para protestar contra o bárbaro assassinato de dois negros, Durval Teófilo Filho e o congolês Moïse Kabagambe. Durante o ato, eles entraram na igreja.
Um detalhe: essa igreja foi construída por escravos para os negros, tanto que é conhecida como Igreja do Pretos. Fica próxima ao pelourinho, onde os negros eram açoitados em Curitiba. Como pergunta a designer Suiane Cardoso, "A direita afirmar que manifestantes negros entrando em uma igreja é uma invasão é o que?"
A extrema-direita pegou o caso e o divulgou, com todas as mentiras que são sua principal característica, para todo o Brasil. O Gazeta do Povo, um dos jornais mais retrógrados do país, fez um carnaval em cima disso. Renato pediu desculpas, disse que era cristão e que não quis ofender a fé da ninguém. Em nota, disse também: "Nos surpreende perceber que exaltar o amor e a valorização da vida em uma igreja causa mais indignação que o assassinato brutal de dois seres humanos negros no Brasil".
Na época, a Arquidiocese de Curitiba registrou boletim de ocorrência contra Renato. Mas agora a própria Arquidiocese diz não ver motivo para a cassação de mandato.
Ontem houve um ato em frente à Câmara de Curitiba em defesa do Renato. Uma hashtag, #RenatoFica, circula há dias. Ainda assim, haverá escapatória para o vereador? Por que não? Reproduzo o ótimo artigo do jornalista Rogerio Garlindo, do Plural.

Por que a Câmara de Curitiba vai cassar Renato Freitas? Punir um colega vai contra tudo que os vereadores da cidade acreditam – e no entanto, ficou claro que dessa vez não há escapatória. Derrotado no Conselho de Ética, Renato provavelmente sofrerá um resultado ainda mais humilhante em plenário. Perderá não só o mandato como os direitos políticos. Não exercerá mais o cargo para o qual foi eleito, nem poderá disputar as eleições de outubro.
Mas por quê? A Câmara de Curitiba é conhecida por seu corporativismo: teve todas as oportunidades para cassar mandatos, e sempre recuou. Um presidente que mandou por 15 anos a Câmara com mão de ferro foi pego em um escândalo milionário – não foi cassado. Vereadoras foram pegas fazendo rachadinha em seus gabinetes – não foram cassadas. Um vereador cometeu assédio sexual – não foi cassado. Outro cometeu racismo explícito – e escapou.

Por que Renato Freitas não escapará? Por que pela primeira vez a Câmara decide que é preciso punir como máximo rigor um de seus pares. Uma vereadora que roubou o erário perdeu apenas o direito de falar ao microfone por uns dias. Renato Freitas será cassado, expulso da Câmara, expelido da vida política de Curitiba – será enxotado como um cão indesejado que entrasse pela porta da Câmara. Por quê?
Há motivos para isso, e não são difíceis de se perceber. Renato Freitas é vereador, e aí acaba toda a semelhança entre ele e seus pares julgados anteriormente. Em todo o resto ele é uma exceção. E ser fora do padrão é seu crime.
O primeiro erro de Renato Freitas foi nascer preto. O segundo foi nascer pobre. O terceiro foi nascer na periferia.
Claro, há outros vereadores negros (poucos). Há quem tenha nascido pobre, e sempre há os representantes da periferia. Mas Renato Freitas é diferente dele também. Porque há outros crimes que o levam a ser alvo dessa cassação.
Ao contrário de outros vereadores negros, ele é um dos dois únicos que fez da raça a causa de seu mandato – a outra é Carol Dartora, e não seria de se espantar se ela for a próxima.
Ao contrário de outros vereadores pobres, Renato Freitas fez da defesa dos pobres um motivo de seu mandato. Não usou seus eleitores para trocá-los por emendas, por cargos e privilégios, e sim realmente tentou mudar suas vidas.
Ao contrário de outros vereadores periféricos, Renato Freitas continuou estando à margem: fez questão de manter seu cabelo afro, para horror da Câmara; e para horror da Câmara, veste camiseta, anda de skate, fala como quem é.
Esse é o quarto crime de Renato – não ter mudado depois da eleição, nem ter decidido que a política era algo que deveria mudar sua vida. Muito pelo contrário, ter tomado a decisão de ser quem é e de usar a política para mudar a vida de seus eleitores.
O quinto crime de Renato Freitas foi achar que não era preciso baixar a cabeça. Que chegando à Câmara seria possível ser encarado como um igual. Isso jamais acontecerá. No mandato, foi chamado de moleque, destratado, detido, preso, arrastado, levado à força pela Guarda Municipal, que subiu em seu corpo negro e algemado, como numa pintura do século 18.
O sexto crime de Renato foi acreditar que a Câmara era um lugar para se fazer política, para lutar por causas, e não para se dobrar ao prefeito, aos empresários, aos donos da cidade.
O sétimo foi sua convicção de que uma cidade pode mudar rapidamente, que é possível convencer as pessoas de que é possível viver sem se sujeitar a regras econômicas injustas, que é dever de um político se rebelar contra o que vê de errado.
O crime de número oito foi ter orgulho. O de número nove foi não ter medo.
Mas o décimo crime, o realmente imperdoável, foi o de revelar com sua coragem o quanto são pusilânimes os vereadores em sua maioria. Aqueles que se elegem em nome da ambição pessoal; que se realizam ao ganhar loas e cargos; que vivem para si e para navegar em privilégios; e que jamais pensaram em mudar nada com seus mandatos. Pelo contrário: pois na maioria os vereadores de Curitiba, como a maior parte dos políticos, existe para garantir que tudo permaneça exatamente como está.
Existem para garantir que os pobres continuem pobres.
Que o prefeito possa governar para os privilegiados sem que haja uma revolta.
Existem para garantir que a educação seja frágil e “sem partido”.
Para ter certeza de que a ganância dos empresários do lixo, do transporte, da saúde seja saciada e passe impune.
Ocupam seus mandatos para ser parte de uma máquina que garante a divisão da cidade em mandantes e mandados. Nos que podem tudo e nos que nada podem.
Revelar essa monstruosidade, revelar a cumplicidade da Câmara com tudo isso, é imperdoável. Lutar contra o racismo quando a maioria dos vereadores é racista; cobrar justiça quando a maior parte da Câmara é injusta; exigir que as coisas mudem quando tudo o que os vereadores querem é que tudo permaneça no seu lugar, principalmente o que está errado; eis o crime imperdoável.
Renato Freitas será expulso da vida pública. Mas surgirão outros Renatos. Porque não é possível que isso permaneça para sempre. É preciso acreditar que as injustiças não perduram indefinidamente, ou perderemos a vontade de ser cidadãos.
A Câmara de Curitiba nos ensinou mais uma vez a eterna lição: não existe mudança que venha fácil. Mas os eleitores jovens, negros, pobres, periféricos de Curitiba ainda vão prevalecer. E nesse momento, os atuais vereadores vão ser vistos pelo que são – artífices voluntários de uma cidade sempre mais injusta e excludente.

7 comentários:

Luise Mior disse...

Mais um caso de racismo cotidiano. Renato deveria seguir vereador, faz ótimo trabalho. Obrigada Lola por postar texto sobre.

Felipe disse...

Força guerreiro

Anônimo disse...

Negro? O cara é branco! Só porque tem cabelo redondo!

avasconsil disse...

Fui a Curitiba em 2015 e em 2016, quando meu irmão estava morando lá. Gostei da cidade, mas não gostei das pessoas nem do que o espiritismo chama de psicosfera. As emanações mentais e emocionais de muita gente que se acha superior (nos preconceitos eles realmente são imbatíveis. São superiores mesmo...), tornam a psicosfera de Curitiba desagradável. Não é à toa que apesar de todos os pesares, a maioria lá continua bolsonarista. Mais vale votar num nazista branco dos olhos azuis do que num sem raça definida de origens nordestinas. Graças a Deus que meu irmão não mora mais lá. E que a gente só viaja pra onde quer.

Amiel Modesto Vieira disse...

As pessoas precisam entender a branquitude é a minoria desse país e aos poucos vão surgindo pessoas importantes que vão puxando a revolução negra neste país. Pode demorar e talvez eu não veja ocorrer, mas será realidade. O caso de Renato é a branquitude querendo permanecer no poder, pode acabar a carreira política, mas como disse o plural outros Renato vão surgir

Anônimo disse...

Pequeno alento é pensar que ele crescerá como pessoa pública. Ainda poderá fazer muito na política, mesmo que com um breve hiato, por ora. Geralmente este tipo de perseguição tem esse efeito. Tenho esperanças.

Anônimo disse...

Branco? Ele é misturado. Mestiço muito mais pra pardo/negro que pra branco. Só não é retinto como no desenho que ilustra o post.